Tal como foi o silêncio [de lutos e luzes]

A encenação e interpretação de Daniela Vieitas é majestosa e íntima, acompanhando a densidade psicológica, espiritual e social do monumento dramatúrgico que é “Tal como foi o silêncio” de Ondjaki. Entramos com medo da morte e saímos com liberdade para a viver. 

O luto pode ensinar-nos a viver em liberdade. Esta peça convida-nos a tomar a decisão.

Em doze inspirações, que poderiam ser atos poéticos, o público é convidado a respirar palavras e silêncios, espelhos e espaços, dor e busca, encontro e tempo. 

O espetáculo passa-se todo numa sala, a atriz parece-nos tão próxima que podia ser qualquer um que entra e fica na sala. Ao mesmo tempo, parece-nos tão distante que nos desperta a memória do que todos temos medo de viver. A ausência. 

Ao longo da peça, surge um rio que dança. Um rio que existe na paisagem para lá do tempo. Um rio intemporal na nossa temporal existência. Uma suavidade e uma saudade. Uma beleza e um choro.

Uma ténue pergunta nos surge a partir da personagem Mulher/Mãe que nos interpela na sua perda: afinal, quem somos nós depois da morte, dos outros?

“Eu fui Mãe” é uma frase que repete como se nos colocasse a dúvida. Foi? É? O que provoca a morte de alguém na nossa identidade mais profunda? Elimina as nossas condições? Deixamos de ser Mães, Filhos, Maridos, Mulheres ou Amigos? Terá esse poder de eliminar a vida que fomos e que somos? A morte mata tudo?

Fui vivendo esta peça ao lado de mães que perderam filhos, de filhos que perderam mães, maridos que perderam mulheres, de amigos que perderam amigos, porque a morte existe em cada um de nós. Não precisamos de nos conhecer, em cada olhar ela está lá. Pelas palavras de Ondjaki e na interpretação da Daniela Vieitas somos levados à margem de um Rio. Sentamo-nos. Tocamos na água. Colocamo-nos no olhar daquela Mulher/Mãe e percorremos a sua busca de espaço, tempo e sentido.

Procurarei, partilhar pequenas notas sobre estas dimensões. 

Espaço. A Mulher/Mãe procura salas para encontros sobre o luto. Salas de silêncio e de som. De cartas escritas e por escrever. Moradas de pessoas, estranhas, como o Senhor de 70 anos que pouco fala e algo desconfia mas abre a porta e nas suas perguntas vai-se reconciliando com as não respostas da Mulher/Mãe. Muitas vezes é com estranhos que encontramos ligação, com o nosso eu. A Mulher/Mãe vai procurando esses espaços como quem se busca a si própria criando espaços de verdade e de dor, para outros. Espaços que escutam. Espaços que curam, a solidão. 

“eu ando de casa em casa, de espaço em espaço, à procura de uma casa que possa dar espaço a este grupo que sai de casa para descobrir o seu próprio espaço.

mas fazem isso através da descoberta do espaço do outro. de outros”

Tempo. Na sala com a Mulher/Mãe está um carrinho de chá que contém tudo que o tempo contém, entre os quais, um espelho e um barómetro que conseguimos escutar. Como na Alice no País das Maravilhas, de Lewis Caroll, vai-nos lembrando que os espelhos podem magoar pela realidade ou pela irrealidade. Talvez por isso a Mulher/Mãe os deteste. Assim como o Senhor de 70 anos. Porque o tempo muda com a morte, dói. Como as imagens e os tempos verbais.

“eu quero poder dizer “eu sou mãe”.

eu quero poder acordar e saber-me “ainda mãe”.

não conjugar o verbo em função da morte.”


Sentido. A Mulher/Mãe e o homem de 70 anos vão caminhando numa busca maior. Pelo sentido. No chá que partilham como uma oração. Falam das lágrimas, como algo marcado, na agenda do tempo. Da poesia como companhia na ausência e na solidão da presença. Nesta cumplicidade das ausências, percebemos o sentido. Do rio que dança, da filha que o adorava dançar e da possibilidade de, pela memória, pelas ligações e pelos silêncios, voltar a vê-la. 

“A minha filha ensinou-me a apreciar a dança dos rios. Passou-me isso. E quando me sento a ver um rio passar, claro, lembro-me dela, mas sinto uma certa paz. E um pouco de paz de cada vez: talvez seja isso, a dança dos rios.”

É sempre incompleto e injusto fazer um comentário crítico. Não apenas pelo que fica por dizer, mas sobretudo pela subjetividade do que se diz perante uma obra de beleza e profundidade. Fica, sobretudo, o desejo de que esta peça percorra muitos rios, sejam escutados muitos silêncios e daí nasçam muitas luzes. O trabalho da Associação Compassio, que promoveu esta iniciativa, está contemplado nesta obra. Ao longo do seu tempo de existência a Associação Compassio tem colocado na agenda social e cultural o tema da morte, do luto e da compaixão. Um bem-haja por mais esta iniciativa.

Termino dizendo que, ao contrário do que foi escrito no início deste artigo, como público não ficamos na margem do rio, conseguimos dançá-lo. Com a filha, com a Mãe, porque, para além da ausência da morte, a peça “Tal como foi o silêncio” ensina-nos a presença, da vida.

TAL COMO FOI O SILÊNCIO

[do luto e das luzes]

Texto: Ondjaki

Encenação: Lígia Roque

Cenografia e figurinos: Ana Limpinho

Música: António-Pedro

Interpretação: Daniela Vieitas

Produção: Associação Compassio, Daniela Vieitas

Designer: Filipe Pinto

Agradecimentos: participantes dos grupos de partilha CASA LUTO e do retiro “A hora dos zarzoais”, João Norton sj, Ana Sevinate, Pedro Antunes e Nuno Gomes.

Apoio: Fundação Calouste Gulbenkian, Junta de Freguesia de Aldoar

 

por Joana Morais e Castro
Palcos | 16 Maio 2024 | Daniela Vieitas, luto, Ondjaki, teatro