Se não espalmares, fica muito solto

A certa altura, no espectáculo As Castro, dizia em cena Raquel Castro: 

“Nós somos uma família, mas não somos uma família convencional. Somos uma família a fingir, inspirada na minha família real: na minha mãe, no meu pai, no meu marido, nas minhas filhas, nas minhas avós e avôs, bisavós e bisavôs e por aí fora. 

E somos também uma família temporária, por isso, se a coisa der para o torto não há problema, no fim do espectáculo vai cada um para seu lado.”

Seria pacífico dizer que as famílias convencionais se representam ao mesmo tempo que se produzem e reproduzem. Mas, nesta fala, Raquel diz que a sua família não é convencional precisamente por fazer a mesma coisa, por representar e, portanto, produzir e reproduzir a sua família convencional. Mas o acto consciente de fazer isso é que a torna não convencional. Se são assim todas as famílias não convencionais não sei, mas esta afirma-se temporária, pode desfazer-se e refazer-se de outras maneiras, porque além do mais é uma família em cena, e por isso, em cima de um palco, ou seja, as avós, a mãe e as filhas da Raquel são também os seus colegas, que as representam. Isto, aliás, diz muito sobre o seu teatro. Para Raquel Castro, o teatro é um lugar onde se mostra o que aconteceu ou que ainda pode vir a acontecer noutro lugar fora do teatro: alguma coisa juntou aquelas pessoas ali e, “se a coisa der para o torto não há problema, no fim do espectáculo vai cada um para seu lado.”

É um pouco como no teatro de Bertolt Brecht, mostrar em cena o que não está em cena. Mostrar o que se está a passar talvez na rua ao lado. Em Cena de Rua, Brecht sugere que os actores estão no palco para contar e mostrar uma coisa que viram lá fora, à semelhança das pessoas que testemunham um acidente na rua e o contam a quem chegou mais tarde e não compreende o que aconteceu. A diferença é que Castro faz isto, mas em relação a acontecimentos ou acidentes que ela própria não viu e, no caso de As Castro, porque é um espectáculo sobre os seus antepassados, já não há ninguém vivo que tenha visto. Por isso é que contrata um historiador para fazer a sua árvore genealógica. Mas o historiador também não sabe o que aconteceu. Somos todos como a Raquel, chegámos irremediavelmente depois. As Castro é dos que chegaram tarde, ao contrário do que acontecia no seu primeiro trabalho, a obra-prima Os Dias São Connosco, em que estávamos todos antes do tempo. Então, o teatro de Raquel não é o teatro das testemunhas, é mais o teatro de quem, porque não viu, precisa de entender, recuperar, interpretar o que aconteceu.

O mais interessante é o modo como Raquel usa o teatro para chegar a esse fim. Raquel ensaia hipóteses. O teatro é, então, também o que poderá ter sido. Raquel é a primeira espectadora de As Castro, porque ela pede aos actores que ensaiem algumas hipóteses sobre o que poderá ter sido certo acontecimento. Para quê? Para ver se faz sentido. E se faz sentido em dois aspectos: em primeiro lugar, se é verosímil, ou seja, se podia ter sido à luz do contexto histórico, e em segundo lugar, se faz sentido para a Raquel, para a narrativa que a Raquel está a tentar construir. Isso vê-se na cena em que Raquel descobriu, na sua árvore genealógica, que houve uma antepassada que se casou com um tio. Não há mais informação. Em que circunstâncias poderá ter acontecido? Para isso é que é útil fazer teatro. A primeira hipótese é a sobrinha ter sido obrigada a casar com o tio. O pai obrigou-a, talvez por uma questão monetária. A segunda hipótese é a sobrinha e o tio terem-se apaixonado enquanto o pai resiste a aceitar. Os actores fazem as duas cenas, e a Raquel está em cima do palco a ver, e a cismar sobre qual das duas prefere guardar.

De quando em quando, é projectada uma fotografia com antepassados de Raquel enquanto alguém em cena a descreve. No fim da descrição, a fotografia desaparece. Mas na peça publicada na Bicho do Mato não há imagem nenhuma, só o texto da descrição, o que torna a leitura uma ekfrasis, ou seja, a descrição de uma imagem que não se vê. O que é interessante, porque podemos extrapolar e dizer que as peças de teatro publicadas são ekfrasis. Será? Levanta-se a velha questão: é o texto dramático uma descrição do espectáculo ou é o espectáculo a descrição do texto dramático? Se for a segunda hipótese, então as peças de teatro são instruções do espectáculo. Lembram-se daquele filme de 12 minutos, do John Smith, Girl Chewing Gumm, que consistia numa câmara parada a filmar uma rua movimentada, e em off ouvia-se uma voz a indicar as acções das pessoas que iam passando na rua? E depois no fim percebe-se que a voz não estava a indicar, mas sim a descrever? O que a voz dizia era o texto da descrição do filme. Ora bem, o texto de Raquel pode ter sido escrito antes ou durante os ensaios. Mas, ao ser publicado em livro, o texto passa a ser a última palavra. Provavelmente Raquel reviu o texto e reflectiu sobre como haveria de ser fixado em livro. E assim, o texto, nesta nova versão, torna-se uma descrição de um espectáculo. Uma ekfrasis de quadros vivos. Outro aspecto interessante é o facto de sabermos que, quando descrevemos algo, nunca descrevemos tudo, há sempre aspectos que ficam de fora, só descrevemos o que nos interessa. E uma grande diferença entre o espectáculo e este livro é que no espectáculo vemos sempre Raquel a assistir às cenas que constrói (porque é este o seu teatro, lembram-se?) e no livro não vemos Raquel nem nos é indicada a sua presença a ver. A única Raquel que há no livro é uma Raquel que fala. Nunca sabemos onde está ela quando não está a falar. Aliás, nem quando está a falar. Aliás, nem sabemos onde está mais ninguém. Não há didascálias nesta peça. Não há indicações cénicas. Onde está a Raquel? A Raquel está do lado de cá, do nosso lado, a escrever. Por isso é que está ausente. E a experiência da literatura é essa. O leitor preenche a ausência da escritora. O leitor está no mesmo sítio em que a escritora estava em relação ao livro. O livro é uma metáfora do manuscrito (mas neste caso é do espectáculo). A Raquel está na tua voz. Está na minha voz. E no espectáculo, quando vemos Raquel a ver a cena do tio com a sobrinha, vemos Raquel a ver. Como nós.

Outra coisa que a experiência da leitura nos dá são as transições violentas. Repare-se nesta cena em que Mãe e Raquel discutem por causa das tampas desencontradas das caixas:

MÃE

Chamas a isto arrumadas?

RAQUEL

Estão arrumadas.

MÃE

Já não está cá quem falou.

RAQUEL

Aqui está a tampa! (RAQUEL pega no telemóvel e liga à MÃE.) Desculpa.

MÃE

Deixa lá isso. Desculpa também.

No momento em que Raquel pega no telemóvel e liga e pede desculpa à mãe, há uma metalepse. Ainda está na cozinha a discutir com a mãe e ao mesmo tempo já está em sua casa, não se sabe quantas horas depois, a ligar à mãe e a pedir-lhe desculpa por ter gritado. O que é interessante é que na experiência de leitura esta transição percebe-se imediatamente. Não seria necessária nenhuma nota para reconstituir o lapso de tempo, como: mãe vai para casa, Raquel sente remorsos por causa do modo como lhe falou e então resolve telefonar-lhe. Nada disto é necessário. A literatura não é só narrativa, também pode mostrar sem contar, como no teatro. Vejam, por exemplo, os contos de Ernest Hemingway. Podiam ser peças de teatro. Mais do que para ler, são para ver. Vejam As Castro. Tudo isto que estou a dizer obviamente refuta aquela ideia disparatada de que as peças de teatro são textos incompletos, só se tornam completos quando se concretizam num espectáculo. Puro disparate. Se assim fosse, então o que falta aos contos de Hemingway? Onde querem que eles se concretizem?

«Como é que foi depois do divórcio? Numa taça, juntas a manteiga amolecida.» 

Aqui chego ao que eu acho que é o tema central desta peça. A filha quer saber como foi que aconteceram as coisas, e a mãe responde-lhe com uma receita. Ou seja, com instruções. A filha quer uma descrição e a mãe dá-lhe uma prescrição. Esta frase resume o processo todo do teatro. Começa com uma interrogação: «Como é que foi?» Em vez de se responder, cria-se um conjunto de prescrições sobre como se deve formular a pergunta: «Numa taça, juntas a manteiga amolecida.» E no fim tem-se o crumble de maçã, que é As Castro. À primeira vista, este diálogo parece de surdas, mas acho que o devíamos entender à letra. O que eu acho que a Raquel está a dizer aqui tem duas partes: primeiro, que para fazer a cena de como foi depois do divórcio temos de fazer a cena de como era a vida todos os dias e, segundo, que para entender o que foi depois do divórcio, mas também o que foi o divórcio e o que foi antes do divórcio, recuando, sei lá, até ao casamento, e até ao casamento da trisavó, é preciso dar atenção à vida de todos os dias, ao dia-a-dia. E isto ressoa uma ideia que me é muito cara, enunciada pelo formalista russo Viktor Schklovsky, em 1917, que a arte talvez seja não a coisa em si, mas uma estratégia de chamar a atenção para as coisas a que, por força do hábito e da rotina, se deixou de dar atenção. Ou seja, a ideia de que a arte não é uma coisa, mas é um processo, e a ideia de que o real é aquilo que está à vista, mas ninguém vê por estar demasiado ocupado a viver. É a ideia de uma arte que considera que o importante é a vida tal como ela é, o dia-a-dia, ou seja, as coisas que as pessoas fazem porque é preciso alguém fazer.

E aqui entra a parte feminista da peça. Quem tem historicamente dado conta das coisas do dia-a-dia que se fazem porque é preciso alguém fazer? As mulheres. Esta peça é um elogio das mulheres, mas de uma maneira esquisita. Porque, por um lado, é o elogio das mulheres a quererem ver-se livres do fardo de serem consideradas um tipo de ser humano que nasceu para fazer um tipo de coisas: cuidar, tratar da casa, etc.; mas por outro lado, é a intuição incrível da Raquel de que essas actividades que podem ser feitas por qualquer pessoa (mulheres e homens e outros seres) são as actividades mais importantes da vida. E que talvez seja esse o grande objecto da arte. A vida de todos os dias. Não a vida dos grandes feitos, mas a vida dos pequenos feitos. Quando Raquel diz:

RAQUEL

Não percebo como é que aguentaste viver assim. Viver para os outros.

MÃE

Se não espalmares, fica muito solto e a maçã fica toda seca. Dá cá, para pôr no forno. Se calhar, sou assim, gosto de viver para os outros. Fico feliz de ver os outros felizes. Fiz-te umas almôndegas para levares.

A pergunta de mil dólares de Raquel, como é que aguentou viver para os outros, é na verdade outra pergunta: como é que aguentou sacrificar a sua vida pelos outros. E a mãe, antes de responder, sem problema nenhum, que simplesmente fez o que gostava, deu uma instrução de como se deve fazer crumble de maçã. Porque fazer crumble de maçã também é viver. Se, por um lado, percebemos o que Raquel quer dizer: como é que é possível tantas gerações de vidas de mulheres desperdiçadas em sacrifício pelos outros; por outro lado, também se acha que a mãe da Raquel tem razão. Não há nada mais belo do que essa ideia inventada pelo cristianismo que é levar à letra esta metáfora: viver para os outros. 

As Castro, peça de Raquel Castro © Filipe FerreiraAs Castro, peça de Raquel Castro © Filipe Ferreira

Em As Castro só há um homem em cena, um homem que representa todos os homens. Quando o homem volta tarde para casa, acende-se o fantasma da traição. Mas afinal o que é o fantasma da traição? O que é a traição? É o pai e o avô e o bisavô estarem fora do âmbito das coisas que se fazem uns para os outros. Porque estar em casa com a família com dúvidas se deveria estar noutro sítio com outra pessoa é o que não se precisa. É não estar aqui, realmente.

Raquel tinha de questionar o seu próprio marido. Será este homem como os outros homens d’As Castro? E um dia ele chega tarde. Acende-se o fantasma da traição. Mas a conversa que eles têm talvez seja a parte mais comovente da peça, e a conquista de décadas de luta do feminismo. O marido da Raquel dá-lhe uma lição, mas é uma lição aprendida com as mulheres desde o tempo das cavernas. Raquel diz que tem medo de o perder. Ele responde que é normal termos medo de perder quem amamos. Então ela pergunta se ele também tem medo de a perder (como se estivesse a perguntar se ele a ama). Ora leiam:

MARIDO 

Claro que tenho, eu amo-te.

RAQUEL

Mas nunca o dizes.

MARIDO

Há medos que não sinto porque não penso neles. 

Mas sei que os tenho porque se pensar neles fico logo com medo. Por isso, sinto que o melhor é não pensar nisso.

RAQUEL

Como é que fazes para não pensar nisso?

MARIDO

É fácil. Como não me imagino a viver sem ti, digo a mim próprio que tu também não te imaginas a viver sem mim.

RAQUEL

Lá porque tu não imaginas, não quer dizer que eu não imagine.

MARIDO 

Eu sei. Mas funciona.

Não quer dizer que não haja vida fora do casamento. Simplesmente, não é preciso imaginá-la, há muito mais coisas que se podem imaginar. Prefiro imaginar a minha vida contigo, para não acordar o medo que tenho dentro de mim. Ora, ter uma amante é literalmente experimentar o que seria a vida sem a mulher. Escrever é uma maneira de estar contigo, diz Raquel à avó que está a desaparecer. Escrever é a Raquel imaginar a sua vida com a sua família até aos tempos mais recuados possível, imaginar, inclusivamente, que a Dona Inês de Castro é a rainha da sua família e que voltará, como a Tieta do Agreste, para se vingar. E Raquel coroa a sua mãe e a sua avó com formas de tartes, que representam o prosaico da vida do dia-a-dia, como as Castro. 

Raquel declara lealdade às Castro, promete que será merecedora também da coroa. E promete que vingará a mãe e a avó. Esta promessa de vingança é maravilhosamente estranha. Em que é que consiste esta vingança? Acho que fui respondendo, e por isso não digo mais nada.

Apenas uma última nota solta: a certa altura há uma referência ao filme E Tudo o Vento Levou. Há uns anos, o filme foi retirado de uma plataforma de um canal por falta de uma explicação. O filme retratava o racismo sem uma tomada de posição, ou, pior ainda, com uma tomada de posição racista. A referência que a Raquel faz a este filme é pôr a avó e a mãe a comentarem a cena do beijo antes de Clarke Gable se ir alistar na guerra. Este diz que voltará para salvar Scarlet O’Hara. A avó diz que gosta muito da cena e a mãe diz que Scarlet O’Hara nunca quis ser salva nem beijada. E que lhe dá uma estalada depois de ser beijada. Raquel aqui está indirectamente a dizer que quando toca a questões raciais, o feminismo fica deixado de lado, como se não fosse de esperar. Infelizmente. Hoje em dia, do ponto de vista da política, fala-se das questões raciais neste filme, mas fala-se menos, ou nem sequer se fala já, do que a Raquel se lembrou de falar. Da história de uma mulher que não quer ser salva nem beijada por um homem armado em bom.

 

Capítulo do livro Se Não Espalmar, Fica Soltode Miguel Castro Caldas, Tinta-da-China, 2025

por Miguel Castro Caldas
Palcos | 5 Junho 2025 | dramaturgia, Raquel Castro, teatro