Música do fim do mundo

Este artigo reflecte sobre a música do mundo no contexto actual, o seu papel enquanto instrumento de poder durante o colonialismo e posição social enquanto género musical, em tempos apocalípticos e de ruptura: o fim de século e o fim de milénio. Usámos o pensamento de Philip Bolhman em «World Music at the “End of History”» como base para esta reflexão.
A globalização da world music é um fenómeno de dimensões geográficas e históricas, porém, a teoria da globalização apresenta-nos a world music enquanto fenómeno do presente, do tempo pós-moderno, onde a geografia tem um papel relevante na compreensão deste evento.
Em determinados momentos históricos, estão criadas condições globais que vêm colapsar a distância entre diferentes identidades musicais. Nestes momentos, o Eu e o Outro ficam mais próximos.
Os tempos de mudança, como os finais de século ou finais de milénio (que vivemos recentemente) são épocas de dúvida, ansiedade, de perda de referências e identidade, e medo que a História chegue ao fim.
Esta ansiedade que marca o fim da história veio impregnar a linguagem da etnomusicologia que descreve a perda de certas práticas musicais e da autenticidade, levando à tensão entre uma metafísica da música, que se acusa de ser falsa ou corrupta – a música exótica; e a metafísica que ganha a nossa aprovação – a world music. Seja qual for a maneira como designamos estas músicas, não conseguimos eliminar a ansiedade gerada pela sua correlação, nomeadamente a condição de “próprio” que substitui a de “outrém”, quando vistas à luz do discurso etnomusical. A música exótica e a world music estão subjacentes à tensão da etnomusicologia enquanto disciplina cujas dimensões etnográfica e geográfica são inseparáveis.
Vamos conhecer as duas.

Exotica.com

Bolhman fala sobre o website exotica.com como o melhor sítio para encontrar o exótico musical do final do século XX. Deu com ele no início de 2000. Apelava ao revivalismo e era abundante em propostas retro com temas e artistas que pareciam ter escapado à história e aos manuais, que ali se encontravam compilados e prontos a ser descobertos ou reencontrados. Músicos esquecidos, apresentados como heróis do passado, tudo envolto numa estética que já na época estava à frente do seu tempo e uma sedutora selecção eclética que primava pela exclusividade mas que convidava o mundo inteiro a conhecê-la. Compilava sons da Polinésia, latin jazz, música de dança cubana, estilos do Médio Oriente e outros nascidos entre as décadas de 50 e 60, como o pop instrumental de orquestra.
Através deste site entrava-se no passado para construir o presente. Diz Bohlman «Exótica é a música do ‘milenialismo’ virtual (…) musicalmente, tem coisas de todo o lado e para toda a gente. É tão local como global.»”
A exotic music compreendia um período histórico particular: o pós-segunda guerra mundial, e ainda o encontro entre o Ocidente e o restante Mundo, parte dele resgatado ao imperialismo morto e às memórias do colonialismo.
Hoje, este site já não existe e não podemos vivenciar a experiência de Bolhman. Deu lugar a um website de pornografia com o mesmo domínio. Talvez tenha desaparecido porque, na altura, a dúvida e a incerteza sobre o presente e o passado da música estavam mais acesas, e porque dependia totalmente do clique dos netsurfers para se manter vivo.
Há dez anos o mundo já corria rápido e a vertigem da mudança de milénio engolia alguns passados enquanto construía outros.
Martin Denny dá corpo à música exótica a partir da década de 1950Martin Denny dá corpo à música exótica a partir da década de 1950
Música do apocalipse
Segundo Bolhman, «os finais de século e os fins de história vão e vêm várias vezes. A grande ironia da escatologia (traduzido do original “endism”) é que reclamar o apocalipse já se provou ser um exagero e estar errado».
O “Endism” encerra a ideia de que o fim da história está prestes a acontecer devido a uma série de acontecimentos impossíveis de controlar. É a teoria do fim do mundo ou escatologia.
As teleologias do fim do mundo Ocidental apresentaram-se através de conceitos díspares como apocalipse, messianismo, “milenianismo” ou escatologia. Outros conceitos foram inventados em resultado do encontro com a world music, como utopismo, exotismo ou pós-modernismo.
Em 1900 vivia-se a mudança de século e grandes cidades como Chicago ou Paris promoviam feiras e exposições internacionais que as colocavam no centro do mundo, nas quais exibiam os produtos mais exóticos do momento. Musicalmente recorriam a artistas das colónias como forma de demonstração de poder. Estas feiras eram úteis ainda para musicólogos e antropólogos que usavam as mais recentes técnicas de gravação em cilindros de cera para fazer documentação musical. Vivia-se um novo período das músicas do mundo: o do encontro dos povos “sem história” com as novas tecnologias de fazer história. Gravavam-se e documentavam-se os sons do Outro pela primeira vez.
O modernismo estava na ordem do dia e as sociedades queriam assumir-se como modernas. Neste campo, as grandes feiras internacionais teciam as tendências construindo a ideia de fim-de-século e de novidades apocalípticas através de provas de domínio do ocidente sobre o resto do mundo. O mundo exótico. Diz o autor: «O Modernismo era o bilhete de entrada para o Ocidente, mas o preço era bastante alto: exigia que se adoptasse a história europeia como sua (…) Comprar os bilhetes implicava aceitar o papel do exótico, não só aderindo a ele mas também praticando-o.»
O easy listening de meados do séc. XXO easy listening de meados do séc. XX
Resgatar o Outro
Com a transição do século XX para o XXI a música do mundo é cada vez mais quotidiana e acessível. Ela hoje representa um mundo que se encontra e cruza em todo o lado, um mundo diverso e plural globalizado.
A world music já não é a música do Outro. Passou a ser uma categoria que vive do Outro para consumo e satisfação individual. E o termo ‘exótico’ encontrou um novo sentido nos dias de hoje tornando-se um atributo do tempo e do espaço. Exótico é tudo aquilo que está fora do lugar do observador (é aquilo que está “outside”, segundo o autor). Neste campo, a world music nunca esteve num terreno tão nebuloso como agora. Tanto está dentro como pode estar fora, já que é a posição do observador que deve permanecer segura e fixa. O exótico é, no fundo, uma categoria descaracterizada, produto da economia global onde as feiras e festivais de músicas do mundo mostram repositórios de exotismo estereotipado.

 

Magnífico exemplo de exotic music assinado por Les Baxter:

por Carla Isidoro
Palcos | 5 Junho 2010 | música do mundo, Philip Bolhman