A matéria ardente de que somos feitos

Contado a muitas vozes e sempre na primeira pessoa, Portugal Não é Um País Pequeno é um espectáculo que nos interroga, aqui e agora, sobre o que fomos e como somos. 

“Um país que não discute o seu passado é, de certa forma, um país que deixa de existir. E é por isso que estamos aqui, para deixar que alguma dessa memória continue viva dentro de nós”. ‘Aqui’ é dentro do espectáculo Portugal Não é Um País Pequeno, um quase solo de André Amálio multiplicado pelas vozes de trinta portugueses cujas histórias de vida passam por Angola ou Moçambique.

fotografia de Sara Matos/Global Imagensfotografia de Sara Matos/Global Imagens

A peça reflecte sobre a presença portuguesa em África e a ditadura, tomando o nome dessa ficção que António Oliveira Salazar quis impor aos portugueses e ao mundo, de um país além fronteiras e além mar que se media do Minho a Timor. É uma performance que junta testemunhos reais, camarões grelhados e um dos mais reveladores discursos do ditador, num exercício artístico e político contra o esquecimento, o apagamento das diferenças, o silêncio da História. “Tivemos o regime fascista e o império colonial mais longos da Europa, mas um durou 48 anos e o outro 500, e identificarmos um com o outro é redutor. Queria investigar a ligação entre fascismo e colonialismo e como lidamos com ela em democracia, falar do processo revolucionário e do fim do colonialismo, e fazê-lo com as pessoas que tiveram que abandonar aqueles países que estavam a nascer”.

Além de uma contextualização apurada, a peça dá literalmente voz a quem por hábito não a tem, constrói-se em cima das 40 horas de entrevistas que André Amálio realizou em busca de uma “visão múltipla, pessoal mas não singularizada, capaz de mostrar o quão complexa é toda a situação. Queria que o nosso olhar sobre o passado – e sobre o presente – derrubasse os estigmas e as caixas em que estas pessoas foram arrumadas”. Há testemunhos de quem recorda ansiar pela independência, de quem assinala o 25 de Abril como um momento trágico, dos que acreditavam viver no paraíso ou daqueles que dizem “a minha politica era o trabalho”, como mandava o regime. A todos escutamos pela voz de Amálio que, de auscultadores postos, repete ipsis verbis o discurso dos protagonistas destas histórias singulares. “É uma forma artística muito rica. Mas sobretudo quis dar o poder a estas pessoas. Há uma atitude política de não-reescrita deste material, num processo que entendo ser mais democrático”. Por exemplo: “Eu quando saí de Moçambique com 16 anos havia uma certa realidade que eu tinha os olhos fechados. Nem me passava pela cabeça, as coisas eram tão, tão naturais. Eu nunca vi por exemplo, objectivamente, nunca vi questões de racismos. Embora depois mais tarde a reflectir, eu via que, por exemplo, eu tinha colegas chineses, tinha colegas indianos no liceu, mas caramba eu só tive colegas de cor, de cor pronto os naturais de lá, só tive, talvez, talvez até ao primeiro ou segundo ano do liceu – o que equivale hoje ao ciclo - depois desapareciam”. Ou ainda: “Fomos apanhar o avião tivemos que ir às escuras, baixados, com dois filhos, como te disse, com 2 e 3 anos, sem nada, praticamente sem nada, porque não havia direito a bagagem. Passado muitas horas arrancamos praticamente com tudo às escuras porque estava tudo com medo que atacassem o avião. Demoramos 14 horas de Nova Lisboa até aterrar em Lisboa. Porque paramos nos Camarões para abastecer. Tudo chorava no avião. Deviam estar uns 50 graus no avião. Vieram uns homens com armas dizer que não podíamos sair do avião. Eu sentia que toda eu era água a escorrer e pensei assim, quanto mais quietinha estiver melhor e ficamos assim muito quietinhos. A maior parte das pessoas nem conseguia falar com o pânico que estávamos a sentir. Até chegarmos a Portugal e aí sim o que eu não fiz ao vir para Angola fiz ao chegar a Lisboa. Aí era eu que chorava  e chorei durante muito tempo”.

Numa Europa de refugiados e em simultâneo com as comemorações dos 40 anos das independências africanas, Portugal Não é Um País Pequeno ressoa como matéria viva que exige ser contada. André Amálio quer continuar esse caminho: “Estou interessado em situações onde as pessoas reais contribuem para contestar e reconstruir identidades culturais; estou interessado na forma como o teatro pode contribuir para a reescrita da história, dando voz a um grupo silenciado, trabalhando assim na transmissão da memória entre gerações”.

 

 

FICHA

Portugal Não é Um País Pequeno

de Hotel Europa – André Amálio e Tereza Havlícková

5 de Outubro

Espaço Alkantara, Lisboa, 21h

Bilhete: 6 euros

 

Artigo publicado originalmente no Diário de Notícias

por Maria João Guardão
Palcos | 6 Outubro 2015 | colonialismo, Passado, Portugal Não é Um País Pequeno, teatro