A história de Alcides Nascimento e de um cometa chamado "Pensamento"

Aos 27 anos, Alcides Nascimento gravou “Pensamento”, o único CD da sua carreira, produzido por Paulino Vieira. O efeito foi imediato. Era a grande revelação da música tradicional de Cabo Verde, decorria o ano de 1997. Um CD histórico, escreveram outros. A voz era a de um verdadeiro crooner da morna: grave, doce, suave, tranquila, um autêntico diamante em bruto que se revelava neste jovem com cara de bebé. Fizeram-se grandes prognósticos para uma carreira de sucesso, nos passos da diva Cesária Évora. Falava-se já em mercados internacionais. O entusiasmo não parava de crescer.

Mas poucos sabiam que o que estavam a assistir era apenas um gesto de sobrevivência, o último esforço de um jovem para deixar impressa a marca de toda a sua arte. Na verdade, o destino já estava selado há alguns anos. Apesar de acalentar alguma esperança, Alcides Nascimento sabia que, muito provavelmente, “Pensamento” seria o primeiro e o único disco que alguma vez gravaria na vida.

Uma doença rara, diagnosticada algum tempo antes, já decidira por ele o futuro. E este passava pelo silêncio total, pela surdez total.

Alcides Nascimento é o filho mais novo de Bana, de quem confessa não gostar muito de falar. É alto como o pai, mas mais parecido com a mãe. A voz é semelhante à do pai, mas com maior elasticidade entre os graves e os agudos. Apesar da paralesia facial, uma das consequências da doença, consegue-se expressar com bastante clareza.

Alcides não foi apenas um pequeno cometa que passou pela música cabo-verdiana. Foi também, durante mais de dez anos, o responsável pela programação musical do clube B. Leza, tendo ajudado a divulgar nomes como Bius, Nancy Vieira, Calu Moreira, entre outros. Alguns deles - Dany Silva, Tito Paris, Mayra Andrade, Maria Alice, entre outros músicos, prestaram-lhe a devida homenagem, na semana passada, em Lisboa.

Para a entrevista com o SAPO CV, Alcides Nascimento recorreu à leitura dos lábios do jornalista.

Como é que a música surge na tua vida?

Em criança costumava ir à casa do Paulino (Vieira), sentava-me e ficava a observá-lo, perguntava-lhe o que estava a fazer, quando ele ensaiava durante várias horas, todos os dias. Foi com ele que aprendi a gostar de música, onde aprendi o que era a boa música. Vim para Portugal com quatro anos, e cresci com os músicos que costumavam acompanhar o Bana, o Paulino, o Tito (Paris), também Dany Silva.

Algum tempo depois, comecei a aprender piano com o Paulino e mais tarde com um professor brasileiro. Nunca pensei em ser cantor, do que eu gostava mesmo era de composição e arranjos, sempre vi-me mais como um músico, um executante, do que um cantor. Interrompi as aulas de piano quando me disseram que eu iria ficar surdo.

Quando é que isso aconteceu?

Aos 19 anos foi-me diagnosticado uma doença rara, neurofibratose, que causa tumores, tive o azar de me aparecerem dois tumores, um do lado esquerdo e outro no lado direito da cabeça, junto aos ouvidos, e ainda tenho mais quatro na cabeça.

Continuas a fazer tratamentos?

Já fiz duas radiocirurgias para impedir que cresçam, por isso tenho de estar em constante vigilância médica, todos os anos tenho de fazer uma ressonância magnética, a própria paralesia facial é causada pelos tumores.

Há esperança de recuperares alguma audição?

Não. Já não é recuperável devido ao local onde os tumores cresceram, e que acabou por me destruir os ouvidos. Desde há três anos que sou 100 por cento surdo.

Até que ponto é que a tua vida mudou depois disso?

Logo aos 19 anos perdi a audição de um ouvido. Tentei continuar a estudar, mas foi muito difícil acompanhar as aulas, o outro ouvido também já estava afectado. Fui obrigado a abandonar a escola, no 10º ano, e a procurar trabalho. Fiz várias coisas, até que comecei, aos 21 anos, a trabalhar na noite, no Bairro Alto, primeiro no bar Os três Pastorinhos e mais tarde no Tagus Bar. Nesses seis, sete anos que estive no Bairro Alto aprendi alguma coisa de produção, fiz alguns espectáculos de música ao vivo.

 

De programador musical a cantor


E como é que chegas ao clube B. Leza?

Foi quando conheci a Madalena Saudade e Silva, que era a gerente e queria dinamizá-lo e convidou-me para tratar da programação musical. Foi um bom período para mim, não apenas na aprendizagem musical, mas também no aspecto social. Ali tive a oportunidade de conhecer melhor a música de Cabo Verde. Dediquei-me a procurar e a promover novos talentos, a lançar novos artistas. Produzi os CD “Di Noti”, do Biús, o “Segred”, de Nancy Vieira, e “Ao Vivo no B. Leza”, com vários artistas.

E como é que surge a ideia de gravares um CD?

Como disse antes, sempre admirei o Paulino Vieira. Quando decidimos gravar “Pensamento” foi como se eu tivesse decidido deitar fora tudo o que tinha aprendido e decidisse expressar como eu sentia a música de Cabo Verde. O CD levou quatro anos a ser gravado, porque foi o tempo que esperei por Paulino para ele o produzir, porque era o único músico que entendia a minha ideia para o disco.

Quem mais participou nas gravações?

Paulino Vieira esteve a cargo da produção musical, Cau Paris na bateria, Nandinho nos sopros e Armando Tito na viola.

Gravaste-o pensando que seria a tua marca na música como intérprete, porque caminhavas para a surdez?

Sabia que era praticamente a única oportunidade de dizer e fazer algo naquilo que gosto. Por isso houve muito cuidado na selecção de temas, no espírito do CD, nos músicos, etc., e isso teve que  durar o tempo que fosse necessário para conseguir este resultado.

De onde vem o título “Pensamento”?

É de uma morna do B. Leza, a primeira morna que eu ouvi, e o tema foi gravado só por mim e o Paulino, na viola. Por isso tenho um carinho especial por ela. No estúdio quisemos apenas captar o que nos fazia sentir bem, dei-me a este luxo porque não tinha a intenção de fazer carreira, não estava a tentar agradar ao público ou a ninguém, ou para vendas; as músicas foram surgindo, e fomos gravando as que se colavam bem à minha voz, até conseguirmos dar nova roupagem a músicas com mais de quatro, cinco décadas, como “Manel pur nold”, “Chica di nha maninha”, etc.

Chegaram a apresentá-lo ao vivo?

Fizemos apenas uma actuação, mas que não tinha nada a ver com o disco em si. O CD nunca foi apresentado ao vivo, na altura eu já tinha perdido muita audição e não tinha como conseguir a afinação necessária e não podia correr o risco de subir a um palco. Mas o CD teve grande impacto, e continua ainda a ter, é um disco sem data e bastante actual, mesmo daqui a muitos anos estará actual.
O disco teve um sucesso imediato. Estavas à espera?

Quando o CD saiu criaram-se muitas expectativas em relação a muita coisa, por isso tive de parar de cantar. Já não podia corresponder a elas, já se falava em distribuir o CD para vários mercados, por isso dei um passo atrás, a doença já não me deixava.

Há planos para uma reedição, quase 15 anos depois?

Estávamos a pensar numa pequena reedição, apenas para a festa do Espaço TMN (realizada no passado dia 6 de Dezembro), mas não foi possível. Estamos agora a pensar em reeditá-lo para o próximo mês de Fevereiro, para satisfazer as muitas pessoas que não puderam adquiri-lo, porque ele foi retirado do mercado logo depois de eu ficar surdo.


 A vida em silêncio

Como é ficar surdo depois de ter sido cantor e de viver da música?

Sempre ouvi música de manhã à noite, por isso tenho uma grande memória musical. Estou sempre a ouvir música.

Como é que se convive com um passado rico de sons num presente silencioso?

Não se pode viver desse passado porque se corre o risco de estagnação. Tenho de aceitar a vida que tenho agora e tentar tirar o máximo proveito dela, dentro das minhas limitações.

Aos 40 anos, como é o teu dia-a-dia? A surdez afectou as tuas relações afectivas/amorosas?

A surdez afectou todo o tipo de relação, porque a surdez elimina a maior parte da comunicação. Sem querer sou obrigado a um certo isolamento. Mas leio bastante, sempre li muito.

Como vês o teu futuro? Fazes planos, tipo família, filhos?

Apesar de me considerar um lutador, devido à doença não me é praticamente permitido fazer planos quanto a família e filhos.

Disseste que sempre leste e agora ainda mais. Quais são as tuas preferências literárias?

Gosto muito de escritores ingleses, portugueses, dos PALOP. Hoje em dia leio praticamente tudo o que me cai nas mãos. 

É incontornável falar no teu pai, por motivos óbvios e pelas grandes semelhanças com a tua voz. Como é que é ser filho de Bana?

Eu e o meu pai tivemos uma relação sempre longe. Nunca houve participação na minha vida. Não sei porquê, nem estou interessado em desenvolver este tema.

Mesmo depois de sair o teu CD nunca falaram de música?

Não. Nunca tivemos essa relação, não aconteceu, coisas da vida…  

Vives com a tua mãe?

Sim. Se não fosse o apoio dela não sei o que seria da minha vida.

Nasceste em São Vicente, mas vives em Portugal há 36 anos. Qual é a tua relação com Cabo Verde?

Nasci em São Vicente e vim para Lisboa com quatro anos. Mas a ligação nunca foi prejudicada, porque a vivência com cabo-verdianos em Lisboa nunca deixou-me esquecer Cabo Verde. Para além disso, mesmo que em trabalho, fui muitas vezes a Cabo Verde. Mas gostava de ir passar pelo menos um ano inteiro para conhecer melhor.

 

Escute AQUI a voz de Alcides na morna Coraçom, do CD “Pensamento”.

por Joaquim Arena
Palcos | 6 Fevereiro 2012 | Alcides Nascimento, música, música tradicional de Cabo Verde, pensamento