Vida e morte de uma Baleia-Minke no interior do Pará e outras histórias da Amazônia

O antropólogo e jornalista Fábio Zuker lançou em São Paulo seu primeiro livro: “Vida e morte de uma Baleia-Minke no interior do Pará e outras histórias da Amazônia”. A obra é composta por reportagens e crônicas, tratando de uma temática urgente, para aproximar os leitores e ajudar e entender um pouco o contexto político, social e humanos do que vem ocorrendo na Amazônia nos últimos anos. O livro conta ainda com relatos inéditos, que não encontraram seu lugar nas reportagens de tom investigativo, mas que ainda sim dizem algo a respeito da região.  
O livro foi Editado pela Publication Studio São Paulo, cuja editora e designer é Laura Daviña, e traz ilustrações exclusivas do artista indígena Gustavo Caboco, do povo Wapichana. A obra pode ser comprada aqui no site da editora. O Publication Studio é uma plataforma internacional que imprime livros on demand. A obra encomendada será impressa no estúdio parceiro mais próximo de onde a demanda foi feita, facilitando a distribuição do livro.
Encomendas podem ser feitas no link:  
Leia três trechos selecionados da obra:

A escrita como projeção de mundos

Durante uma de suas mais recentes estadias junto aos indígenas Wari’, em 2014, Aparecida Vilaça conta que ficou impressionada com aquilo que então considerava ser uma novidade: viu diversas fotografias de seus amigos e parentes Wari’ que preenchiam na parede lateral de um quarto. Era o quarto de Paletó, seu pai indígena, de quem Aparecida foi se aproximando e criando essa relação de parentesco a partir de 1986, quando começou a fazer trabalho de campo como antropóloga, junto aos Wari’, em Rondônia. As fotografias exibiam diversos indígenas com roupas de gala ocidentais, inclusive Davi, que tinha as pernas atrofiadas, e que estava fotografado de pé, ao lado de sua irmã Ja. Intrigada, Aparecida perguntou a Ja se haviam comprado aquelas roupas, ao que ela lhe respondeu que se tratava de uma fotomontagem, realizada por um especialista de Guajará-Mirim, cidade vizinha às aldeias Wari’.

Refletindo acerca do ocorrido, Aparecida faz uma análise da maneira como a fotografia foi apropriada pelos Wari’, “não em seu aspecto de fixidez, de espelho do mundo, mas de transformação, de projeção de corpos em outro mundo”. Seu livro pode ser lido a partir desse princípio Wari’ da projeção de corpos em outro mundo. É uma tentativa de recriar o indígena Paletó em outro mundo: o mundo dos vivos, o mundo dos brancos, o mundo dos livros, explorando uma relação de afeto e carinho. Paletó aparece na obra composta a partir de trechos de cadernos de campo, sonhos, cenas que existem apenas na memória da autora, assim como transcrições de fitas cassete, conversas e memórias de Paletó, entre outras fontes diversas. 

Produzido ao longo de trinta anos, esse material multifacetado é a base para essa espécie de despedida que a autora faz de Paletó. O livro começou a ser elaborado no dia seguinte ao de sua morte, narrada com emoção pela autora, compartilhando sua aflição por estar distante de seu pai indígena, e não poder acompanhar de perto o seu enterro, em meio a tentativas de estabelecer contato virtual ou telefônico com suas irmãs e irmãos Wari’.

A projeção de corpos em outro mundo é um traço do pensamento Wari’ em sua concepção do que pode a fotografia. Uma reflexão que nos conduz para além deste contexto específico. Trazer imagens de corpos e pessoas para um outro mundo, projetar mundos sobre mundos, friccionar realidades, é o que tento fazer nestas reportagens e escritos a seguir. 

Mais do que simplesmente transpor pessoas para textos, recriá-las em um mundo diverso, o que acredito ser mais interessante é pensar como essas formas de vida tensionam as possibilidades do registro elaboradas para tentar dar conta do mundo ao qual estas pessoas nos convidam. O que me impressiona é a maneira como o texto parece sempre insuficiente perante uma realidade que extrapola a capacidade narrativa de apreendê-la. 

Uma figura me vem à mente: de algo que não pode ser abarcado. Algo dotado de uma certa dinâmica, um fluxo que corrói, por dentro, toda e qualquer estrutura e forma voltada a sua contenção. Dinâmica esta, entre fluidez e contenção, da qual os textos a seguir seguramente não escapam. Ou, para tentar colocar com maior precisão, é exatamente deste atrito que eles emergem.

Abalar a fixidez do mundo 

Dona Madalena e seu filho, cujo nome infelizmente me escapou, possuem um pequeno comércio no bairro Cambuquira, já na beira da estrada que liga Santarém à Cuiabá, próximo à escola Nossa Senhora de Fátima. 

Nesta escola, a prefeitura de Santarém instalou por anos um abrigo improvisado para os refugiados venezuelanos que chegavam na cidade. São, em sua maioria, indígenas Warao, vindos do ponto de encontro entre o Rio Orinoco e o Mar do Caribe. O percurso, embora conhecido por todos que com eles conversa e tratado com naturalidade, é impressionante: do caribe venezuelano a pé até Manaus, e de lá, de barco até Santarém. Com o pouco que ganham com coletas nas ruas e pequenos serviços na cidade, os indígenas se habituaram a comprar mercadorias de Dona Madalena e seu filho.

Após uma visita-inspeção do Ministério Público Federal, que considerou inadequadas as instalações da escola Nossa Senhora de Fátima para abrigar aos cerca de duzentos Warao que ali viviam acampados e amontoados, a prefeitura de Santarém os transferiu para um novo abrigo. Este está localizado um pouco depois do bairro de Ipanema, já avançados na estrada em direção à Cuiabá, nos limites da zona urbana da cidade. O novo abrigo é uma chácara, pela qual se chega por um caminho de chão de terra batida, muito quente, atrás de uma fábrica que produz estruturas metálicas e cimento.

No novo abrigo para o qual foram levados, cerca de dois meses antes de eu ir até lá, em julho de 2019, os Warao reclamam: só lhes servem frango com arroz. Todos os dias. Apenas uma refeição por dia.

Talvez pelo costume, talvez pelo afeto, ou quem sabe por qual outro motivo, eles continuaram voltando ao bairro de Cambuquira, na vendinha de Dona Madalena, para fazer compras. Convenceram ela e seu filho a abrirem uma “filial” no porta malas de seu carrinho. Todas as tardes, eles deixam a loja fixa, e vão para o abrigo atender as demandas dos Warao.

Não consegui realizar as entrevistas para uma reportagem no abrigo. A prefeitura de Santarém me deu bons chás de cadeira. Ainda assim, achei que valia a história e a reflexão sobre os Warao que, tendo ativado seu ímpeto nômade, abalam, ainda que sutilmente, a fixidez do mundo ao seu redor.

Escrever de perto

Não seria um exagero afirmar que na Amazônia o tempo passa de modo diferente. “Tem um barco para pegar lá no Parauá na segunda”. Vou até o Parauá, de moto, pela floresta. Mas na verdade, o barco sai apenas na quarta-feira. “Mas não tem problemas, arma a rede aqui em casa e espera tranquilo”, me diz Mercedes, agente indígena de saúde e esposa do Cacique Brás, que está no mato. A imprevisibilidade é a regra. Uma viagem que normalmente dura 6 horas com frequência tarda 10h.

Espaço e tempo transcorrem em mútua dependência. Como se rios, lagos e florestas impedissem o passar do tempo concebido à imagem de uma seta que transcorre sobre uma superfície lisa. O oposto da imagem de um carro sobre uma estrada. Na Amazônia, o tempo ainda é um tempo que tarda a passar. Pelo menos enquanto houver rios e florestas.

Gosto destas longas horas no barco. Não sou fã de aviões. Nunca fui, ainda mais aqui na Amazônia, onde os voos são caros, sujeitos a turbulências pelas enormes formações de nuvens pelas quais as diminutas aeronaves penetram. É também nos barcos, no tempo distendido da viagem, que mais tenho aprendido sobre os diferentes mundos que coexistem na Amazônia. 

As vezes me parece que a vida das pessoas na Amazônia toma forma na fricção entre dois mundos, entre duas formas de ser em relação ao território. Ou melhor, uma forma de vida em relação ao território, e outra desligada dele, sem vínculo com a terra. De um lado, as relações de pesca, caça, colheitas e plantios. Uma co-formação íntima entre pessoas e terra. Do outro, as imposições do mercado, formal e informal, a vida marcada por “dar um jeito”. Nisto, não muito diferente do modo como se estrutura o mercado de trabalho em sua forma contemporânea ao redor do mundo. Com um particular aterrorizante: a perversidade com a qual empreendimentos, maiores ou menores, transformam as pessoas que viviam naqueles locais em agentes da destruição de seus próprios mundos.

Cortado o vínculo com a terra – se é que esse corte é definitivo, já que é comum escutar de pessoas que deixam as capitais e grandes cidades do Norte para regressar à sua aldeia ou comunidade de origem. Assim, melhor dizer que quando colocado em suspensão esse vínculo imediato com a terra, aqueles que outrora viviam da floresta passam a compor uma massa de trabalhadores e desempregados que formam o grosso das cidades amazônicas. A massa, disse Elias Canetti, tende sempre ao crescimento e ao adensamento. Essa é a sua característica fundamental. Sua essência. A massa de trabalhadores amazônicos aumenta e se densifica conforme segue a destruição de seus territórios. Não por acaso, Canetti pensa a massa à imagem do fogo, que por tudo se alastra, tudo destrói, tudo equipara às cinzas.

Uma radiografia mais nítida daquilo que aconteceu, e segue acontecendo, em outros lugares. Uma máquina que há muito trabalha para transformar indígenas em pobres.

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Em reportagens, crônicas ou mesmo em minha própria pesquisa de doutorado em Antropologia, o que nos últimos anos tem me instigado é uma única e mesma questão. A busca por uma forma de escrita apropriada para narrar a destruição do território amazônico, a destruição das suas formas de vidas humanas, não humanas, extra-humanas. 

Uma escrita doída, sem dúvidas. Mas também uma escrita que busca refletir uma certa alegria – para a surpresa de muitos. Uma tentativa de alçar à superfície do texto um pouco dos conflitos e do medo, mas também da resistência da guerra-festa, usualmente escamoteada; do riso e do humor cotidiano com o qual as situações mais desesperadoras são muitas vezes vividas pelas populações amazônicas. A riqueza de um mundo que se destrói e suas estratégias de refazimento, como uma guerrilha que opera na surdina. Quase imperceptível. Mas não desprovida de potência e ânimo. Constante refraseamento das condições de vida que lhes são impostas.

Daí a busca por uma escrita do detalhe, do ruído, do dito-quase-quase-não-dito. Não escrever sobre. Não escrever com. Colocar minimamente em xeque o meu próprio mundo. Tentar enunciar um feixe desses outros mundos. A procura por uma escrita rasteira. Como coloca a cineasta e pensadora vietnamita Trinh T. Minh-ha, a busca por uma escrita de perto.

por Fábio Zuker
Mukanda | 7 Dezembro 2019 | Amazónia, Literatura