Terão os direitos humanos um continente ou nacionalidade?

A afirmação de que “não há hierarquias de opressão” - Audre Lorde - é fundamental para qualquer análise ética e universalista dos direitos humanos, pois exige uma visão abrangente, em que todos os tipos de sofrimento, violência e exclusão sejam considerados igualmente dignos de atenção e intervenção. Entretanto, deparo-me com uma difícil e dolorosa realidade, que me obriga a questionar: será que, na prática, os direitos humanos são de facto universais, ou existem vidas que, para algumas pessoas, valem mais que outras? Judith Butler, filósofa cujas reflexões sobre o valor das vidas humanas considero essenciais, aborda precisamente esta questão, ao perguntar quem realmente merece ser chorado, que corpos importam e porquê, quem tem direito à empatia e que existências afinal importam no cenário global.

Faço parte de vários grupos de WhatsApp, compostos por pessoas de diferentes nacionalidades, pessoas que se autodenominam defensoras dos direitos humanos. Em várias ocasiões, e em contextos de trabalho ou de militância, observei esses grupos a organizarem-se rapidamente em apoio a diversas causas: marchas, campanhas de sensibilização, ações concretas de denúncia. Participei nesses movimentos, sentindo-me parte de um corpo coletivo que acreditava na justiça, na solidariedade e na dignidade humana. No entanto, desde que Moçambique entrou numa situação de crise política e social grave no período pós-eleitoral, em outubro passado, o silêncio tem sido ensurdecedor.

Tentei, em mais de uma ocasião, colocar a situação moçambicana em discussão nesses grupos, esperando uma resposta semelhante àquela que vi para outras causas. Mas o que obtive foi um silêncio absoluto, quase como se esse sofrimento não fosse digno de ser reconhecido. Diante da indiferença, pergunto-me: será que existem hierarquias escondidas nos direitos humanos? Existem direitos humanos que se aplicam de forma igual a pessoas de África, Europa, América, Ásia, Oceânia, ou são eles influenciados pela geografia e cultura? É aceitável que, de forma seletiva, algumas vidas sejam protegidas, enquanto outras são ignoradas? Butler provoca uma reflexão crucial sobre isso ao argumentar que o valor de uma vida não deveria depender do local onde esta é vivida, nem de fatores étnicos, culturais ou geopolíticos. Mas, e na realidade, será que todas as pessoas que defendem os direitos humanos realmente acreditam que toda a vida humana é igual?

Este silêncio, este esquecimento de Moçambique, não pode ser considerado mera coincidência. Vários eventos em diferentes partes do mundo foram rapidamente reconhecidos e discutidos, mesmo quando os detalhes eram ainda vagos, mesmo quando a urgência talvez não fosse comparável ao sofrimento e à incerteza do futuro que se vivem hoje em Moçambique. Acredito que existe uma escolha – consciente ou inconsciente – sobre que lutas merecem atenção e apoio. Esse posicionamento seletivo, que revela uma espécie de “hierarquia” entre vidas, põe em causa o próprio conceito de direitos humanos e a autenticidade dos movimentos de solidariedade global.

Seria o continente africano, e particularmente Moçambique, relegado a uma “periferia” da preocupação dos direitos humanos? Será que, inconscientemente, ainda carregamos o peso de um olhar colonial, em que África e as pessoas africanas são vistas como eternamente em crise, como se os problemas no continente fossem normais e, portanto, indignos de atenção urgente? O filósofo Frantz Fanon abordou a desumanização estrutural que condiciona as perceções dos povos africanos, e aqui vejo um eco dessa verdade: o sofrimento em Moçambique, no Congo, Sudão, Somália, entre outros países africanos, não parece evocar a mesma empatia global que crises em outros locais do mundo.

Enquanto defensora de direitos humanos e parte desses grupos, sinto-me dividida entre a minha vontade de pertencer a este corpo global de resistência e o reconhecimento de que essa resistência, muitas vezes, exclui e invisibiliza as dores de certos povos. Não é fácil perceber que faço parte de grupos onde vidas são escolhidas, onde a solidariedade é, de certa forma, um privilégio e onde, para a pessoa ser ouvida e vista, depende do país em que se nasce. Este silêncio seletivo revela uma hipocrisia que precisamos de confrontar. Se realmente acreditamos que todas as pessoas merecem viver com dignidade e segurança, devemos questionar por que motivo Moçambique não recebe o mesmo apoio e por que as vozes das pessoas que clamam pelo fim da violência policial, pelo direito à liberdade de expressão, pela dignidade económica e social, pelo combate à corrupção, aos assassinatos, aos raptos e pela verdade eleitoral continuam silenciadas.

Retomando as palavras de Butler sobre a urgência e relevância do reconhecimento das vidas humanas, pergunto-me: qual é o critério não declarado para que um sofrimento seja reconhecido? É o valor económico, é a cor da pele, é o interesse geopolítico, ou é a proximidade cultural? Em última análise, o que define o valor de uma vida na perspectiva de quem defende direitos humanos? Vários países, especialmente aqueles em situações de conflitos prolongados ou regimes autoritários, veem as suas crises internas sistematicamente ignoradas pela mídia global, apesar das graves consequências para as populações. Estas são questões que não devemos mais ignorar, porque a falha em reconhecer e agir em prol de todas as vidas mina a nossa própria humanidade e enfraquece os princípios dos direitos humanos.

E então, eu pergunto: onde estão as vozes dos direitos humanos para Moçambique?

por Paula Machava
Mukanda | 13 Novembro 2024 | atenção, Direitos Humanos, empatia, liberdade, mediatismo, moçambique, repressão