Privilégio Negro

Farming (2019), de Adewale Akinnuoye-AgbajeFarming (2019), de Adewale Akinnuoye-Agbaje

Ao almoço, a minha tia pergunta se eu quero pão. Respondo que não. “Mas é escuro!” Eu e a filha mais nova olhamo-nos, franzimos a testa, encolhemos os ombros e soltamos altíssimas gargalhadas. A minha sobrinha, de quase sete anos, aproxima-se e diz: “O teu cabelo é igual ao desta boneca.” Uma Barbie negra, com um elegante vestido transparente improvisado pela dona (ciente já da importância da reutilização do plástico), cabelo desgrenhado, todo para cima, batom rosa. Toda a gente lá em casa tem o cabelo entrançado menos eu: quatro gerações de mulheres. Olho a boneca durante algum tempo. É mesmo igual, apesar de eu achar, ainda assim, que estou um pouco mais penteadinha. Mais tarde, quando regressa da catequese, toca-me o cabelo num gesto carregado de curiosidade e timidez, anuindo como quem confirma a sua teoria. A verdade é que, ainda outro dia, por entre colheradas de salada de batata, uma amiga observou: “O teu cabelo está mais comprido! Ou usaste um pente…?” As pessoas de cabelo encaracolado normalmente ganham um corte de cabelo sempre que o lavam e ele encolhe, mas aqui resulta ao contrário. Sim, finalmente encontrei o pente certo (depois de muito desesperar e procurar), por um euro e meio e com o cabo a terminar simbolicamente num punho cerrado. Prenda de aniversário para mim mesma. Em criança, eu nunca teria conseguido olhar para qualquer uma das minhas bonecas ou melhor, para as da minha irmã, que teve mais Barbies, e afirmar que a boneca era como eu ou alguém da minha família. Chegar aos trinta e cinco e usar frases como “No meu tempo não era assim.” Contar isto à minha irmã e ela rir-se muito, sobretudo com fotos em que o meu cabelo quase se funde com o da boneca.

 

Farming (2019), de Adewale Akinnuoye-AgbajeFarming (2019), de Adewale Akinnuoye-Agbaje

Na semana passada, nas memórias do Facebook, essa ferramenta de vergonha e gáudio, surgiram recordações de há dois anos. Uma frase que gerou polémica quer quando foi dita, quer quando a citei nas redes sociais. “As pessoas negras são tão privilegiadas”, dissera uma colega de trabalho alemã, certo dia em novembro. Pausa. Silêncio absoluto. Justificação. Respondi que são, por esse prisma, quando comparado com todos os outros aspectos em que o não são. Cinco dias depois, novamente no refeitório do trabalho, começou uma conversa com “Gostava de ter o teu tom de pele…” O que levou a risos, revirar de olhos geral e um “Lá está ela outra vez.” Em sua defesa, continuou: “Mas é verdade, as pessoas negras nunca têm de se preocupar em disfarçar que estão cansadas.” “Tão abençoadas”, retorqui. As hashtags são as novas aspas invisíveis, para quem não sabe, com a vantagem de já não termos de gesticular. Em ambos os casos, ela referia-se a maquilhagem. Poderia ter-se referido ao bronze, que é o mais comum, aquele encostar de braços para comparação, enquanto se anuncia que se vai ficar “da tua cor” ou “mais preta que tu”. Sem contextualização imediata, porém, certas frases podem e irão gerar desconforto. Por vezes mesmo se contextualizadas. Ela poderia, por exemplo, ter referido que, quando alguém nos anuncia e define ora em prol da nossa naturalidade ora da nossa nacionalidade, conforme precisa, isso é privilégio negro. 

A diferença é que, se feito por um negro, este sabe que é um jogo por vezes necessário. Já eu, que muito venho pensando neste termo e tomando nota de todas as vezes em que estou a beneficiar de tal privilégio, pergunto-me se foi isso que Kanye West quis fazer, mas em sentido inverso, quando usou aquele malfadado boné vermelho. Acontece que certas coisas não existem em dois sentidos. Apesar dos seus muitos momentos infelizes, continuo a apreciar West como artista. E não posso deixar de concordar quando afirma que, com o ódio-próprio, já nem precisamos de racismo. 

Por falar nisso, de todos os filmes que vi recentemente sobre o tema, nenhum ressoou tanto como Farming, dirigido pelo britânico Adewale Akinnuoye-Agbaje, que conheci em Lost, série na qual interpretou brevemente Mr Eko, um personagem de que gostei muito. Criado em Londres, Adewale conta a sua história desde que foi deixado pelos progenitores nigerianos ao cuidado de uma mãe branca adoptiva de várias crianças nigerianas, até à ida a África e choque com a cultura natal, ao regresso à casa em Tilbury e passar de vítima de um grupo de skinheads a fazer parte do mesmo. 

 

Winnie HarlowWinnie Harlow

Ainda dos “F-files”, revisito uma memória dessa semana, no ano seguinte, em que, à pergunta colocada pela formadora, “O que é que todas as pessoas negras têm em comum?”, eu -a única negra na sala- a interrompi imediatamente, dizendo “A sua beleza” e ela, apanhada desprevenida, repetiu isso mesmo “A sua beleza”, antes de prosseguir com o seu raciocínio inicial. Gostaria de lembrar-me do que ela realmente queria dizer, mas prefiro a minha memória incompleta, à qual nem sinto, realmente, que falte alguma coisa, porque me faz sorrir. A reinterpretação que Winnie Harlow fez de Marilyn Monroe, este Halloween, também me fez sorrir e pensar imediatamente em beleza. Antes de estarem no Facebook ou no Instagram, porém, as nossas memórias pertenciam-nos exclusivamente, e aos que as viveram connosco. 

Há uns seis anos a esta parte, sentada num banco entre o meu namorado da altura e a sua irmã, por ocasião do velório de um tio, aconteceu o seguinte: estávamos no Entroncamento, onde facilmente passava por exótica. Ninguém mais me conhecia. Um senhor, contudo, cumprimentou-me muito carinhosamente. Como já estou habituada a atitudes e palavras inesperadas de estranhos, limitei-me a encolher os ombros, a sorrir e a cumprimentá-lo também. Deveria estar a confundir-me com alguém, ou então era extremamente simpático. Algum tempo e muitas boas noites depois, uma senhora cumprimentou-me, segurou-me o rosto com as duas mãos e disse: “Eu tenho uma menina assim como você”. Era esposa do outro senhor. 

 

Sou muito do meu tempo. Escrevo e recordo tudo isto sentada numa cadeira, sozinha em casa, entre o colega de trabalho que uma vez disse que eu poderia roubar coisas com o meu cabelo, o filho de uma amiga que, para explicar à mãe que a namorada era negra lhe disse que ela era “Assim como a Gi”, e aquela velhota de Oeiras, fã de Fórmula 1, que se despediu de mim certa vez dizendo: “Adoro essa cor. Não perca essa cor!”

 

 

 

por Gisela Casimiro
Mukanda | 12 Novembro 2019 | cabelo, crónica, negro, privilégio, racismo