O velho e a lareira tardia

“vou morrer sem nunca ter sentado perto de uma lareira”,

o velho falou com misto de adormecimento e angústia, sentia que a morte lhe lambia a ponta dos pés, tinha as bochechas frias e as unhas duras assim de impossíveis mais de serem cortadas

“não seja por isso, inventa-se já aqui um pedaço de fogo”, disseram-lhe

Kader Attia, «Holly Land» 2006.Kader Attia, «Holly Land» 2006.

e assim fizeram, ajuntaram os madeirumes, galhos e secas substâncias, sentaram-no perto do local escolhido, lá fora, perto da noite e do céu estrelado, uma jovem buscou os óleos cansados e começou a massajar-lhe os pés, primeiro os doloridos calcanhares, depois o centro com a necessária pressão, a ponta dos dedos, e finalmente o dorso enrijecido pelas caminhadas solitárias na montanha

“se eu tivesse idade de agradecer, agora dava-lhe um beijo…”, murmurou o velho

a jovem sorriu em missão de continuar, os outros nada disseram, iam acender o fogo com um qualquer combustível químico

“não, assim não”, falou o velho, “vamos mesmo no método tradicional, galhos pequeninos e uma boa caixa de fósforos”

sorriram os mais-novos, fizeram-lhe a vontade, devagar, em cuidado e sopro, lá em cima um vento todo solitário fazia cuidado de embalar as nuvens, visão para os últimos olhares do velho, jogo de esconder e revelar o corpo e o desenho das estrelas, sabedoria dele só, improvisada, nada lógica, de saber ver o caminho das estrelas de ir e voltar, evitar os lugares das guerras, buscar água quando faltava, caçar se necessário fosse, ir dar notícias em jeito de também as receber

“quando há muita guerra, as pessoas esquecem de dar boas notícias”, revelava em fraca voz, “eu tinha assim que inventar tudo: o seu filho está bem, manda dizer só é que tem saudades, a sua filha casou, morreu um mais-velho, o ano passado quase nem choveu ainda, coisas assim que as pessoas precisam de ouvir, sentem-se mais perto da vida, tudo inventado… pra fintar a guerra, sabe?”, o velho falava a sério, os mais-novos pensavam que era o seu derradeiro delírio

“descanse, mais-velho, descanse”

o fogo ganhou labaredas de ser visto em seus amarelos dançantes, bailarinas línguas fogachadas a interromper o corpo da noite, as pontas saltitantes a brilharem no seu rosto de carreiros incontáveis, os pés menos ressequidos absorvendo os óleos pelos dedos da menina, os olhos circundantes na estranha espera do fechar dos seus olhos, o velho respirando devagar para saber dos odores do fogo, os olhos semi-fechados em abertura de fazer espreitamento do fogo,

“ai, meu deus, esta é a minha maior alegria, uma lareira de verdade, assim nós a vermos um fogo sem ser de armas nem bombas, o descanso só… obrigado, meus filhos… obrigado mesmo”, a lágrima a fingir que não era modo de emoção e sim suor de nenhum calor que ali fazia, o velho, quieto, o seu rosto a ver o rosto da menina quase quieta – só os dedos em afago de perfeição e brandura, o seu pé adormecendo primeiro, a despedida horizontal nas sensações que o invadiam,

primeiro a ponta do pé, alquebrada, num sono calmo e duro a subir-lhe pelo corpo, ele com medo que a acalmia lhe chegasse aos lábios (“nem tive só tempo de contar a estes jovens uma estória de nenhum esquecimento…”), ou, pior, que esse mais forte acalmar lhe chegasse aos olhos, impedindo-lhe a visão apaziguadora do fogo, o corpo adormecia-se repentino numa lentidão que era delicada e agradável, por momentos sentiu que voava quieto, com a leveza toda misteriosa de uma pedra, quis dizer que se sentia entregue aos modos do vento e já só viu a noite – o fogo dissipou-se do seu olhar, as estrelas se apagaram como se em fuga e, em vez de falar com as forças que já não tinha, o velho esticou o dedo

um dedo certeiro, fugaz e último, tocou a ponta acesa do seio da menina – que acordou um pouco o olhar, não disse nada, nada fez, não denunciou o gesto de erotismo definitivo e prosseguiu, lenta e frágil, com os círculos que a sua mão imprimia naqueles pés cansados, primeiro os doloridos calcanhares, depois o centro, a ponta dos dedos, e finalmente o dorso enrijecido pelas caminhadas na montanha,

a menina que, assim,

quase escutou o velho dizer “se eu tivesse idade de agradecer, agora dava-lhe um beijo”.

por Ondjaki
Mukanda | 19 Maio 2011 | literatura angolana, Ondjaki