O Bebé

Boémio por excelência, Marhulane conhecia a noite como ninguém. Dormia até o sol se pôr, e, quase que num impulso de mola, saltava para a vida com o nascer do cinzento que o crepúsculo trazia. Exímio guitarrista, desafiava os rasgados agouros das corujas com acordes de labor elevado que arrancava da sua caixa acústica, tão amada como a sua esbelta Margarida, que embora se lamentasse do noctívago homem, a ele não poupava atenções e carinhos. Nisso ela não era austera. E, assim, lá iam levando a vida.

- Essa tua vida de perseguir a noite… - interjeitava sempre Margarida, cada vez que Marhulane se despedia para a casa de alterne de terceira classe onde ganhava e perdia a vida todas as noites. Criada numa família de crenças e tradições fortes e muito presentes, Margarida ouvira recorrentes vezes a avó dizer que a noite é o espaço e o tempo de encontro com os espíritos dos antepassados. Que estes visitavam os seus entes e traziam mensagens e bênçãos que levavam de volta ao além quando a ausência do eventual anfitrião no sono frustrava o intento e o enlace.

As excentricidades de Marhulane, seu homem de eleição, inquietavam-na e assustavam-na, quando pensava no castigo que os espíritos, irados por tão repetidas visitas em vão, pudessem aplicar. Mas Marhulane, pouco dado a crenças e amigo da boémia e dos prazeres da vida, tomava a preocupação da mulher apenas como uma simples tontice supersticiosa.

- Oh mulher! Deixa a vida me levar… - Marhulane retorquia sempre, com humor, às advertências da sua esbelta Margarida.

E lá ia, guitarra alçada às costas, arma em riste à busca do prazer no breu da noite.

Remediado na vida, o boémio construira uma casa de madeira-e-zinco, encimada, no interior, por um tecto falso de unitex pintado de branco, que lhe dava a alvura das manhãs que não conhecia, porque vivia de noite. Mas tudo naquela casa era amor, fervor e felicidade. Que espíritos seriam esses, cansados de visitar casal tão feliz, onde quando um dormia outro acordava e a luz se mantinha acesa?

Erguida próxima da reentrância entre o asfalto e a areia, separavam-na das luzes e até adornavam a entrada um sem número de eucaliptos que, imponentes na sua elevação, sombreavam o espaço e escondiam segredos do tempo e do lugar, mas não as sombras que perseguem sempre o seu Homem. Não houve noite em que Marhulane voltasse sóbrio à casa. Trazia nas veias a adrenalina do alterne e a excentricidade de fazer para a vida as suas próprias “leis”. Marhulane via na vida, quando as névoas do toldo da noite o não cegavam, a partida e a chegada do prazer. O resto, que resto? Não existia!

Um dia, madrugada adentro, cumprida a jornada, Marhulane regressava a casa, espevitado e alegre como sempre. Assoma à areia do seu ponto de entrada e sente-se já quase em casa. Quando atravessa a flora dos eucaliptos, defronte de sua casa-de-madeira-e-zinco, ouve o choro desalmado de um bebé: sozinho, abandonado e reclamando socorro.

Os gemidos do bebé sobem na noite a cada passo que dá. Estridentes, recordam a Marhulane os estridentes acordes das melodias com que havia enchido a casa de alterne onde dia-a-dia ganha e perde noites.

O seu coração balança sensibilizado, e decide levar o bebé envolto em lençóis brancos que visualiza, estirado no chão arenoso defronte da sua casa para lhe dar conforto e dar, do bom coração de sua Margarida, o calor que a mãe que o abandonara não teve. Carinhoso, cheio de amor à vida, leva ao colo o bebé chorão, enchendo-o de beijos, carícias, carinhos e apelos de serenidade. Feliz e seguro de quem faz uma boa acção, de quem os espíritos só se podem orgulhar, caminha com vigor. Toldado porém, ainda da noite de alterne, leva tempo a aperceber-se que o bebé cresce a olhos vistos em seus braços e ergue-se ao tamanho dos eucaliptos em volta. Do choro desalmado, impera já, ordenando e exigindo ao pobre do guitarrista a satisfação de direitos alegadamente insatisfeitos quando ele estava ainda em vida… Marhulane desperta para a realidade e atira o bebé ao chão.

Este, já em voz, tom e corpo adulto, impele:

- Agora, deixa-me onde me encontraste!

O exorcismo a Marhulane, por um curandeiro, na casa de madeira-e-zinco, deu razão a Margarida, que, entre lágrimas e um sorriso amarelo, proclamava sem parar:

- Eu não te disse…?

 

Conto retirado do livro “7 Estórias de meter medo”, AEMO – Colecção Karingana, Maputo.

por Hilário Matusse
Mukanda | 7 Abril 2011 | contos, literatura moçambicana, Literatura oral