Manual para Incendiários e Outras Crónicas #2 - PRÉ-PUBLICAÇÃO

Este livro é um conjunto de crónicas publicadas entre 2000 e 2009 na imprensa portuguesa e moçambicana (Jornal de LetrasSavanaÁfrica Lusófona e Angolé), cujo fio condutor é a ironia do processo de escrita. Repositório humorado das reflexões do autor-cronista sobre a actualidade, Manual para Incendiários e Outras Crónicas prima pelo olhar mordaz e apaixonado sobre a literatura, a identidade moçambicana, a aculturação e a intromissão ocidental. Crónicas desenvoltas que abarcam a Europa, África e as suas gentes, são uma visão destes dois mundos aliada a um vívido humor.

ALMANAQUE DE LEMBRANÇAS

Segundo as últimas notícias, a literatura moçambicana acabou. Um pré-aviso para este fim inglório, agora anunciado, surgiu há cerca de dois anos quando um grupo de jovens decretou a sua morte. Dada a abolição da pena de morte da ordem jurídica e penal do país, a sentença então pronunciada foi alvo de alguma polémica e causou agitação nos potenciais candidatos ao tenebroso corredor. Ao que tudo indica, quer as providências cautelares quer os recursos interpostos não surtiram o efeito desejado e a sentença final acaba agora de ser proferida. Desconhece-se ainda o teor do acórdão. 

Resgatam-se para o almanaque de lembranças algumas imagens, memórias, livros avulsos, versos soltos, primeiros parágrafos de romances e novelas. Parte desse espólio beneficiará, sem dúvida, do soberano princípio da não-retroactividade da Lei. Ao que tudo indica, sobreviverá ainda a literatura oral, dado não existir nenhuma referência a ela no lead ou corpo da notícia que aqui comentamos. 

Abolida por bula papal a condição de limbo para as crianças mortas não baptizadas, supõe-se que os muitos defuntos abrangidos por esta sentença mortífera – et pour cause − possam vir a beneficiar da citada decisão pontifícia. 

Ao que tudo indica, a decisão dos juízes, embora ainda passível de recurso para o supremo, baseou-se em estudos sobre a literacia e iliteracia grassando nas novas gerações, mais dadas a exercícios de hip-hop, práticas desportivas em consolas, leitura de legendas de DVD, divertimentos sexuais avulsos, aturado conhecimento de roupas de marca e incontrolável desejo de coleccionar artefactos automotorizados. Com as excepções da praxe, não consta nenhum hábito coleccionista de obras completas, mesmo em edições paperback. Quando, num inquérito, se perguntou a um jovem sobre o nome de Tolstoi a resposta foi célere: depois dos Nivas e dos Ladas, só um idiota chapado é que ia agora comprar lataria russa. «O mercado oferece produtos muito melhores, de alta cilindrada e de grande aceitação entre as mulheres», rematou o entrevistado. Alguns observadores viram nesta resposta um claro sinal de evolução nos hábitos de consumo da população, aliás, a condizer com as excelentes taxas de crescimento macroeconómico que o país vem registando. 

Indício de que a última geração da literatura moçambicana se dedicava afincadamente a actividades mais saudáveis é a alusão ao amplo uso da charrua, presume-se que no intervalo dos trabalhos de escrita propriamente ditos. 

Para a história ficam alguns títulos e nomes, cuja lista será publicada em tempo oportuno. Espera-se a constituição da comissão respectiva. 

Dada a impossibilidade de redigir um obituário de futuros, não obstante a propensão para o surgimento de fantasmas e de outros intrusos mais ou menos inclassificáveis, a associação dos críticos e professores de literatura tornou público um comunicado a protestar contra o acórdão e a pôr em causa os seus pressupostos. Prevêem-se diversas iniciativas de âmbito sindical e algumas acções de agit-prop nas ruas das principais cidades do país, com leituras non-stop e algumas adaptações teatrais. Uma facção mais radical chegou mesmo a comparar o conteúdo do acórdão à famosa e tristemente célebre queima de livros organizada por Goebbels, ministro do Terceiro Reich. 

Videntes entretanto consultados argumentaram com a possibilidade de haver algum exagero nas conclusões publicadas. Um deles, com manifesto sentido de humor, chegou mesmo a citar um obscuro escritor americano: Mark Twain. 

O Almanaque de Lembranças, indiferente a esta insólita situação, noticiou na sua última edição o regresso à Ilha de Moçambique do mancebo e cavaleiro Campos Oliveira, em vapor proveniente de Goa. Entusiástica e gorda de encómios, a prosa dava conta de um sarau a ter lugar no teatro da capital com madrigais e redondilhas e cumprimentos às senhoras, seguido de soirée no Palácio de São Paulo. Esperam-se próximos desenvolvimentos e – porque não augurar? – novas obras.

MANUAL PARA INCENDIÁRIOS E OUTRAS CRÓNICAS de Luís Carlos Patraquim

Ed Antígona   (184 pp 15 eur)

 

por Luís Carlos Patraquim
Mukanda | 4 Outubro 2012 | literatura moçambicana