Declaração de guerra 1

Em 1960, eu tinha 20 anos, chamaram-me para a tropa. Fiz o curso de sargentos milicianos e fui graduado como furriel no dia de embarque para Angola, em 5 de Maio de 1961. A sede da companhia era em Muxaluando. Protegíamos as colunas de camionetas que nos traziam comida e as que transportavam o café das plantações. Era necessário desimpedir os itinerários. Os turras destruíam pontes, atulhavam as estradas com árvores, abriam buracos onde cabia um carro e camuflavam os buracos, punham estacas de madeira afiadas no fundo. Eu comandava uma secção de onze homens. Estivemos dois meses destacados numa fazenda para proteger os colonos e a cultura do café. A fazenda foi atacada uma vez, ripostei, eles não apareceram mais.
vai tudo correr bem | 2015 | Pedro Valdez Cardosovai tudo correr bem | 2015 | Pedro Valdez Cardoso
Em Mucondo, cavámos abrigos em círculo à volta do aquartelamento. No segundo dia apercebi-me de barulhos na mata, o vigia não ouviu nada… Eu disse para terem prontas as granadas de morteiro 60. Minutos depois, ouviu-se um apito, eles apareceram aos gritos de “Upa! Upa!”, um alarido dos diabos, eram uns 450, soubemos mais tarde. Alguns saltaram o arame farpado e vieram morrer sobre os parapeitos dos nossos abrigos. Matámos muitos a tiro de espingarda semiautomática e metralhadora. Contámos para cima de 100 mortos. Nós não tivemos baixas. Interrogámos os sobreviventes: que brancos é que mataram, em que região atuaram. Depois, eram abatidos com um tiro de pistola Mauser, na testa. A um, que estava muito ferido, eu disse: “A tropa não te pode fazer nada, o que queres antes de morrer?” Ele pediu água, eu disse ao soldado para ir buscar água mas fiz-lhe um sinal para não ir, não seria necessário. Peguei na espingarda-metralhadora FBP, que não era fiável, fiz um disparo para o matar, mas saiu ao lado. Disse ao soldado: “Ó 235, mata o indivíduo”. O soldado encostou-lhe a Mauser à testa e matou-o. A partir daqui, fiquei a pensar que não o devia ter feito, mas por outro lado o indivíduo não se podia safar, morreria à mesma…
A minha secção foi reforçar um pelotão no mato. Aproximámo-nos de um rio e, no outro lado, perto da água, num terreno em declive, vimos a mandioca a mexer. Dei ordens para disparar. Ouvimos um choro de crianças, suspendi o fogo. Seriam macacos? Dizem que os macacos choram como crianças. Mandámos uma árvore abaixo e a minha secção atravessou o rio sobre a árvore. Fomos descobrir cinco mulheres e três crianças. Uma das mulheres estava ferida. Mandei dois homens subir o terreno para ver se havia alguém que nos pudesse atacar, não avistaram ninguém. Trouxemos as mulheres e as crianças. A que estava ferida foi carregada pelos soldados numa padiola feita com paus e vestuário delas. Quando estávamos a atravessar a árvore, esta cedeu, a água chegava-nos até ao pescoço, a mulher ferida ficou submersa, mas safámo-la. Já em terra, eu disse ao alferes: “A mulher ferida… mata-se?” O alferes disse para eu fazer o que quisesse. Mandei as crianças para longe, ficou só aquela mulher. Lembrei-me do que tinha sido no Mucondo, disse aos soldados: “Quem é que mata a mulher?” Ninguém se ofereceu. “Então vamos carregar com ela.” Fomos a corta-mato até ao jipão que estava distante, subindo e descendo. Pusemo-la no jipão, ela a esvair-se em sangue. Morreu no caminho.
Os feiticeiros diziam-lhes que para matar o branco era preciso cortar cabeças, e que a bala do branco era água. Era preciso mostrar-lhes que a bala do branco matava. Não fazíamos prisioneiros, eles também não.
Púnhamos as cabeças dos turras espetadas em paus para quando os amigos deles passassem verem que a bala do branco não era água.
Fomos atacados entre a Roça Portugal e o Mucondo. O veículo GMC e o jipe com a metralhadora Breda iam à frente, nós seguíamos em fila. Eles atacaram de manhã cedo, estava ainda escuro. Usavam catanas, canhangulos e algumas metralhadoras que tinham sacado aos chefes de posto. Matámos os tipos todos. Tirei fotografias das cabeças espetadas em paus, para mais tarde se mostrar. Alguém disse que alguns dos turras eram antropófagos e eu acreditei. Os corpos eram enterrados numa vala, aberta com buldozers. Passados quinze dias, passei outra vez ali, tinha chovido muito, a vala estava revolvida, viam-se braços, pernas.
Finda a comissão, de dois anos e meio, voltei para casa e empreguei-me no escritório de uma empresa de transportes. Tenho 78 anos, uma filha de 54 e uma neta de 27.
Quando acontece algo que eu não goste, vou buscar uma imagem de guerra. Se vejo um acidente, transponho para um ataque em que dois ou três inimigos ficam estatelados. Não são recordações reais, são imagens genéricas de ataques com mortos. Há uns anos sonhei que tinha sido colocado em Angola como civil, em Luanda… dão-me uma pistola-metralhadora e mandam-me para a frente, eu nas esquinas a procurar inimigos… Fartei-me de rir.
Gosto de falar de temas de guerra com camaradas, sinto-me aliviado. Já me perguntaram se tenho sentimentos de culpa e eu disse que não. Não me sinto culpado nem tenho remorsos, por atos cometidos ou omitidos.

 

Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº 648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.

por Vasco Luís Curado
Mukanda | 24 Junho 2018 | guerra, guerra colonial, memória, narrativa, trauma