De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro

1Toussaint l’OuvertureToussaint l’OuvertureA relação que aqui se estabelece entre Toussaint L’Ouverture2 e Fidel Castro não se deve ao facto de ambos terem liderado revoluções nas Caraíbas. Também não se trata de uma periodização conveniente, ou de tipo jornalístico, do tempo histórico. Aquilo que aconteceu na colónia francesa de São Domingo em 1792-1804 ressurgiu em Cuba em 1958. A revolução de escravos de São Domingo conseguiu emergir por

“…entre o assalto e as terríveis pontas exaltadas

 de oponentes temerosos”3

 

Decorridos cinco anos, o povo de cubano continua a debater-se com as mesmas dificuldades.

A revolução de Fidel Castro é um produto do século XX, tal como a revolução de Toussaint foi um produto do século XVIII. Mas, embora separadas por um intervalo de mais de século e meio, ambas as revoluções são caribenhas. Os povos que as fizeram, os problemas que enfrentaram e as tentativas empreendidas para os solucionar são tipicamente caribenhos, resultantes de uma origem e de uma história específicas. A primeira vez que os caribenhos tomaram consciência de si como povo foi durante a Revolução Haitiana. Independentemente do seu desenlace final, a Revolução Cubana assinala a etapa final da demanda caribenha de uma identidade nacional. O processo que ocorreu num conjunto de ilhas heterogéneas e dispersas consiste numa sucessão de períodos descoordenados com fins diversos, pontuado por ímpetos, saltos e catástrofes. Mas o movimento que é lhe inerente é nítido e forte.

revolução haitiana revolução haitiana

A história das Caraíbas foi dominada por dois factores: a plantação de cana-de-açúcar e a escravatura negra. O facto de a maioria da população cubana nunca ter sido escrava não afecta os fundamentos da sua identidade social. Essa realidade impôs-se como padrão onde quer que existissem plantações de cana-de-açúcar e escravatura. Trata-se de um padrão original, que não é europeu nem africano, não pertence ao continente americano, nem é nativo deste continente, em qualquer acepção do termo, mas sim caribenho, sui generis, sem paralelo em qualquer outra parte do mundo.

A plantação de cana-de-açúcar constituiu a influência mais civilizadora, bem como a mais desmoralizadora para o desenvolvimento das Caraíbas. Quando, há três séculos, os escravos começaram a chegar às ilhas caribenhas, foram imediatamente introduzidos no sistema latifundiário das plantações, um sistema moderno que os obrigava a viver em conjunto, numa relação social muito mais próxima do que qualquer proletariado da época. A cana-de-açúcar, quando colhida, tinha de ser rapidamente transportada para a unidade fabril. Depois o produto era exportado para ser vendido no estrangeiro. Mesmo os panos que os escravos usavam e a comida que ingeriam eram importados. Por conseguinte, os negros viveram desde o início uma vida essencialmente moderna. É essa a sua história – e tanto quanto me foi dado descobrir – é uma história única.

revolução cubanarevolução cubana

Durante a primeira metade do século XVII, os primeiros colonos vindos da Europa tinham tido um considerável sucesso a nível da produção individual, mas foram expulsos pelas plantações de cana-de-açúcar. Os escravos aperceberam-se de que, à sua volta, existia uma vida social dotada de uma determinada cultura material e bem-estar, a vida dos proprietários das plantações de cana-de-açúcar. Os astutos, os afortunados e os ilegítimos tornaram-se escravos domésticos ou artesãos ligados às plantações ou aos engenhos. Muito antes do aparecimento do autocarro ou do táxi, já a pequena dimensão das ilhas tornara fácil e rápida a comunicação entre as zonas rurais e urbanas. Os proprietários das plantações e os comerciantes viviam uma vida política intensa, em que os altos e baixos da produção de açúcar e, mais tarde, o tratamento e o destino dos escravos desempenhavam um papel crucial e contínuo. O sistema das plantações de cana-de-açúcar dominava de tal modo a vida nas ilhas que bastava a pele branca para proteger aqueles que não eram proprietários de plantações ou burocratas das humilhações e do desespero da vida de escravo. Este era, e ainda é, o padrão dominante da vida nas Caraíbas.

O período entre Toussaint L’Ouverture e Fidel Castro divide-se, de forma natural, em três fases: I. O século XIX; II. O período entre guerras; III. O período que se seguiu à II Guerra Mundial.

 

I. O SÉCULO XIX

revolução haitiana revolução haitiana Nas Caraíbas, o século XIX é o século da abolição da escravatura. Contudo, o passar do tempo mostra que o modelo decisivo de desenvolvimento caribenho tomou forma no Haiti.

Toussaint não conseguia ver outra saída para a economia haitiana senão as plantações de cana-de-açúcar. Dessalines4 era um selvagem. Depois de Dessalines veio Christophe5, um homem com capacidades evidentes e, atendendo às circunstâncias, um governante iluminado. Também ele tentou lidar da melhor forma possível (embora de forma cruel) com as plantações. Mas, com a abolição da escravatura e a conquista da independência, a defesa das plantações, indelevelmente associadas à escravatura, tornou-se insustentável. Pétion6 aceitou substituir as plantações de cana-de-açúcar por uma agricultura de subsistência.

Durante o primeiro século e meio de existência do Haiti, não havia qualquer opinião internacional ciosa da independência de pequenas nações; nem existia um conjunto de estados similares dispostos a protestar alto e a bom som contra qualquer ameaça a um deles; nem tão pouco existia qualquer teoria de ajuda dos países ricos aos países mais pobres. A produção de subsistência teve como consequência a degradação económica e distúrbios políticos de toda a ordem. Contudo, preservou a independência nacional e daí resultou algo de novo que se estendeu a (todo) um continente e que agora está representado nas instituições mundiais.

Eis o que aconteceu. Depois da independência, os haitianos tentaram reproduzir, por mais de um século, a civilização europeia, isto é, a civilização francesa nas Índias Ocidentais. Atente-se às palavras proferidas pelo embaixador do Haiti , M. Constantin Mayard, em Paris, em 1938:

Fidel CastroFidel Castro

São francesas as nossas instituições, francesa a nossa legislação pública e civil, francesa a nossa literatura, francesas as nossas universidades, francês o currículo nas nossas escolas…

Hoje em dia, quando um de nós [um haitiano] surge num grupo de franceses, há “sorrisos de boas-vindas nos olhos de todos os presentes.” O motivo para isto reside, sem dúvida, no facto de a vossa nação, senhores e senhoras, saber que, no âmbito da sua expansão colonial, deu às Antilhas, e acima de tudo a São Domingo, tudo o que podia dar de si e da sua substância… Foi aí que fundou, com base no seu modelo nacional próprio, com o seu sangue, a sua língua, as suas instituições, o seu espírito e a sua pátria, um tipo local, uma raça histórica, em que a sua seiva ainda corre e que aí se refaz totalmente.

 

Geração após geração, os melhores filhos da elite haitiana foram educados em Paris. Distinguiram-se na vida intelectual francesa. O ódio racial inflamado dos tempos que haviam antecedido a independência desaparecera. Mas uma série de investigadores e viajantes expusera ao ridículo internacional as pretensões ocas da civilização haitiana. Em 1913, o ataque incessante da imprensa estrangeira foi reforçado pelas baionetas dos comandos americanos. O Haiti teve de encontrar um factor de união nacional. Procuraram-no no único local onde poderia ser encontrado, em casa, ou mais precisamente, no seu próprio quintal. Descobriram aquilo que hoje é conhecido como negritude. É a ideologia social predominante entre políticos e intelectuais de toda a África. É tema de acaloradas elucubrações e disputas, sempre que se discute a África e os africanos. Mas, no que respeita à sua origem e evolução, a negritude é caribenha e não poderia ter sido senão caribenha, resultado peculiar da sua história peculiar.

 

(…) 

continue a ler em:

MALHAS QUE OS IMPÉRIOS TECEM. TEXTOS ANTI-COLONIAIS, CONTEXTOS PÓS-COLONIAIS 2

Índice

Manuela Ribeiro Sanches, Viagens da teoria antes do pós-colonial

Agradecimentos

I – Viagens transnacionais, afiliações múltiplas

W. E. B. Du Bois, Do nosso esforço espiritual

Alain Locke, O novo Negro

Léopold Sédar Senghor, O contributo do homem negro

George Lamming, A presença africana

C. L. R. James, De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro

Mário de (Pinto) Andrade, Prefácio a Antologia Temática de Poesia Africana

II – Poder, colonialismo, resistência trans-nacional

Michel Leiris, O etnógrafo perante o colonialismo

Georges Balandier , A situação colonial: uma abordagem teórica

Aimé Césaire, Cultura e colonização

Richard Wright, Tradição e industrialização

Frantz Fanon, Racismo e cultura

Kwame Nkruhmah, O neo-colonialismo em África

Eduardo Mondlane, A estrutura social – mitos e factos

Eduardo Mondlane,  Resistência - A procura de um movimento nacional

Amílcar Cabral, Libertação nacional e cultura

 

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  • 1. C. L. R. James, “Appendix. From Toussaint L’Ouverture to Fidel Castro”, The Black Jacobins. Toussaint L’Ouverture and the San Domingo Revolution. 2nd edition, revised. New York: Random House 1963, pp. 391-418. Tradução de Marina Santos. Revisão de Maria José Rodrigues e Manuela Ribeiro Sanches.
  • 2. Toussaint l’Ouverture (1743-1803). Principal líder da revolta dos escravos na colónia de Santo Domingo, designada de República do Haiti em 1804. Tendo sido capturado pelas tropas napoleónicas, enviadas à ilha para restabelecer o domínio metropolitano, Toussaint l’Ouverture viria a morrer no cativeiro em França no ano de 1803. (N.T.)
  • 3. William Shakespeare, Hamlet. trad. António M. Feijó. Lisboa: Cotovia 2007, p. 162.
  • 4. Jean-Jacques Dessalines, líder haitiano (1758 –1806). Proclamou a independência da República do Haiti em 1804, tendo-se auto-designado mais tarde seu imperador (N.T.).
  • 5. Jean Christophe (1767-1820), líder haitiano, proclamado presidente da República do Haiti, em 1806, depois da morte de Dessalines, em cujo assassínio poderá ter estado implicado e a quem sucedeu. Mais tarde, autonomeou-se rei dos territórios a Norte da ilha. O seu destino trágico inspirou o drama de Aimé Césaire, La Tragédie du roi Christophe. Paris: Présence africaine, 1963 (N.T.).
  • 6. Aléxandre Pétion (1770-1818), líder haitiano, rival de Christophe a quem sucedeu, depois da sua morte, como presidente da República do Haiti. (N.T.)
Translation:  Marina Santos

por C.L.R. James
Mukanda | 31 Maio 2011 | Caribe, Fidel Castro, Haiti, identidade, Toussaint L’Ouverture