Passaporte universal e representação nacional: participação da Tunísia na 57ª Bienal de Veneza

A participação da Tunísia nesta Bienal de Veneza é a primeira desde 1958. The Absence of Paths é o título do projeto de performance interativa e instalação que pode ser visitado, até ao dia 26 de novembro, em três diferentes pontos da cidade de Veneza. Aclamado pela crítica e listado em diversos sites especializados como um dos pavilhões nacionais imperdíveis desta Bienal, o projeto aborda o tema da imigração a partir da instalação de quiosques que emitem “passaportes universais” e freesas, vistos que contam com a impressão digital do visitante e informações invariáveis de origem (desconhecida), destinação (desconhecida) e status (migrante). A fim de assegurar a alta qualidade destes documentos e sua acuidade técnica, uma parceria com uma empresa da área de segurança foi estabelecida.

Installation view of the tunisian pavilion, The Absence of Paths, at la Bienalle di Vinezia, photography by Luke WalkerInstallation view of the tunisian pavilion, The Absence of Paths, at la Bienalle di Vinezia, photography by Luke Walker

Os funcionários-performers que recebem o formulário preenchido pelo visitante e emitem o referido documento são tunisianos que viveram experiências migratórias frustradas. Neste sentido, a institucionalidade da Bienal torna-se um instrumento que viabiliza, mesmo por um período de tempo limitado, a migração legal destes mesmos sujeitos para a Europa. A ideia de instaurar em Veneza um microcosmo de nosso mundo contemporâneo, no qual observamos este incremento de controle oriundo dos estados nacionais sobre os processos migratórios, potencializa a abertura da esfera institucional da arte a um debate mais do que necessário, como dão conta os dados reunidos nas páginas centrais do documento universal de viagem, que é entregue ao visitante-participante da ação.

No referido documento, uma série de dados muito elucidativos do cenário geopolítico contemporâneo são apresentados: “Em 2015, 65.3 milhões de pessoas foram deslocadas à força de suas casas. Se fossem uma nação, sua população constituiria o 21º maior país do mundo”; “A Rainha Elisabeth II é a única pessoa no mundo que não precisa trazer passaporte”; “O sorriso foi banido da fotografia do passaporte em 2004”; “O documento menos falsificável no mundo é o passaporte da Nicarágua, que apresenta 89 características individuais de segurança”; “O passaporte alemão é o mais poderoso do mundo, com dispensa de visto para ingresso em 176 países dos 218 possíveis. Portadores de passaportes afegãos podem visitar apenas 24”, “54% de todos os refugiados ao redor do mundo vem de apenas três países: Síria, Somália e Afeganistão”.

Todos estes dados, reunidos no documento que lemos no contexto de uma exposição de arte, concentram e tornam visíveis os absurdos de uma situação que cotidianamente acaba por se banalizar em sua onipresença midiática. Os dados no passaporte são escritos em linguagem econômica, apresentados isolada e objetivamente, cabendo ao leitor, quando passa de uma informação à outra, estabelecer os nexos que levam à inexorável conclusão: há uma monstruosa assimetria definindo a geopolítica contemporânea. Tal assimetria vincula-se, em grande medida, ao hífen que liga o político ao econômico. Até aqui, tudo faz muito sentido. A potência política e a eficácia crítica do pavilhão tunisiano não são passíveis de grandes problematizações.

Installation view of the tunisian pavilion, The Absence of Paths, at la Bienalle di Vinezia, photography by Luke WalkerInstallation view of the tunisian pavilion, The Absence of Paths, at la Bienalle di Vinezia, photography by Luke Walker

Mas há um elemento nas escolhas que culminaram nesta participação da Tunísia em Veneza que, se não podemos criticar cega ou ingenuamente, devemos pelo menos pensar sobre. Lina Lazaar, curadora do pavilhão, inspirou-se na Pangéia, um supercontinente que existiu entre o fim da era Paleozoica e o início da era Mesozoica, para pensar este mundo utópico, livre de fronteiras, que o projeto propõe. Com cuidado para não nos vincularmos a uma noção demasiadamente institucionalizada da arte, precisamos sinalizar o incômodo provocado pela ausência de obras de artistas tunisianos nos espaços da Bienal, ocupados pelo eloquente projeto da curadora.

A participação dos artistas tunisianos no projeto de Lazaar está referida na plataforma on-line (www.theabsenceofpaths.com). Talvez em virtude da visibilidade obtida por artistas africanos na Bienal de Veneza de Owkui Enwezor em 2015, esta presença virtual pareceu-nos, comparativamente, pouco estratégica do ponto de vista da disputa geopolítica no campo da arte e da consolidação de um lugar que vem sendo conquistado internacionalmente pela arte contemporânea produzida na África. A visibilidade dos artistas africanos na Bienal de 2015 converteu-se tanto num maior conhecimento internacional acerca da produção do continente, quanto numa maior inserção institucional e comercial destes artistas, dentre os quais alguns bastante jovens como é o caso do tunisiano Nidhal Chamekh.

Evidentemente, a curadoria de um pavilhão nacional num evento como a Bienal de Veneza implica escolhas difíceis. A centralidade conferida ao tema da imigração parece ter sido uma escolha feliz e acertada, como podemos verificar a cada notícia sobre fechamento de fronteiras e levantamento de muros. O acerto da escolha temática também pode ser verificada no efetivo engajamento dos visitantes com o projeto. Acontece que na Tunísia, as dificuldades migratórias não são alheias aos artistas, o que acaba por confinar a produção artística tunisiana em seu próprio território ou no de países vizinhos, sobretudo nos francófonos Argélia e Marrocos.

Talvez o problema do projeto de Lazaar esteja, por um lado, numa ideia hipertrofiada da função social da arte e, por outro, numa negligência do contexto de recepção de um pavilhão nacional no quadro de uma Bienal como a de Veneza. Ao mesmo tempo em que a proposta de Lazaar parece apostar no potencial transformador da arte, ela opta por não apresentar no espaço físico da Bienal nenhum projeto artístico, criando uma plataforma virtual para acolher tais projetos. E esta escolha inclui os artistas mas, ao mesmo tempo, parece excluí-los, concentrando os olhares dos visitantes, críticos e representantes de instituições mais sobre a proposta curatorial-performática de Lazaar do que sobre a produção de um ou mais artistas do país.

E este efeito, se não é fruto de uma perspectiva que reivindica o curador como artista – e projetos anteriores de Lazaar não apontam para esta pretensão como parte de sua prática curatorial –, pode ser lido a partir da negligência mencionada acima. A escala monumental de uma Bienal como a de Veneza submete seus visitantes a uma avalanche imersiva de obras, informações e experiências que nos deixam bastante céticos acerca da visibilidade de artistas expostos em um espaço virtual on-line, que deve ser visitado como uma espécie de “dever-de-casa”, depois desta maratona artística. Se a plataforma on-line permite àqueles que não podem ir à Veneza entrar em contato com uma série de trabalhos, ela não parece substituir a eficácia político-institucional de uma presença no espaço da Bienal.

Tudo dentro da problemática lógica da representação nacional deve ser pensado nos termos de estratégias e táticas. The Absence of Paths assinala o problema do nacionalismo, estruturante da própria Bienal de Veneza. Ao mesmo tempo, parece abrir mão de um espaço que poderia despertar  curiosidade internacional pela efervescente cena artística tunisina, culminando numa efetiva melhoria das condições de trabalho dos artistas do país. Se a internet parece ser a parte, já realizada, deste utópico mundo sem fronteiras, abandonar o corpo-a-corpo com a arte como território estratégico para a legitimação e reinserção de um país no âmbito internacional parece ser o efeito desta hipertrofia da função social da arte que, no caso do Pavilhão da Tunísia nesta Bienal, chega a prescindir do artista.

 

The Absence of Paths, o Pavilhão da Tunísia está na Bienal de Veneza de 13 de maio a 26 de novembro de 2017, theabsenceofpaths.com.

por Icaro Ferraz Vidal Junior
Jogos Sem Fronteiras | 16 Julho 2017 | Bienal de Veneza, circuito artístico, indústrias culturais, passaporte, representação