Nós, os Refugiados

©Cristiano Mangovo©Cristiano MangovoEm primeiro lugar, não gostamos de ser chamados “refugiados”. Chamamo-nos uns aos outros “recém-chegados” ou “imigrantes”. Os nossos jornais são jornais para “americanos de língua alemã”; e, tanto quanto sei, não há e nunca houve qualquer clube fundado pelos perseguidos por Hitler cujo nome indicasse que os seus membros são refugiados.

Um refugiado costuma ser uma pessoa obrigada a procurar refúgio devido a algum acto cometido ou por tomar alguma opinião política. Bom, é verdade que tivemos que procurar refúgio; mas não cometemos nenhum acto e a maioria de nós nunca sonhou em ter qualquer opinião política radical. O sentido do termo “refugiado” mudou connosco. Agora “refugiados” são aqueles de nós que chegaram à infelicidade de chegar a um novo país sem meios e tiveram que ser ajudados por comités de refugiados.

Antes desta guerra começar eramos ainda mais sensíveis quanto ao sermos chamados refugiados. Demos o nosso melhor para provar aos outros que eramos apenas imigrantes comuns. Afirmávamos que tínhamos partido pela nossa própria vontade para países da nossa escolha e negávamos que a nossa situação tivesse algo a ver com “supostos problemas judaicos”. Sim, erámos “imigrantes” ou “recém-chegados” que tínhamos deixado o nosso país porque, num belo dia, não nos convinha mais ficar, ou puramente por razões económicas. Queríamos reconstruir as nossas vidas, isso era tudo. De modo a reconstruir a vida tem que se ser forte e optimista. Portanto, erámos bastante optimistas.

Com efeito, o nosso optimismo é admirável, mesmo que sejamos nós a dizê-lo. A história da nossa luta finalmente tornou-se conhecida. Perdemos a nossa casa o que significa a familiaridade da vida quotidiana. Perdemos a nossa ocupação o que significa a confiança de que tínhamos algum uso neste mundo. Perdemos a nossa língua o que significa a naturalidade das reacções, a simplicidade dos gestos, a expressão impassível dos sentimentos. Deixámos os nossos familiares nos guetos polacos e os nossos melhores amigos foram mortos em campos de concentração e tal significa a ruptura das nossas vidas privadas.

Não obstante, logo que fomos salvos – e a maioria de nós teve que ser salvo várias vezes – começámos a nossas novas vidas e tentávamos seguir tão próximo quanto possível todos os bons conselhos que os nossos salvadores nos transmitiram. Foi-nos dito; e esquecemos mais rápido do que alguém poderia imaginar. De um modo amigável foi-nos lembrado que o novo país tornar-se-ia uma nova casa; e depois de quatro semanas em França ou seis semanas na América, fingiríamos ser franceses ou americanos. Os mais optimistas entre nós teriam mesmo acrescentado que toda a sua vida anterior teria sido passada numa espécie de exílio inconsciente e apenas o seu novo país lhes ensinaria agora com o que se parece uma casa. É verdade que por vezes levantámos objecções quando nos disseram para esquecer o nosso trabalho anterior; e logo que o nosso estatuto social está em jogo é-nos extremamente difícil desembaraçarmo-nos dos nossos ideais. Com a língua, contudo, não encontramos dificuldades: depois de um único ano os optimistas estavam convencidos que falavam inglês tão bem quanto a sua língua materna; e depois de dois anos juravam solenemente que falavam inglês melhor do que qualquer outra língua – o seu alemão é uma língua que dificilmente lembram.

De modo a esquecer mais eficientemente preferíamos evitar qualquer alusão aos campos de concentração ou de internamento que experienciámos em quase todos os países europeus – poderia ser interpretado como pessimismo ou falta de confiança na nossa nova pátria. Além disso, quão frequentemente nos foi dito o que ninguém gosta de ouvir de todo; o inferno não é mais uma crença religiosa ou uma fantasia, mas algo tão real quanto as casas, as árvores e as pedras. Aparentemente ninguém quer saber que a história contemporânea criou um novo tipo de seres humanos – o tipo dos que são postos em campos de concentração pelos seus inimigos e nos campos de internamento pelos seus amigos.

Mesmo entre nós não falamos sobre este passado. Em vez disso, encontrámos o nosso próprio modo de dominar um futuro incerto. Uma vez que toda a gente planeia, deseja e anseia, também nós o fazemos. Exceptuando estas atitudes humanas gerais, contudo, tentamos encarar o futuro mais cientificamente. Depois de tanta má sorte queremos um percurso infalível. Portanto, deixámos a terra com todas estas incertezas para trás e lançámos o nosso olhar para o céu. As estrelas dizem-nos – mais do que os jornais – quando Hitler será derrotado e quando nos podermos tornar cidadãos americanos. Pensamos que as estrelas são mais conselheiras, mais confiáveis do que todos os nossos amigos; aprendemos das estrelas quando devemos almoçar com os nossos benfeitores e em que dia temos mais hipóteses de preencher um desses incontáveis questionários que acompanham as nossas vidas presentes. Por vezes não confiámos nem nas estrelas mas, antes, nas linhas das nossas mãos ou na grafologia. Assim aprendemos menos sobre os acontecimentos políticos mas mais sobre os nossos queridos seres, apesar de algum modo a psicanálise tenha saído de moda. Não querem mais histórias de fantasmas; é a experiência real que faz arrepios na sua carne. Não há mais necessidade de enfeitiçar o passado; já há feitiço suficiente na realidade. Assim, em vez do nosso falado optimismo, usamos todos os tipos de truques mágicos para evocar os espíritos do futuro.

Não sei que memórias e que pensamentos habitam toda a noite nos nossos sonhos. Não me atrevo a perguntar por essa informação, uma vez que, também eu, preferia ser uma optimista. Mas por vezes imagino que pelo menos durante a noite pensamos sobre o nosso pai ou lembramo-nos dos poemas que amámos outrora. Até poderia compreender como é que os nossos amigos da Costa Oeste, durante o toque de recolhimento, podiam ter noções curiosas tais como acreditar que não eramos os únicos “cidadãos prospectivos” mas “inimigos alienígenas” reais. À luz do dia, com certeza, tornávamo-nos tecnicamente apenas inimigos alienígenas – todos os refugiados sabem disso. Mas quando razões técnicas previnem-vos de sair de casa durantes as horas negras, certamente que não é fácil evitar algumas especulações negras sobre a relação entre técnica e realidade.

Não. Há algo de errado com o optimismo. Há aqueles estranhos optimistas entre nós que, tendo feito vários discursos optimistas, vão para casa e ligam o gás ou dão uso a um arranha-céus de um modo um pouco inesperado. Parecem provar que a nossa proclamada animação é baseada numa perigosa disposição para morte. Ao mencionar a convicção de que a vida é o bem maior e a morte a maior consternação, tornamo-nos testemunhas e vítimas de terrores piores que a morte – sem termos sido capazes de descobrir um ideal maior que a vida. Assim, embora a morte perca o seu horror para nós, não nos tornamos nem dispostos nem capazes de arriscar a nossa vida por uma causa. Em vez de combater – ou pensar sobre como ser capaz de resistir – os refugiados habituaram-se a desejar a morte a amigos ou familiares; se alguém morre, imaginamos animadamente todos os problemas de que foram salvos. Finalmente muitos de nós acabam por desejar que, também nós, poderíamos ser salvos de alguns problemas e agimos em conformidade.

Desde 1938 – desde a invasão de Hitler da Áustria – vimos como o optimismo eloquente pode mudar rapidamente para pessimismo mudo. À medida que o tempo passa, ficámos pior – ainda mais optimistas e ainda mais inclinados para o suicídio. Os judeus austríacos sob Schuschnigg eram pessoas tão animadas – todos os observadores imparciais os admiravam. É bastante magnífico o quão profundamente convencidos estavam que nada lhes podia acontecer. Mas quando as tropas alemães invadiram o país e os vizinhos gentis começaram os distúrbios nas casas judaicas, os judeus austríacos começaram a suicidar-se.

Ao contrário de outros suicídios, os nossos amigos não deixaram explicação da sua dívida, nem acusação, nem culpa contra o mundo que forçou um homem desesperado a falar e a comportar-se serenamente até ao seu último dia. Assim, as orações de funeral que fazemos nas suas campas abertas são breves, embaraçadas e muito esperançosas. Ninguém quer saber dos motivos; parecem ser claros para todos nós.

Falo de factos pouco populares; o que torna as coisas piores, pois para comprovar a minha perspectiva não disponho de um único argumento que imprima o povo moderno – estatísticas. Mesmo esses judeus que negam furiosamente a existência do povo judeu dão-nos uma possibilidade justa de sobrevivência até onde concerne as estatísticas – de que outro modo provariam que apenas alguns judeus são criminosos e que muitos judeus estão a ser mortos como bons patriotas em tempo de guerra? Através do seu esforço para salvar a vida estatística do povo judeu sabemos que os judeus têm a taxa de suicídio mais baixa entre todas as nações civilizadas. Estou bem segura que essas figuras não estão mais correctas, mas não posso prová-lo com novas figuras, embora possa certamente com novas experiências. Tal pode ser suficiente para as almas cépticas que nunca estão completamente convencidas de que o tamanho de um crânio dá a ideia exacta do seu conteúdo, ou de que as estatísticas do crime mostram o nível exacto da ética nacional. Seja como for, onde quer que os judeus europeus estejam a viver hoje, já não se comportam mais de acordo com as leis estatísticas. Os suicídios ocorrem não apenas entre os afligidos pelo pânico em Berlim e em Viena, em Bucareste ou Paris, mas em Nova Iorque e Los Angeles, em Buenos Aires e Montevideo.

Por outro lado, os suicídios nos guetos e nos próprios campos de concentração têm sido pouco noticiados. É verdade, temos bem poucos relatos da Polónia, mas fomos bem informados sobre os campos de concentração alemães e franceses. No campo de Gurs, por exemplo, onde tive a oportunidade de passar algum tempo, apenas ouvi uma vez sobre suicídio e foi a sugestão de uma acção colectiva, aparentemente uma espécie de protesto de modo a contrariar os franceses. Quando alguns de nós reparámos que tínhamos sido mandados para ali “pour crever” de algum modo, o sentimento geral passou rapidamente para uma coragem violenta de viver. A opinião geral segundo a qual se tem que ser anormalmente associal e não afectado pelos acontecimentos comuns para estar ainda apto para interpretar a infelicidade completo como má sorte pessoal e individual e, assim, terminar com a vida pessoal e individualmente. Mas as mesmas pessoas, assim que retornaram para as suas próprias vidas individuais, ao encarem aparentemente com problemas individuais, mudaram-se mais uma vez para esse optimismo insano que é a próxima porta para o desespero.

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Excerto do original de 1943. Disponível em Lusofonia.net

Colecção: Textos Clássicos de Filosofia

Universidade da Beira Interior

Covilhã, 2013

Translation:  Ricardo Santos

por Hannah Arendt
Jogos Sem Fronteiras | 15 Junho 2022 | guerra, Hannah Arendt, humanidade, refugiados, sociedade