Jogos sem Fronteiras #2 - Editorial

Produzido e editado entre 2012 e 2015 por Ana Bigotte Vieira, Sandra Lang e Nuno Leão, o número #2 da revista Jogos Sem Fronteiras [JSF#2] reúne uma série de contribuições, a maioria delas originais, sob o título “práticas de resistência e espaços de invenção”. Porquê este título e por que razão um novo número da Jogos Sem Fronteiras?

O ano de 2011, com a ocupação das praças numa série de países apelou à nossa imaginação. Alguns dos envolvidos na produção desta revista passaram por Zuccotti Park, em Nova Iorque; outros entusiasmaram-se na ocupação da praça do Rossio, em Lisboa. Quer estivessem fisicamente presentes nas ocupações ou não, os acontecimentos desse ano abriram um espaço no imaginário de muitas pessoas. E nos meses que se seguiram ao “período das ocupações” propriamente dito, muitas questões se colocaram. Uma a seguir à outra, um pouco por todo o mundo, as praças iam sendo despejadas; na Europa, o poder da Troika (com a cumplicidade dos governos nacionais neoliberais) e a devastação provocada pelas políticas de austeridade em implementação acelerada pareciam intocáveis, situação que ainda hoje se mantém.

Quando decidimos produzir e editar o segundo número da revista Jogos Sem Fronteiras, em 2012, no período que se seguiu às ocupações e às insurreições de 2011, tínhamos acabado de nos encontrar com uma série de gente e de testemunhar a emergência de diversos projectos e havia então uma panóplia de experiências que nos pareciam merecedoras de ser partilhadas e, com elas, várias questões sobre as quais reflectir. Tratava-se portanto de dar conta de um conjunto de “práticas de resistência e espaços de invenção” ou de “práticas de invenção e espaços de resistência”: o subtítulo da revista funciona nos dois sentidos. Pois se é verdade que “o poder produz mais do que reprime”, usamos ainda a palavra “resistência” para sinalizar práticas e espaços que emergem em momentos de tensão ou conflito, por ex., quando medidas impostas por instituições governamentais e falta de perspectivas de futuro são individual e colectivamente sentidas como opressivas. Luta-se hoje contra a pobreza crescente, contra formas mutantes e disfarçadas de exploração capitalista administrada sob o véu das “políticas de austeridade” na Europa e outros lugares. Mas resistir – re/existir, numa etimologia de algum modo ficcional – também significa inventar modos de existência. Inventar não é criar algo a partir do nada, mas agregar forças já presentes (sociais, espaciais, materiais e simbólicas) – invenção, neste sentido, corresponde a uma recomposição de forças.1

Esta publicação aparece vários anos após a edição do número #1 da revista Jogos Sem Fronteiras [JSF#1] que se debruçou sobre a construção de uma identidade Europeia simultaneamente assente na consolidação da imagem “interna” de uma Europa formada por nações em competição (de que o programa televisivo Jeux Sans Frontières, primeira transmissão trans-Europeia em directo, representa o modelo acabado), e numa estratégia “externa” de exclusão e militarização das fronteiras. “Europa” designa aqui uma região geopolítica de acesso restrito, com fronteiras militarizadas e/ou virtuais que produzem e modulam desigualdades entre os seus habitantes mais ou menos permanentes ou móveis (pense-se, por exemplo nas discrepâncias Norte/Sul ou Este/Oeste, ou nas desigualdades constituintes das áreas metropolitanas das grandes cidades Europeias). Este projecto de Europa é o mesmo que torna aceitável o crescente número de pessoas a morrer diariamente, naquele a que, em JSF#1, Ana Bigotte Vieira – inspirada pela plataforma Indymedia Estrecho de Gibraltar – chamou “um mar sólido”, o mar mediterrâneo, que todos os dias é corajosamente atravessado por dezenas ou centenas de pessoas em fuga de locais onde viver se torna impossível.

Se com a revista JSF#1 nos focámos nesta Europa que largamente se define pela exclusão, com o número #2 da revista Jogos Sem Fronteiras procuramos, de algum modo, participar e contribuir para um debate em curso que junta pessoas e projectos de várias partes da Europa e não só, no sentido de pensar uma Europa a partir de baixo, de redefinir o que poderia Europa significar2. Jogos Sem Fronteiras, projecto cujos principais momentos de produção têm tido lugar na Europa, conta de algum modo contribuir para este processo.

Com JSF#2 decidimos abordar realidades outras e zonas imaginárias, momentos e desejos que emergem quando as pessoas não aceitam o “estado das coisas”: corresponda este ao quadro do capitalismo tardio e das actuais políticas neoliberais, ou às nossas próprias formas de funcionar pelo meio desse quadro e dessas estruturas. Momentos de ruptura podem emergir de qualquer lado. As práticas de resistência disseminam-se além fronteiras, nacionais ou outras, rompendo com separações disciplinares e temáticas, fazendo emergir assuntos e afinidades inesperadas, passando por várias formas de expressão. Os textos que aqui se apresentam foram escritos entre 2012 e 2014. Com os autores a escrever de lugares tão diferentes como Rabat, S.Paulo, Atenas ou New York, pode haver a tentação de perguntar como é que essas práticas de resistência ecoam e ressoam: ou como descobrimos, dentro do contexto largo dos movimentos sociais globais anti-capitalistas, novas maneiras de nos encontramos uns e outros.

A revista Jogos Sem Fronteiras #2 está estruturada em três secções, cada secção precedida de um texto introdutório escrito por um dos editores. A primeira secção, intitulada Be It Taking a Square or Preventing an Eviction [Seja ocupar uma praça ou impedir um despejo], subdividida também em duas partes, contém os dois únicos textos não originais da revista: “So, What Are the Demands?”, texto de Judith Butler escrito em 2011 para a revista Tidal do grupo Occupy Theory quando Occupy Wall Street estava a decorrer, e “Strength and Power: Re-imagining the Revolution” de Amador Fernández-Savater, publicado no OpenDemocracy em tradução Guerrilla Translation.3 Conhecemos o Amador Fernandez Saváter em Munique, em 2013, durante “Wake up! Assembly for a Different Europe”/Spielart festival4 e os seus comentários inteligentes e entusiasmados sobre o Movimento espanhol do 15 de Março (M15M) impressionaram-nos e pedimos-lhe para contribuir. Tal como este, todos os textos que publicámos foram escritos por amigos ou pessoas que encontrámos, e que pensamos terem coisas interessantes para dizer. O texto de Judith Butler constitui, neste sentido, uma excepção: publicamo-lo por nos parecer apontar questões importantes relacionadas com formas de articulação política como as que observámos no movimento Occupy, que não se baseiam tanto em “listas de exigências” quanto na partilha crescente de práticas e novas formas de viver em comum .

A segunda secção da revista, intitulada Spaces of Resistance and the becomings of practice [Espaços de resistência e a elaboração das práticas] contém, entre outros, um texto escrito em 2014, por Arnoldas Stramskas, descrevendo um projecto social e comunitário em Kaunas, na Lituânia. Dele se retira talvez que aquilo a que chamámos “espaço de invenção” pode ser não tanto um espaço arquitectónico (neste caso mínimo, reduzido a um quiosque) mas também, ou sobretudo um espaço imaginário criado pelo meio dos encontros que (nele) se proporcionam, de um conjunto de ocasiões que (nele) se apresentam O quiosque em causa parece tão pequeno que pouco há para se fazer “nele”, e as coisas acontecem quando as pessoas se juntam em redor ou em frente “dele”. Num sentido semelhante, as pessoas do colectivo MACAO, em Milão, não apenas ocuparam um enorme edifício privado originalmente pertencente a Salvatore Ligresti, corrupto gigante do imobiliário, mas abriram igualmente um espaço imaginário. E é sobretudo enquanto acção simbólica que nos descrevem a ocupação da Torre Galfa, um arranha-céus vazio, em 2012 – entretanto, MACAO mudou de localização. Hoje, permanece um entre vários outros interessantes projectos que se apresentam como novos tipos de instituições culturais autónomas, espalhando-se por várias cidades italianas. 5No contexto destes espaços não se trata apenas de equacionar o “futuro da produção cultural”, mas de experimentar propostas práticas que permitam ir além dos esquemas de exploração mútua dos trabalhadores precários, no campo cultural e não só (em MACAO, por ex., o projecto em curso de uma moeda comum)6.

A terceira e última secção da revista, de seu nome Creating Images [Criar Imagens], inclui a história de uma outra “instituição cultural” ocupada, na Grécia; o Teatro Embros, de Atenas, que resiste após múltiplas tentativas de expulsão, e ainda reúne em assembleia todas as semanas. Apesar de algumas das contribuições serem já antigas, e de algumas coisas

entretanto terem mudado, pensamos que é importante falar desses lugares e das suas experiências, e achamos que os textos aqui reunidos abordam questões que ainda são actuais. A “luta de classes a partir de cima”,7 perpetuada pelas políticas de austeridade vai continuar a destruir os sistemas de segurança social europeus, e ainda em 2014 as tendas reapareceram, desta vez em Hong Kong. Porque, como Sandro Mezzadra8 escreve, referindo-se a Kobanê, Kurdistão: “em Rojava nós temos de reconhecer as ligações com a nossa história recente; temos de estar preparados para ouvir os ecos de Seattle, de Génova, dos Zapatistas. Porque esses ecos existem. E temos sobretudo de ver o fio que liga as insurreições de 2011 no Maghreb e no Mashreq, continua pelo 15M espanhol e por Occupy, passa nas convulsões no Brasil e na Turquia […] – prosseguindo nas ruas de Kobanê e Rojava.”9

Jogos Sem Fronteiras não é apenas uma revista, mas uma plataforma que trabalha entre diferentes media e práticas, às vezes por meio de projectos de curadoria, comissariando obras e textos, e organizando mostras de filmes ou discussões em espaços artísticos, fazendo performances ou passeios performativos e cartografando cidades – o que quer que seja que decida fazer num dado momento, respondendo a uma situação específica e a um determinado lugar, operando como um colectivo aberto. Em paralelo à produção da revista, temos produzido uma série de eventos que podem ser vistos no website J-S-F.eu. Uma das razões para produzirmos uma revista impressa é podermos levá-la fisicamente até diferentes lugares e usá-la como pretexto para discussões, debates, conversas. Em 2013 organizámos uma feira de publicações independentes que teve lugar em Lisboa, em Setembro de 2013, naquele que para nós foi um evento importante. Entendemos a feira do livro como uma espécie de meta-reflexão sobre o então em curso processo de produção da revista JSF #2, ou ainda sobre a prática das publicações independentes em geral. A essa feira demos o subtítulo “livros e revistas como espaços de resistência”, o que foi uma forma de fazer uma afirmação pública, numa altura em que numerosas e importantes livrarias – e com elas, lugares que distribuem publicações independentes – desapareceram de Lisboa por causa da “crise”. Vinte editores estiveram presentes e convidámos dez artistas para contribuir para a feira do livro com performances e instalações. É nossa opinião que a resistência não pára nas fronteiras das disciplinas e que inventa os seus próprios meios e métodos de colaboração, no que a arte se revela como uma importante ferramenta. Uma vez que a feira de edições, com os seus convites a artistas e editores, foi parte integrante do próprio processo de produção da revista JSF #2, decidimos dar conta desta experiência sob a forma de um poster destacável.

Como tantos outros projectos similares, Jogos Sem Fronteiras opera por via de uma estrutura frágil e precária. A um nível local, em Lisboa, a plataforma liga-se e frequentemente dissolve-se noutros grupos e projectos. Mais do que criar um nome ou estrutura que perdure, os afectos e laços que criamos e mantemos – seja a planear coisas ou passando tempo juntos, a falar sobre ideias e experiências, a criar um projecto no âmbito do qual podemos convidar pessoas que nos entusiasmam e que achamos terem muito a dizer e a partilhar – são importantes para nós. Neste sentido, gostaríamos de agradecer a todos os que contribuíram com o seu valioso trabalho, e esperamos que o nosso entusiasmo pelos textos e pelas experiências que descrevem possam ser transportados para os leitores, como o foram para nós.

Contactos 

Website

Informações e reserva: sansfrontieresjeux@gmail.com  

Jogos Sem Fronteiras encontra-se à venda na STET, A+A, Letra Livre, 111, Livraria Portugal, Livraria Barata e Livraria Pó dos Livros.

  • 1. Ver a definição de invenção de Gabriel Tarde na introdução a Inventionen 2 por Isabelle Lorey, Gerald Raunig e Roberto Nigro, Zurich, 2012
  • 2. Um bom exemplo é eventualmente o esboço de uma Carta da Europa escrita a partir de baixo, como Raul Sanchez Cedillo explica numa entrevista a Ana Bigotte Vieira da plataforma JSF. Online em stress.fm:http://stress.fm/post/96922485444/charter-for-europe
  • 3. O texto de Butler foi publicado na Tidal, Occupy Theory Occupy Strategy, Issue 2, Março 2012 http://tidalmag.org/
  • 4. http://www.spielart.org/program/wakeup/ O Festival Spielart “Wake up! Assembly for a different Europe” foi na nossa opinião o único, entre uma série de eventos similares que visitámos nos últimos três anos, que não incorreu na espectacularização deste tipo de práticas e movimentos sociais. É curioso notar como eventos deste género, tentando reunir artistas, activistas e teóricos com o objectivo de estabelecer ou restabelecer uma forma de assembleia (e no pior dos casos reconstituir uma espécie de “campo”) se têm repetido: acontecem muitas vezes no norte da Europa (frequentemente com pessoas do sul da Europa como convidados) partindo frequentemente do contexto das artes performativas
  • 5. www.macaomilano.org. Outros projectos em Itália incluem S.A.L.E Docks, em Veneza: www.saledocks.org, ou o Teatro Valle que trabalhando com juristas e constitucionalistas criou um interessante estatuto legal www.teatrovalleoccupato.it
  • 6. www.macaomilano.org/rivista/IMG/pdf/commoncoin-2.pdf
  • 7. Luciano Gallino, La lotta di classe dopo la lotta di classe, Roma, Bari 2012 www.laterza.it/index.php?option=com_laterza&Itemid=100&task=schedalibro&...
  • 8. E, para voltar à questão das fronteiras abordadas nos JSF #1, que permanece uma questão de fundo: “[w]ar brushes the European borders today, it comes to our cities with the movement of fleeing women and men — if they are lucky enough not to end up at the bottom of the Mediterranean. With the crisis, war threatens to cause a wider stiffening of social relations and lead to an authoritarian government of poverty. War and crisis: not a new coupling. Its shapes, however, are new: in the relative crisis of American hegemony, which clearly constitutes a salient trait of this globalising period, war still unfolds its ‘overthrowing’ violence — but there are no realistic scenarios of ‘reconstruction’ on the horizon (not even those that would be contrary to our position). The incidents within the ‘anti-terrorist coalition’ are a clear example of this deadlock. Breaking such deadlock is a necessary condition for the real success of struggles against austerity in Europe. And this will only be possible through a tangible and material affirmation of those principles of organisation for life and social relations that are radically incompatible with the reasons of war.” Sandro Mezzadra em “Is Kobanê Alone?” in http://www.weareplanc.org/blog/is-kobane-alone/
  • 9. E, para voltar à questão das fronteiras abordadas nos JSF #1, que permanece uma questão de fundo: “[w]ar brushes the European borders today, it comes to our cities with the movement of fleeing women and men — if they are lucky enough not to end up at the bottom of the Mediterranean. With the crisis, war threatens to cause a wider stiffening of social relations and lead to an authoritarian government of poverty. War and crisis: not a new coupling. Its shapes, however, are new: in the relative crisis of American hegemony, which clearly constitutes a salient trait of this globalising period, war still unfolds its ‘overthrowing’ violence — but there are no realistic scenarios of ‘reconstruction’ on the horizon (not even those that would be contrary to our position). The incidents within the ‘anti-terrorist coalition’ are a clear example of this deadlock. Breaking such deadlock is a necessary condition for the real success of struggles against austerity in Europe. And this will only be possible through a tangible and material affirmation of those principles of organisation for life and social relations that are radically incompatible with the reasons of war.” Sandro Mezzadra em “Is Kobanê Alone?” in http://www.weareplanc.org/blog/is-kobane-alone/
Translation:  Marline Pereira, revisto por Nuno Leão e Ana Bigotte Vieira

por Sandra Lang
Jogos Sem Fronteiras | 8 Março 2016 | cultura, editorial, espaços de invenção, jogos sem fronteiras, práticas de resistência, revista, REVISTA JSF#2