A memória e a história inscritas nas tecnologias genéticas de combate ao crime

Série Ma Demeure | 2018 |  Dalila Dalléas Bouzar (cortesia da artista)Série Ma Demeure | 2018 | Dalila Dalléas Bouzar (cortesia da artista)

No seu belo ensaio A Ideia de Europa (1), George Steiner romanticamente eterniza e descreve uma Europa que se enaltece como multicultural, cosmopolita, solidária e sem fronteiras. Mas esta é também uma Europa que se confronta com os fantasmas do seu passado, perante os atentados que temos testemunhado em França, em Espanha, na Bélgica, no Reino Unido, e que nos deixa, a nós Europeus, surpreendidos com a nossa própria memória sem dela conseguirmos tirar ilações e lições. Somos rápidos na leitura moral e geopolítica destes atentados e somos lestos no recurso a tecnologias securitárias que desejamos objetivas e científicas. Somos velozes na construção de muralhas. Somos audazes na declaração de quem pertence ou não ao grande reino da civilização e do progresso.
 
O projeto EXCHANGE (2015-2020) (2) assume como missão académica refletir criticamente sobre a perpetuação do “sonho europeu” de comunidade solidária, em que as diferenças nacionais, linguísticas e culturais se unem para produzir um espaço no qual os cidadãos se movimentam livremente e com segurança. As tecnologias de vigilância, que o projeto Exchange estuda, revestem-se de uma particularidade: são tecnologias genéticas que servem o propósito de identificação individual com intenções de persecução criminal, mais concretamente bases de dados informatizadas que contêm milhares de perfis genéticos. Estas bases de dados genéticos são usadas pelas autoridades policiais para obter informações de correspondência. Desta forma, o projeto Exchange aspira a compreender as implicações societais, éticas e políticas que decorrem da expansão crescente de aparatos tecnocientíficos de vigilância de populações criminalizadas pelos sistemas de justiça. Neste contexto, assume hoje particular relevo a partilha transnacional de informação genética contida em bases de dados criminais de perfis de DNA.
 
Hoje, o recurso a tecnologias genéticas de combate ao crime, ao terrorismo e às migrações transfronteiriças não se sustenta unicamente num pensamento baseado na segurança e proteção física dos cidadãos e territorial dos países. Há um discurso que serpenteia por entre as decisões destes dispositivos. Esse discurso alicerça-se e legitima-se entrelaçando epistemologias e instrumentos da ciência e do direito, e, deste modo, vão-se formando teias de “tecnociência”, no sentido enunciado por Bruno Latour (3). Na perspetiva de Latour, este sincretismo sustenta a construção de caixas negras enquanto entidades artificiais que são tratadas como únicas, indissociáveis, cujas partes ninguém ousa separar.
 
As tecnologias genéticas usadas em contextos de políticas securitárias reconfiguram a raça como um objeto instável que junta elementos corporais, digitais e discursivos. As práticas racistas associadas às tecnologias de vigilância genética discriminam certos corpos e populações, procurando afastá-los das muralhas da Europa. Contudo, ironicamente, como enfaticamente salienta o sociólogo David Skinner (4), o racismo presente nas tecnologias genéticas de combate ao crime muitas vezes reage a sensibilidades políticas contemporâneas que, alegadamente, respeitam a diversidade cultural, racial e étnica. Sensibilidades essas que se demitem de alterar desigualdades estruturais, antes as reforçando.
 
Pensar as tecnologias de vigilância e de combate aos crimes e aos atentados terroristas é mergulhar todo o nosso corpo político, social e mental na História e na Memória de uma Europa que vê os seus “frutos caídos” e que, sem cuidado histórico, dá nomes estranhos a rostos e corpos humanos. O percurso e fundamento epistemológico de um perfil de DNA configuram-no como o derradeiro método de individualização biológica. Por conseguinte, as tecnologias pensadas em contexto, e relembrando as metáforas sugeridas por Michael Lynch (5), a genética como “máquina da verdade” ou “máquina das revelações”, têm em comum uma ideia de objetividade, neutralidade e de certeza, simultaneamente assente na conjugação da falibilidade humana com a precisão, fidedignidade e previsibilidade de uma máquina.
 
A objetividade da genética assenta na ideia, historicamente construída (6), da proximidade ao “realismo”, por oposição à subjetividade entendida como existindo apenas no plano das ideias. Trata-se de uma conceção de objetividade diretamente dependente da quantificação. À matematização e quantificação juntam-se redes transnacionais de cooperação policial e judiciária que envolvem conhecimentos tácitos e negociados e que se orientam por princípios morais direcionados para a impessoalidade. Contudo, há uma História e uma Memória que disseca cada molécula de DNA de um corpo suspeito, categorizando-o e espartilhando-o na aspiração do desiderato de um identificador sumamente “objetivo”.
 
A ciência é importante e humana quando respeita e escuta a maturidade social, cultural e histórica das sociedades que a produzem. Simone Browne em Dark Matters (7), resume espantosamente este enleio entre humanidade e ciência dizendo: “em vez de ver a vigilância como algo inaugurado pelas novas tecnologias, como o reconhecimento facial automatizado ou veículos autónomos não tripulados (ou drones), ver [a vigilância] como ativa é insistir que consideramos que o racismo e a anti-negritude subjazem e sustentam as interseções transversais do nosso tempo presente” (8).
 
“O tempo esse grande escultor” (retomando o título de um conjunto de ensaios de Marguerite Yourcenar) (9), está sempre na alma das ciências e de quaisquer dispositivos que as sociedades possam ativar para proteger e estimar os “seus”. É um grande desafio pensar social e historicamente sobre as decisões que subjazem a essa construção. É um dever de memória agir com a História e a Memória sempre aqui ao nosso lado, para que o presente não nos faça uma partida perigosa. Importa não esquecer as lições do passado.
 
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(1) Steiner, George (2013). A Ideia de Europa. Lisboa: Gradiva.
(2) O projeto EXCHANGE – Forensic geneticists and the transnational exchange of DNA data in the EU: Engaging science with social control, citizenship and democracy é financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação (ERC) no quadro do Horizonte 2020, programa para a investigação e inovação da União Europeia (contrato nº 648608). O projeto EXCHANGE tem como investigadora principal Helena Machado e está sediado no Instituto de Ciências Sociais (Centro de Investigação em Comunicação e Sociedade), Universidade do Minho. De 2015 a 2017 o projeto esteve sediado no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra.
(3) Latour, Bruno (1987). Science in action: How to follow scientists and engineers through society. Cambridge, MA: Harvard University Press.
(4) Skinner, David (2018). “Race, Racism and Identification in the Era of Technosecurity”, Science as Culture, p. 1-23.
(5) Lynch, Michael (2013). “Science, truth, and forensic cultures: The exceptional legal status of DNA evidence”. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, v. 44, n. 1, p. 60-70.
(6) Porter, Theodore M. (1995). Trust in numbers: The pursuit of objectivity in science and public life. Princeton, NJ: Princeton University Press.
(7) Browne, Simone (2015). Dark matters: On the surveillance of blackness. Durham: Duke University Press.
(8) Traduzido do original: “rather than seeing surveillance as something inaugurated by new technologies, such as automated facial recognition or unmanned autonomous vehicles (or drones), to see it as ongoing is to insist that we factor in how racism and antiblackness undergird and sustain the intersecting surveillances of our present order.” (Browne, 2015: 8-9).
(9) Yourcenar, Marguerite (2001). O Tempo Esse Grande Escultor. Tradução de Helena Vaz da Silva, 5ª edição, Lisboa: Difel.
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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
 
 

 
 
 

por Sheila Khan e Helena Machado
Jogos Sem Fronteiras | 7 Setembro 2019 | Memoirs, tecnologia