A Cultura da Colonialidade

BUALA tem o prazer de anunciar o lançamento de uma série de publicações da L’internationaleonline #2 dedicadas ao tema Decolonising Museums.

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No Sábado 13 de Outubro de 2012, dia que se seguiu à celebração do Dia Nacional de Espanha com a sua insultuosa comemoração do arranque do processo colonial, a Direcção Geral dos Registos de Estado publicou um documento estabelecendo as condições a que as populações migrantes têm de se sujeitar caso queiram obter direitos igualitários enquanto cidadãos, obtendo a nacionalidade espanhola, única maneira possível. A primeira página do documento decreta que “o nível apropriado de integração na sociedade espanhola não se limita ao conhecimento aceitável do idioma, sendo também necessário um conhecimento das instituições e tradições, bem como a adopção do estilo de vida espanhol”.

O documento encoraja as autoridades competentes deste processo burocrático abusivo a especificar se os candidatos migrantes estão, ou não, suficientemente integrados.

 Todos os candidatos de idade igual ou superior a 14 serão dispostos a um exame de integração no dia da reunião.' Todos os candidatos de idade igual ou superior a 14 serão dispostos a um exame de integração no dia da reunião.'Do mesmo modo, na Catalunha, a nova lei introduzida – ironicamente conhecida como a ‘lei do acolhimento’ – constitui parte integrante do processo de construção da soberania. Esta lei, que consiste basicamente numa série de requisitos visando questões financeiras e laborais que os candidatos deverão cumprir de forma a obterem vistos de residências ou de reagrupamento familiar, estabelece  ainda que os candidatos terão de provar a sua integração por via da participação em cursos, comparecendo numa entrevista e,  sobretudo, demonstrando conhecimentos básicos de catalão. A imposição da integração às populações migrantes é, na verdade, uma ferramenta para fortalecer o processo de colonização dos indivíduos que vêm de países subjugados. No caso da defesa do conhecimento do catalão como pré-requisito exigência aplicada exclusivamente à população migrante, vários políticos catalães utilizam o argumento da manutenção da coesão social mediante a utilização de um idioma comum, o mesmo idioma que obviamente não é exigido à população migrante proveniente da Alemanha ou de Madrid.

Como mencionei noutro artigo sobre este assunto, se o estado espanhol nos exige - às pessoas vindas de países como o Perú, Bolívia ou Equador - que nos integremos numa sociedade que celebra anualmente o seu Dia Nacional a 12 de Outubro, e onde existem cerca de catorze monumentos comemorativos de Cristovão Colombo, o que está em causa é que adoptemos, face à sociedade espanhola, a mesma postura que o indígena ajoelhado perante o padre Bernando de Boyl no monumento do Columbus, em Barcelona. O pedido de integração começa, portanto, com um questionamento agressivo, redigido no sentido oposto ao dos conhecimentos, tradições e culturas dos que vieram das antigas colónias, para terminar, por via de um sistema burocrático, por determinar se é possível ou não ao indivíduo migrante obter o direito de não ser deportado e de ficar no território.

 

Daniela Ortiz, Réplica, 12 de Outubro de 2014, acção ocorrida durante as celebrações do Dia Nacional Espanhol.

 

Desde 2015, o governo espanhol reconheceu ao Instituto Cervantes, que se descreve como “uma instituição de promoção, formação e disseminação da cultura espanhola e hispano-americana”, a autoridade para elaborar as questões dos exames de acesso à cidadania, delineando a perspectiva da identidade nacional e os conhecimentos que um cidadão espanhol deve assumidamente saber, coisa que concebeu de forma não muito distante do inquérito levado a cabo pelas autoridades nos anos anteriores. Perguntas como, “O que é celebrado a 12 de Outubro?”, “Quais são as fronteiras espanholas?”, ou “Quais foram os vice-reinados espanhóis nas colónias?”, demonstram como a colonialidade do saber é estabelecida em toda a sua força, pois as respostas correctas, que permitem passar no exame, são as que correspondem à reivindicação do carácter colonial e imperialista da identidade espanhola. Desta forma, uma pessoa que provém de um contexto onde, por exemplo, o 12 de Outubro é celebrado como o Dia da Resistência Indígena deve responder que nesta data se celebra o Dia Nacional Espanhol, uma pessoa que vem de Marrocos deve afirmar os territórios coloniais de Ceuta e Melilla como espanhóis, e assim sucessivamente. O migrante que pretenda obter os mesmos direitos de cidadania deve aceitar e repetir, como legítimos, os mesmos argumentos que o inferiorizam.

Talvez alguém se questione o que tem toda esta estrutura burocrática abusiva estabelecida por um sistema de controlo migratório a ver com descolonizar o museu. É que a colonialidade é um dos elementos centrais no que há de comum entre a burocracia e o museu. E o museu, assim entendido, é um dos espaços centrais para a construção do eurocentrismo, como o sistema de controlo migratório é a estrutura principal da colonialidade na Europa. É a cultura que permite aprender e assumir o migrante e, por sua vez, são os museus que supostamente estabelecem marcos de legitimação do que é ou não cultura, de como é compreendida e difundida.

Quando me convidaram a participar no seminário organizado pelo Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (MACBA) sob o título ‘Descolonizar o Museu’, como agora, quando me convidaram a escrever sobre o mesmo tema, achei imprescindível chamar a atenção para a notável a ausência de responsabilidade, no que à estratégia anteriormente descrita diz respeito, por parte daqueles espaços e agentes supostamente especializados no que é a construção e difusão cultural.

Ainda que instituições como o Instituto Cervantes já tenham assumido o seu papel (como inquisidores), instituições como o Museu Rainha Sofia, o MACBA, o MUSAC ou simplesmente um espaço como La Virreina, emitiram apenas um silêncio ensurdecedor perante a forma como os representantes do sistema de controlo migratório estão a utilizaa a cultura para determinar se um migrante é ou não deportado.

Que o uso de noções como a cultura para o reforço de práticas de segregações raciais e xenófobas por meio do discurso de integração não tenha nenhum tipo de resistência por parte das instituições culturais torna impossível de pensar que se possa propôr um processo de descolonização unicamente através de exposições, debates e negociações que aparecem pontualmente nas programações. Se não existe uma articulação com os terrenos onde a colonialidade opera com toda a sua violência no contexto europeu actual, é possível que nos próximos exames para a nacionalidade, nós migrantes terminemos a ter de aprender o nome dos artistas espanhóis que expõem nestes museus.

Desejos e Necessidades. Abaixo os monumentos coloniais, 2015.Desejos e Necessidades. Abaixo os monumentos coloniais, 2015.

Entendo que este silêncio talvez se deva à suposta neutralidade política que as instituições culturais assumem, esta completa neutralidade que leva a programar uma exposição financiada pela embaixada do estado colonial de Israel, publicar um texto na folha de sala onde ao estilo de Golda Meir não se pronuncia a palavra Palestina, mas sim as palavras Jordânia e Israel, e a expulsar no dia da inauguração um artista palestiniano refugiado que realizava uma acção artística1 em protesto pela implicação directa da Embaixada de Israel na dita actividade cultural. Essa neutralidade política que leva a realizar uma defesa a qualquer custo da tão europeia liberdade de expressão na denúncia à censura de uma obra artística que incluía a imagem do Rei Juan Carlos I, mas não a levantar questões como as colocadas por espaços não institucionais em relação à humilhação colonial de Domitila Barrios na mesma obra2 3.  Essa neutralidade política que leva a que numa visita ao museu Meditarrani4 se descrevam as terras mediterrâneas como um “refúgio acolhedor aos imigrantes”. Essa neutralidade política que leva a fazer acompanhar uma visita a projectos artísticos com claras reinvidicações políticas por interpretações levadas a cabo pela instituição que termina a  explicar ao  visitante precisamente o oposto, como sucedeu recentemente com o texto da folha de sala que explicava que parte do projecto Estat Nació. Part I na exposição Desejos e Necessidades (Deseos y Necesidades)5: “Daniela Ortiz + Xose Quiroga propunham uma visita pelas ruas de Barcelona identificando os monumentos  edifícios que celebram o passado colonial e esclavagista da nossa cidade, onde os valores de tolerância e abertura às culturas do mundo contrastam com a comemoração daqueles que enriqueceram com o comércio de escravos ou mercados coloniais.”

O autor do texto referia-se aos valores de tolerância e abertura a outras culturas em Barcelona onde os migrantes que trabalham no espaço público são perseguidos e presas de forma violenta? Ou aos valores de tolerância e abertura às culturas na cidade de Barcelona onde se exigem aos migrantes provas de integração e de idioma de forma a obterem um visto de residência, podendo não permanecer  absolutamente afastadas da vida civil ou terminando sendo deportadas? E é esta última questão que realmente me leva a questionar as intenções políticas do autor da folha de sala, pois o projecto Estat Nació. Part I que conta precisamente com um vídeo, que obviamente não foi exposto, onde são questionadas as actuais políticas em relação à exigência da integração dos migrantes em Catalunha.

 

Estat Nació. Part I. Um grupo de migrantes aprendem a pronunciar correctamente o idioma castelhano através da repetição de discursos xenófobos.

 

Num contexto de extrema violência colonial para com a população actualmente migrante e refugiada na Europa, indagar a descolonização no museu pode ser útil e necessário, mas corre porém o risco de se erigir como uma pergunta completamente descontextualizada, e até ofensiva, se a discussão da actual situação que o sistema de controlo migratório europeu impõe às pessoas provenientes de antigas colónias não surgir como um dos seus elementos principais.  Para descolonizar uma instituição cultural não basta colocar perguntas, realizar exposições e seminários. Descolonizar um museu requer actualmente um trabalho contínuo de posicionamento em relação ao sistema de controlo migratório, requer assumir que é impossível continuar com programações e eventos quando nos contextos locais onde estas propostas são apresentadas há uma completa normalização da existência de Centros de Permanência de Estrangeiros, voos massivos e individuais de deportações forçadas, pessoas com “quase-direitos” e “anti-direitos”, e situações de violência extrema nas zonas fronteiriças. Descolonizar um museu requer enviar cartas ao Ministério do Interior, fazer conferências de imprensa denunciando a utilização da cultura em discursos de integração, utilizar todos os mecanismos jurídicos do museu para se colocar ao serviço das pessoas perseguidas, requer assumir um nível de urgência que tem sido imposto no contexto europeu pela estrutura principal da colonialidade.

 

Publicado em Decolonizing Museums, L’Internationale Online, Artigo, 2 de Setembro de 2015.

 

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Decolonising Museums é a segunda publicação temática do L’Internationale Online; aborda heranças coloniais e mentalidades, que ainda estão muito enraizadas e actualmente presentes nas instituições museológicas na Europa e além. A publicação retira da conferência Decolonising the Museum, tomada lugar no MABCA em Barcelona, de 27 a 29 de Novembro de 2014 (entre as contribuições para esta temática, Clémentine Deliss, Daniela Ortiz e Francisco Godoy Vega participaram neste seminário), e oferece novos ensaios, respondendo aos textos publicados na plataforma online no início deste ano. L’Internationale é a confederação de seis das maiores instituições e parceiros de arte moderna europeia e contemporânea. L’Internationale propõem um espaço para a arte dentro de um internacionalismo não-hierárquica e descentralizado, com base em valores de diferença e troca horizontal entre uma constelação de agentes culturais, localmente enraizadas e globalmente conectados. Um dos principais locais onde a pesquisa e debate relacionadas com o projecto actual de L’Internationale, o programa de cinco anos (2013-2017) intitulado The Uses of Art - The Legacy of 1848 and 1989, tem lugar na plataforma recém-desenvolvida : L’Internationale Online.

 

Translation:  Martina Tzvetan

por Daniela Ortiz
Jogos Sem Fronteiras | 22 Março 2016 | descolonização, Espanha, migrantes, segregação racial