Opaco | ɔˈpaku

As 12 performances pensadas para a câmara fotográfica habitam a tensão entre duas dimensões de representação - a cidade como espaço e o mundo como corpo - uma vez que a cidade é-nos apresentada pelo seu betão anónimo e o mundo é tido como a experiência acumulada e materializada do indivíduo através do seu corpo. 

A tensão existe por contaminação ou fusão dessas dimensões, pois a cidade também é o mundo e o espaço também é o corpo: se os corpos contestam o seu direito à cidade, ao mesmo tempo se sacrificam pelo cimento que a constrói. Então estamos perante um diálogo horizontal e recíproco, apenas possível pela delicadeza da montagem e da composição fotográficas, preocupadas com a exploração de novos ângulos, sem se limitarem a um plano fixo, único e exclusivo. Essa atenção permite a construção de uma dialéctica própria em que o espaço não é anulado pelo corpo, nem vice-versa. Ambos estão de passagem, numa travessia em que a única enunciação possível é feita pelas suas memórias.

Mpemba está preocupado com a anatomia das memórias dos espaços e dos corpos, com o seu desmoronamento ou decadência, com a sua natureza própria, e com a sua função política. O seu olhar sobre a cidade de São Paulo está atento à condição colectiva dos que estão sujeitos a uma ementa de categorias de exclusão, e por isso somos rapidamente remetidos para a questão das migrações e das invisibilidades e, mais profunda do que essas, para a questão das opacidades.

A opacidade é a qualidade do que não é transparente; do que não deixa atravessar a luz nem ver os objectos através de si; do que é espesso, compacto e denso; do que é fechado e cerrado; escuro, obscuro e sombrio. Filosoficamente, dizemos do que não é permeável ao pensamento; na literatura diz-se de um termo que, em certos contextos, não pode ser substituído por outro sem que se altere a função de verdade do enunciado e, finalmente, na linguística um discurso é opaco quando é marcado pela presença do sujeito da enunciação.

É essa opacidade que encontramos na selecção inacabada de fotoperformances do artista Lubanzadyo Mpemba tiradas em São Paulo em 2019. O seu olhar é sempre ficcional e a textura das imagens como fotogramas denuncia o seu percurso da video-arte à fotoperformance, mas o que grita é a problematização real, densa, cerrada e impermeável dos limites da cidade-corpo. O véu cinza que cobre o prédio-ruína rima com o véu branco que cobre as personagens, ambos irónicos na sua insuficiência para tornar invisível o que está por trás e por baixo.

Por mais diversificados que sejam os ângulos, as perspectivas, os objectos cénicos e a linguagem corporal, está presente, em todas as imagens, uma denúncia constante que nos diz muito sobre o olhar genuíno e fiel do fotógrafo sobre os quotidianos dos que se movimentam na cidade e fazem dos seus corpos as suas próprias embarcações. A criatividade da resiliência reside na invenção de esculturas para mascarar obstáculos, na força para amar os tijolos diários e na constrição sobre processos burocráticos que reduzem um indivíduo à sua própria bagagem, com todas as memórias e documentos que transporta lá dentro. A persistência proactiva lê-se pelos gestos desses corpos que não se resignam a ficar parados e a posar para a lente. Existe em todas as fotografias uma acção que sustenta os movimentos; uma inquietação mesmo no descanso da cabeça contra a almofada na parede; existe a iminência do gesto mesmo na verticalidade prévia de quem empurra o carrinho de lixo; existe a atenção redobrada de quem observa o seu lado direito enquanto, à esquerda, protege os tijolos e a luva da chuva imaginada.

raquellima