Vida: os cinco elementos (V e último)
Podemos apontar com mais ou menos facilidade para algo que está vivo, mas já não é tão fácil definir a vida. A água, o ar, a terra e o fogo fazem parte da vida e constituem-na, mas não são vida.
Olhando a partir do nosso umbigo, a vida é o período entre o nascimento e a morte. Vista no seu todo, a vida é uma tremenda e incrível raridade que dura há cerca de três mil e oitocentos milhões de anos.
Maturana e Varela dizem que podemos saber que algo está vivo quando é capaz de criar, reparar, manter e modificar a sua própria estrutura, recolhendo substâncias do meio ambiente e expulsando o que sobra. Esta característica é chamada de autopoiese, que significa autoprodução. A autopoiese é a propriedade básica e distintiva dos seres vivos. Quando não a cumprem, é porque estão mortos.
A vida surgiu na Terra há cerca de 3.800 milhões de anos. Primeiro surgiram os microrganismos anaeróbicos, que não precisavam de oxigénio. Cerca de mil milhões de anos mais tarde, surgiram as cianobactérias, que tinham a capacidade de utilizar a luz do Sol para a sua alimentação e produzir oxigénio como produto residual. Pouco a pouco, estas bactérias foram mudando a composição do ar, da água e do solo.
A biota — o conjunto dos seres vivos — foi criando as condições ideais para a vida na Terra tal como a conhecemos hoje. Co-evolui e regula o ambiente. Com estas premissas, James Lovelock e Lynn Margulis formularam a Hipótese Gaia. A partir daí, ambos demonstraram que aquilo que a ciência tratava separadamente — os seres vivos, os oceanos, a atmosfera, o clima, os solos… — formavam uma realidade indivisível.
A vida como um todo é um sistema complexo que se autoconstrói e se autorregula a partir de trocas químicas e sinais térmicos. Juntos, diz Carlos de Castro, o ambiente e os seres vivos formam um sistema global que funciona como se fosse um ente vivo.
Gaia seria o sistema ecológico global que funciona organicamente, integrando os seres vivos, as relações entre eles e entre eles e a terra, a água e o ar, a partir do “fogo” do sol. Autorregula-se através de uma série de complexos ciclos interdependentes — água, carbono, fósforo, azoto… — que funcionam a ritmos diferentes (de segundos a milhões de anos e a diferentes escalas espaciais (microscópicas, regionais ou globais).
O sol é o motor da vida. É uma estrela que se formou há cerca de 4.600 milhões de anos. Tecnicamente, é uma anã amarela, e continuará a sê-lo por mais ou menos outros cinco mil milhões de anos. Depois disso, tornar-se-á um gigante vermelho e engolirá as órbitas atuais de Mercúrio, Vénus e da Terra.
A Terra e a vida giram à volta do Sol. Este movimento regula o tempo e o calendário dos seres vivos. A sua energia sustenta quase todas as formas de vida concretas e faz com que o sistema funcione no seu conjunto.
Se o Sol é a energia, a fotossíntese é a tecnologia básica da vida. Fascina-me a fotossíntese. É surpreendente que, naquela sopa primordial de células em interação, de repente, algumas delas começaram a converter a luz solar e minerais mortos no seu corpo vivo enquanto expulsavam, como um resíduo, o oxigénio para a atmosfera.
Eu, ateia, imagino desta forma a química da ressurreição. Num solo, a matéria orgânica de seres vivos mortos é convertida por microrganismos em minerais inertes. E as plantas fotossintetizadoras voltam a converter os mortos num corpo vivo…
Faltam, parece-me, muitos poemas sobre a fotossíntese.
A vida organiza-se em rede. Os produtores primários produzem o seu próprio corpo que serve de alimento aos herbívoros que, por sua vez, são o alimento para os carnívoros. Os decompositores alimentam-se da morte de todos os anteriores. As relações entre produtores, consumidores (herbívoros e carnívoros) e decompositores regulam os ciclos em que a matéria é reciclada. Transferem entre si a energia do Sol, que só pode ser capturada pelos produtores primários. Em cada transferência de energia, a maior parte é perdida.
Todos, absolutamente todos os seres, são comidos, vivos ou mortos, por outros seres vivos. Podemos estar certos de que cada partícula que compõe a matéria do nosso corpo já foi uma vez uma flor, uma pedra, um arado, um lápis, um besouro, um canhão ou uma borboleta.
Lynn Margulis diz-nos que a vida não conquistou o planeta através do combate, mas sim através da cooperação. As formas de vida multiplicaram-se e tornaram-se mais complexas, associando-se a outras, sem as matar.
As células eucarióticas — as mais complexas — formaram-se a partir da união simbiótica entre células procarióticas. Os animais e as plantas são compostos por células eucarióticas e, se essa união não tivesse acontecido, a vida seria provavelmente constituída apenas por um conglomerado de bactérias.
Lynn Margulis formulou a Teoria da Simbiogénese, que defende que são as relações simbióticas, mais do que as mutações genéticas aleatórias, as responsáveis por grandes mudanças evolutivas.
A cooperação tem sido também uma estratégia adaptativa para muitas espécies. Aves que compartilham, mabecos que cuidam da sua prole em conjunto, vampiros de Azara que doam sangue uns aos outros, pombos-torcazes que caçam em bandos, bonobos que se organizam em sociedades matriarcais pacíficas e utilizam o sexo para resolver conflitos, aves que se alimentam dos parasitas de alguns mamíferos…
Nós próprios, humanos, somos habitados por milhões de bactérias que cooperam entre si e connosco. No percurso que vai da boca até ao ânus, na pele, no nariz, ouvidos, bexiga, vias urinárias e na vagina vivem microrganismos que ajudam na digestão e em outras funções vitais. Em troca, o nosso corpo fornece-lhes habitat e alimento.
Claro que na natureza existem relações de competição e luta feroz, mas as relações de simbiose e cooperação são fulcrais para que a vida se mantenha. Se a literatura científica tem enfatizado tanto a sobrevivência dos mais fortes, foi provavelmente porque estas interpretações encaixam melhor com uma organização social que torna natural e legítima a competição e exploração de todos os seres vivos pelos que têm mais poder. Talvez seja também por isso que as redes tróficas foram desenhadas sob a forma de pirâmide, com o ser humano no vértice, e não sob a forma de uma rede.
Numa ocasião, perguntaram a Lynn Margulis por que razão a simbiogénese gerava tanta resistência. Ela respondeu, a rir que, para muitos, pensar na evolução em termos de cooperação era demasiado feminino…
A diversidade é outro pilar da vida. Há seres unicelulares e outros formados por milhões de células interdependentes; há aqueles que produzem o seu próprio alimento, enquanto outros obtêm-no do ambiente; podem respirar oxigénio ou envenenar-se com ele. Alguns voam, nadam, saltam, deslocam-se em cadeira de rodas ou andam, e outros não se movem do local onde nascem. Alguns reproduzem-se através do sexo e outros não… A biodiversidade é quase inimaginável à escala humana.
Como se mantém Gaia?
As condições de vida são constantemente afetadas por múltiplas variáveis. O processo que faz com que os seres vivos e as relações entre eles e com o meio ambiente permaneçam mais ou menos constantes é chamado de homeostase. Existem mecanismos de realimentação negativa que detetam perturbações e atuam minimizando e amortecendo as mudanças para que o todo se estabilize, regressando à sua situação de equilíbrio inicial. Os mares e oceanos, por exemplo, absorvem a maior parte do excesso de calor e a maior parte do dióxido de carbono da combustão de combustíveis fósseis, “tentando” restabelecer o equilíbrio climático anterior e abrandando a tendência de aquecimento causada pelo aumento da concentração de gases com efeito de estufa.
Porém, se a perturbação for muito grande, os mecanismos de retroalimentação negativa deixam de funcionar e outros mecanismos de realimentação positiva são acionados, o que amplia os efeitos da perturbação, distanciando muito mais todo o sistema do equilíbrio. Exemplo disso são as emissões de metano que escapam do permafrost quando este degela devido ao aquecimento global, o que aumenta a concentração de gases com efeito de estufa e amplifica o aquecimento.
Quando as perturbações ultrapassam um dado limite, pode originar-se uma série de alterações bruscas e em cadeia que, a partir de um momento, chamado ponto de bifurcação, levam à desorganização e ao colapso do equilíbrio inicial e à configuração de uma nova situação imprevisível, em que o acaso determina o resultado final.
Kaufmann diz, por isso, que a vida se desenrola entre a estrutura e a surpresa. A surpresa soa sempre sugestiva, mas quando nos referimos a forçar a mudança das variáveis biofísicas às quais a nossa espécie está adaptada, as novidades são inquietantes.
A vida que prosperou e se sustentou na Terra nos últimos biliões de anos é solar, cíclica, diversificada, interconectada e cooperativa.
Nós, humanos, somos recém-chegados a esta aventura planetária. Cada espécie dura em média cerca de cinco milhões de anos e depois desaparece. A nossa encontra-se em Gaia há cerca de duzentos mil anos e teremos de trabalhar arduamente para atingir a esperança média de vida de outras espécies.
A civilização industrial é energívora, petrodependente, vertiginosa, extrativista, homogeneizadora, geradora de resíduos incomensuráveis e competitiva. A cultura capitalista construiu uma “normalidade” que choca com a realidade que sustenta a vida. A economia hegemónica é ecologicamente analfabeta e as subjetividades e imaginários que promove estão separados da realidade material do planeta. A quem de nós que vive na bolha do progresso, se esqueceu que somos uma espécie viva.
Ainda que a ciência nos explique que o universo, a natureza e os nossos corpos não se comportam como o grandioso relógio que Newton enunciou nos finais do século XVII, a nossa civilização continua a agir como se os territórios fossem apenas depósitos e lixeiras à disposição da parte privilegiada da humanidade, como se as vacas fossem máquinas que transformam a erva em carne, os rios em tubagens de água e as pessoas em mão-de-obra. Olhamos para a natureza de alto e de fora, como se se tratasse de uma máquina inerte e previsível.
Declara-se que a liberdade vem depois de se ultrapassar o reino da necessidade, mas a necessidade em seres autopoiéticos e carentes de cuidados nunca é ultrapassada. Temos de aprender a viver livremente, sabendo que somos inerentemente ecológicos e interdependentes.
O Progresso, contudo, foi construído sobre a fantasia da separação prometeica da natureza e dos corpos. A negação da nossa condição de seres da Terra, vulneráveis, e um a um finitos, é apenas uma grande ilusão que acaba por modificar irreversivelmente o ambiente do qual depende a nossa própria sobrevivência.
Depois de aplicar durante décadas à natureza viva a lógica das coisas mortas, estamos a cair na realidade. Aquecimento global, perda de biodiversidade, superação da biocapacidade da Terra, contaminação do solo, do ar e da água, zoonoses, proliferação de doenças, pandemias, desigualdades, feminicídios, exploração, expulsões… Desenvolvimento em carne viva.
Após alguns séculos e, sobretudo, nas últimas décadas, agindo como se a organização material da vida humana flutuasse sobre a Terra e os corpos, ocorre um choque violento entre o geopolítico e o geofísico e desaba a base fundamental da episteme moderna: a falsa distinção entre a ordem do natural e a ordem dos seres humanos.
Isabelle Stengers refere-se a este momento como a intrusão de Gaia.
Tudo muda, mesmo que não queiramos vê-lo, no momento em que a emergência planetária emerge como um assunto histórico, sem intencionalidade ou finalidade, mas com diligência, intervindo em tudo o que é político. Apesar de não fazer sentido politizar a ecologia, é essencial que a política seja ecologizada. Devia ter sido sempre assim. Se os seres da Terra desligados da própria Terra organizam o ar, a água ou o resto da vida, eles perturbam tudo.
Já não se pode pensar em justiça ou direito sem ter em conta a irreversível intrusão de Gaia. A maior habilidade dos negacionistas com poder é fazer as pessoas acreditarem que não existe. Entretanto, adaptam-se vantajosamente ao que está para vir, desperdiçando enormes retalhos de vida, incluindo a vida humana.
Os que sonhamos com um mundo habitável para todos no futuro, temos o desafio de não fugir a esta realidade e de tentar incansavelmente colmatar o fosso brutal entre o conhecimento científico e a impotência política.
Magufo é o nome dado àqueles que propagam discursos contrários à ciência, mas que não conseguem provar a sua validade. Acredito que muitas das opiniões da economia convencional são puras “magufadas”. A economia converteu-se numa verdadeira religião civil que exige sacrifícios humanos, vegetais, animais e minerais e nega o futuro à maioria dos seres humanos. A vida começou numa sopa primordial, mas, como diz Naredo, uma economia que cortou o cordão umbilical com a Terra, transforma-a prematuramente numa papa crepuscular.
Em psiquiatria e psicologia, o delírio é uma crença que é vivida com profunda convicção, apesar das evidências darem provas em contrário. Penso que é seguro dizer que a economia convencional é um delírio. Persiste em crescer indefinidamente numa base física que tem limites. É um apóstata da ciência. Não recua nem reconhece o fracasso, embora esteja a causar um vertiginoso ecocídio e não tenha sido capaz de cumprir as suas próprias promessas de bem-estar generalizado.
É um delírio em guerra com a vida.
Não há nenhum organismo vivo em estado livre que não dependa de outros e do seu ambiente. São muito poucos os que podem viver com o privilégio de o ignorarem, mas este sujeito acaba por se erguer como sujeito universal e tem o poder de definir a economia, a política ou a cultura…
São maioritariamente as mulheres — não por essência, mas por imposição, outros territórios, outros povos e outras espécies, em suma, toda a vida — quem suporta as consequências ecológicas, sociais e quotidianas desta suposta independência.
Não é mais do que uma forma de parasitismo que espreme outras vidas, o solo, a água e o ar, concebendo-os como algo externo, subordinado e instrumental que viola a natureza, viola o nosso corpo e o dos outros.
A violência é o negativo da ternura.
Ouvimos muito nestes tempos pandémicos que a espécie humana é a pior, que é uma praga, um vírus. Não creio nisso. Os seres humanos são capazes de fazer o pior e o melhor. Combatem, mas também cooperam. Inventaram a bomba atómica, mas também inventaram a música, a poesia e, por vezes, transformam as carícias numa forma de arte.
Não somos, individualmente, as células cancerígenas: é o comportamento coletivo que tem gerado uma civilização patriarcal, capitalista e colonial que acabou ecocida e injusta. Não estamos perante o suicídio da humanidade, mas sim perante o assassinato de muita vida às mãos de uma parte da humanidade. É verdade que todos nós temos responsabilidade — e, portanto, a capacidade de mudar — mas são responsabilidades assimétricas. Como dizia Silvio Rodríguez, a ordem de fogo é dada por dissidentes do povo, do sonho e da vida que não é virtual.
A vida é uma questão de relações.
Frans De Waal diz em A Era da Empatia que, à exceção de uma pequena percentagem de psicopatas, ninguém é emocionalmente imune ao estado das outras pessoas. A seleção natural concebeu os nossos cérebros para estar em sintonia com outros cérebros, para não gostar do seu descontentamento e para ficar satisfeito com o seu prazer. Empatia com todos os seres vivos. Dizem-nos frequentemente que “preferem os animais às pessoas”. Na verdade, não é incompatível amar as pessoas e também os animais, espigas de milho, montanhas, árvores e água…
Sei que o conhecimento, sabendo que somos a própria vida, não conduz necessariamente à ação. Tal como ter experiência de classe não gera automaticamente consciência de classe, sabermo-nos parte de uma rede viva, por si só, não gera consciência de espécie ou de pertença à Terra. Mas sem ser uma condição suficiente, penso que é uma condição necessária.
O analfabetismo ecológico, mais acentuado quanto mais especializada for a formação, é um enorme obstáculo à reconstrução de laços desfeitos com a natureza e entre as pessoas.
Qualquer pessoa devia ter o direito e a obrigação de saber o que é que lhe permite existir: o Sol como motor da vida, as florestas como pulmões do planeta e bibliotecas da diversidade, a fotossíntese como “tecnologia” central da existência, as bactérias… A auto-organização e cooperação como estratégias de adaptação e sobrevivência, o funcionamento cíclico em rede de todos os seres vivos, a existência de limites, o trabalho de assistência como uma questão essencial que exige corresponsabilidade.
Enfrentar a crise ecossocial exigirá que superemos a fantasia da individualidade e estimulemos uma imaginação, bem fundamentada na Terra, nos corpos e nas suas necessidades. Uma imaginação que nos permita olhar para o capitalismo a partir do exterior, mesmo estando nós dentro. Este “exterior” pode ser Gaia, como um ponto excêntrico a partir do qual se pode torcer o braço do dinheiro. A partir daí, podemos construir uma Nova Cultura da Terra.
Podemos, como nos lembra Viveiro de Castro, aprender também com os povos que nunca foram modernos porque nunca tiveram uma natureza externa e estranha e, portanto, não a perderam nem precisam de se livrar dela.
Exigirá estimular pedagogias, racionalidades e emoções que favoreçam relações simbióticas centradas na suficiência e na partilha; que tornem o comum e o cuidado um princípio político e que envolvam todas as pessoas, tanto no campo dos direitos como no das obrigações. Algo semelhante à razão poética de María Zambrano.
A chave é construir uma comunidade com consciência de classe, de espécie e de sentido de pertença à vida.
No fim de contas, como diz Galeano, “viemos de um ovo mais pequeno que uma cabeça de alfinete, e habitamos uma pedra coberta de água e rodeada de ar que gira à volta do fogo de uma estrela anã amarela. Fomos feitos de luz, de terra, bem como de carbono, hidrogénio e merda e morte e outras coisas, e no fim, estamos aqui, desde que a beleza do universo precisou de alguém que a contemplasse”.
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Fotografias de Renato Cruz Santos / Galeria Municipal do Porto
O texto integrou a conferência “Pensar como uma árvore - ética e estética recompõem os laços perdidos com a Natureza” (1/7/2021), com moderação de Marta Lança, no âmbito do ping! Programa de Incursão à Galeria Municipal (Galeria Municipal do Porto)
O texto integra ainda a coletânea de artigos “Los Cinco Elementos” e foi publicado aqui.