"Merecemos colher os frutos do nosso trabalho"
Rui Estrela Faço vários percursos diferentes porque o meu trabalho exige que esteja em diferentes bairros da cidade ao longo de uma semana. Mas tenho muitas memórias de atravessar a cidade no primeiro autocarro 50 que partia do Oriente às 5 da manhã. Saía de Loures (Moscavide) a pé até ao Oriente (Lisboa), para sair em Algés, apanhar o autocarro e chegar às 7h15 a Carnaxide (Oeiras). A essa hora, o 50 é uma espécie de praça do proletariado ambulante. A cada paragem dá-se um encontro. Começam por entrar as senhoras da limpeza, sobem os cantoneiros, as peixeiras, e até os que fazem os primeiros turnos da manhã. É um espaço de confraternização para alguns trabalhadores, partilhado entre imigrantes, filhos de imigrantes e aqueles que migraram para Lisboa e seus filhos ou netos. Atualmente, o metro fica mais apinhado de visitantes da cidade. Por cima do cansaço do trabalho e do fim de dia, há um regresso penoso.
Sempre que tenho um horário que me permite evitar o pára-arranca da Segunda Circular, levo o carro. Tenho créditos, só comecei a usar o carro depois dos 30 anos. Se prestarmos atenção a esta presença africana nos transportes públicos, ela é forte, serve-nos de um indicador da correlação classe e raça. Será? Acredito que sim. Também acredito que, por isso, é um espaço onde o corpo racializado como negro, ou não-branco, está sobrerepresentado. Mas este é aquele fenómeno que não merece a atenção dos decisores políticos, é mais fácil olhar para a estatística do encarceramento, pois esta permite um voto fácil de adquirir, o da diabolização do outro. Se me focar na sobrelotação dos transportes das camadas empobrecidas pela precariedade e exploração, fazer isso na posição hipotética de decisor político (autarca ou governante) é dar um tiro no pé, e assumir a minha incapacidade de gerir a coisa pública.
Os votos acabam por penalizar no sentido contrário, o da base para o topo. Oeiras, na complexidade da relação entre a comunidade africana empobrecida e o eterno autarca que conhecemos bem, apresenta um monumento ao trabalhador africano ou imigrante. O monumento que temos e não vemos é toda uma cidade que, desde a sua conversão ao catolicismo, tem suor e sangue negro a cada esquina, a cada monumento. Séculos de trabalho gratuito em modelo escravocrata e a exploração dos judeus, cristãos (monofisistas) e muçulmanos de origem africana (mesmo antes de Afonso Henriques chegar a este chão).
Gostaria de ter um monumento dedicado a todas as pessoas que recusaram a escravatura e resistiram de várias formas: fugindo e recusando ser propriedade de alguém, resistindo pela manutenção da sua matriz cultural, mantendo-se vivos e apostando num futuro que só dava pistas de desgraça. Um monumento aos que nunca deixaram de acreditar que vão ser livres e que se revoltam quando a sua liberdade é ameaçada. Inspirar mudança, rebeldia perante a injustiça, defender a dignidade humana, de todos os humanos e seres vivos. Mais do que ter voz, é preciso ter organização, recursos, sentido de comunidade e poder. Poder, porque são válidos os contributos que toda a sociedade pode receber de uma cultura minoritária se, e só se, ela também fizer parte da ação transformadora: da escolha, da execução e da avaliação do plano.
Todos, sem excepção, aspiramos a uma vida melhor; as armadilhas das divisões é que nos enfraquecem, as narrativas segmentadas que não nos permitem manter o foco no que nos une, nós a grande maioria que é quem trabalha e faz um país funcionar. Nós que não somos o 10 ou o 1 por cento mais rico. Somos um bloco enorme que cultiva a erosão de si mesmo, no desespero e no cansaço da vida penosa e precária que não pára de assombrar Portugal.
Devemos ter das piores elites da Europa, das menos humanas, menos estrategas, das mais egoístas e irresponsáveis e menos criativas. Creio que há estudos sobre isso. A herança de um colonialismo que, sejamos honestos, teve curtos momentos de criatividade e criou uma cultura de exploração do outro, de fugir do trabalho, de o tornar emblema que define o outro, o indigno; tudo isto, acredito, está entranhado numa cultura e reflete-se nesta cidade e capital. Uma cidade que acha que é mais fácil pegar no fruto do trabalho dos seus habitantes e pagar a deslocação, estadia e conforto daqueles que passam por ela para brilhar nas cimeiras dos unicórnios. Não se investe no talento que já cá está, que vive na casa do lado. É algo feudal, sugar o tutano dos vassalos para ir brilhar na corte alheia ou no Vaticano, em pleno século 21.
Por isso, a cidade continua a ter suas muralhas, os que vivem dentro e fora dela. Poucos africanos têm um lugar dentro da muralha e se o têm… Malditos, é a substituição. Parece que ainda hoje se cultiva a ideia que “lugar de negro é na senzala”, mas chamemos-lhe subúrbio. Por isso pessoa a quem deram o rótulo de negra, ocupa o que quiseres; somos apenas gente e, como toda a gente, merecemos colher os frutos do nosso trabalho. Sejam colhidos.