A luta dos moradores do Bairro da Torre. A cultura democrática e a lusofonia

Os factos: 

Início de  Abril

A Camara Municipal ordena desocupação das habitações precárias do Bairro da Torre em Camarate.

26 de Abril

Moradores (de várias origens lusófonas) revelam que são assediados por supostas agentes de solidariedade social.

Moradores organizam-se (em torno da Associação Viver no Mundo) e lançam um apelo de solidariedade por todo o concelho. 

28 de Abril

Moradores organizam-se e mais de uma centena assiste à sessão da Assembleia Municipal onde será decidido o destino do Bairro. Tendo em conta a hora tardia e carência de transportes públicos, decidem (por seus próprios meios) investir no aluguer de meio de transporte e deslocarem–se para a AM.

Um Deputado do Bloco de Esquerda na Assembleia Municipal apresenta moção no sentido de revogar a decisão que contou apenas com votos a favor do PC (com algumas reservas técnicas), a abstenção do PSD e CDS-PP, e votos contra da maioria socialista. 

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Uma vereadora socialista ataca moradores em plena sessão colocando em causa a sua honra e bom nome sem fundamentar com dados concretos as acusações feitas. Presidente da Câmara sublinha que os poderes atribuídos à sua pessoa não o obrigam a dar ouvidos a qualquer decisão da Assembleia Municipal.

1 de Maio

Moradores decidem radicalizar a luta após desprezo institucional e noite de assédio por técnicas da segurança social de forma a garantir que, caso não aceitem as duas rendas pagas pela Câmara, serão os primeiros a ficar sem casa. O mesmo discurso repetiu-se morador a morador.

Organizam-se em assembleias de bairro e em co-decisão traçam plano de resposta.

5 de Maio

Moradores deslocam-se à sede do executivo da autarquia de Loures e ameaçam acampar até que sejam ouvidos e até que participem na resolução do problema. Organizações como Plataforma Artigo 65, Precários Inflexíveis, Portugal Uncut, UMAR fazem-se representar na luta.

Ao final do dia, e após invadirem as instalações, o Presidente da Câmara recebe-os, ouve-os, e dá a sua palavra que haverá outra solução que não seja simplesmente deixar os moradores sem qualquer tipo de habitação.

As tecnicalidades e a legitimidade democrática

O princípio da separação de poderes fortalece a decisão do Presidente de simplesmente executar a demolição das barracas, pois mesmo sendo a moção apresentada aprovada por maioria, esta não teria carácter obrigatório uma vez que é da competência do presidente tomar essa decisão.

A execução da decisão é decidida pelo Presidente, mas onde pára o poder de fiscalização da Assembleia Municipal? Onde é estabelecido o limite de actuação da mesma?

Onde seria reconhecida a usurpação do poder, onde pecaria por vício de incompetência a Assembleia Municipal ao revogar a decisão que contradiz o espírito da Constituição Portuguesa?

Não haverá obrigatoriedade de fundamentar tal acto administrativo? E como se avalia a legalidade da fundamentação em si?

Considerando o artigo 65º da Constituição, até que ponto não comportará tal acto administrativo o vício de violação da Lei – ao contrariar o sentido do expresso direito à habitação?

A principal questão: o que terá despoletado este acto e decisão, qual a origem deste evento e a que interesses serve?

As contradições da democracia enquanto regime:

No desvanecer da política de confronto ideológico e em tempos de política mono-ideológica (liberalismo de mercado associado à democracia formal enquanto regime), as máquinas bipartidárias de poder, seguindo a lógica da política Catch All, usam e abusam da imagem do imigrante, do morador do bairro pobre, do morador do bairro precário de habitações de latão e esgotos a céu aberto.

Quando se discute a presença de imigrantes num comício eleitoral de um partido político português a troco de uma refeição, como acto de disputa perante as afirmações de um líder do partido concorrente em campanha no seio de um bairro fortemente africanizado de Lisboa (o auto-proclamado “mais africano de todos os candidatos” por motivos de afinidade), a instrumentalização é flagrante e chega a ser criminosa.

Se, por um lado, às forças laranja da política portuguesa se deve a criação do bilhete de identidade azul, que durante décadas serviu de exemplo de contradição das aspirações democráticas de Abril, ao promover o apart-citizenship, ou cidadania de segundo grau em pleno fim do século XX; por outro, as contradições não são menores como se verifica pelo exemplo desta luta dos moradores do Bairro da Torre de Camarate contra o executivo socialista.

A cultura política portuguesa não se liberta do sebastianismo, da adoração do líder forte, da democracia depositária de poder em detrimento da democracia participativa no poder. Assim continua excessivamente personalizada a eleição do orgão executivo camarário. O efeito psicológico da delegação de poder, da delegação da escolha e da capacidade de decidir devemos ter em memória, pois é meio passo dado para identificar a cultura autoritária que resultou na sucessiva delegação de poderes para as mãos de  ditadores europeus e a consequente suspenção da democracia no século passado.

O problema da liderança foca o modo o modo de repartir o poder entre o líder e o grupo liderado. Recorrendo à Escala de Likert (1962) podemos partir das seguintes categorias:

1- autoritário duro, 2- autoritário benevolente, 3- consultivo, 4- participativo (ver pp-28-PARREIRA, Artur; Liderança.Tecnologia da Eficácia para o Desenvolvimento de Pessoas e Grupos, Edições Universitárias Lusófonas, Lisboa 1996).

As contradições de liderança do PS

Lembremo-nos das geminações autárquicas da autarquia em questão (com municipalidades de Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe entre outras relações com organizações angolanas), da sua alegada contribuição para a construção da lusofonia.

Partindo deste exemplo dado reflictamos sobre o seguinte quadro:

- Nível local do comportamento, liderança autárquica: Autoritário duro

- Nível nacional do comportamento, liderança partidária: Autoritário duro

- Nível internacional do comportamento, liderança nacional: participativo.

- Nível local comportamento, liderança autárquica: Exclusão dos visados.

- Nível nacional do comportamento, liderança partidária: Inclusão (meta-formal) dos visados.

- Nível internacional do comportamento, liderança nacional: Co-decisão com representantes de origem dos visados (Lusofonia/geminação/cooperação). 

Contribuições para uma cultura democrática lusófona e global

O recorte institucional da figura do presidente da câmara favorece um modo de pilotagem personalizado, assenta na ideia da necessidade de líderes entre grupos. Trata-se  da justificação pragmática, momentânea, para o eterno adiamento da intensificação da formação cidadã, do reforço da participação dos cidadãos e consequentemente para o adiamento da democracia participativa.

Ao acentuar o figurino jurídico recusando-se em partilhar a responsabilidade da decisão política com quem ela afectará, não se estará a alimentar o sebastianismo da chefatura,  e a negar a cultura de identidade democrática e a cultura grupal do colectivo que é o espaço administrativo da autarquia, da nação, da organização internacional?

Qual dos dois sentidos antagónicos contribuirá para o desenvolvimento de  uma cultura democrática? A execução rotineira, rígida, associada à defesa da inflexibilidade das normas, esta não matará a própria democracia ao recusar-se a promover a escuta activa, a partilha de informações, a motivar as pessoas a participarem na decisão, negociando metas, discutindo valores, fomentando a coesão grupal, de um grande grupo democrático?

O mercado eleitoral e os excluídos do mesmo

O voto está do lado do contribuinte com direito de voto. Ao contribuinte desprovido do direito de voto resta-lhe o ostracismo eleitoral e a observação do aproveitamento eleitoralista da cidadania precária que o afecta. No momento alto da democracia delegativa - a campanha política -, o aproveitamento da imagem, do bom nome, do estereótipo em torno dos marginalizados e dos excluídos é um recurso meramente instrumental e desprovido de obrigações éticas, pelo menos do ponto de vista do detrimento ideológico e da apologia do combate puramente eleitoralista que muitos pós-modernos defendem.

A psicologia do ajustamento sistemático às situações instantâneas, serve a política do imediato, a lógica da adaptação ao contexto, a deturpação dos factores de origem estrutural que envolvem, por exemplo, a questão da habitação,da inclusão social e da pobreza. Intencionalmente sacrificada, a orientação ideológica cede face à forma de produzir a tempo eleitoral uma decisão fácil de consumir pelo eleitorado desatento e indeciso.

Trata-se da lógica do consumo aplicada à tomada de decisões políticas (eleitores consumidores apenas escolhem o que foi colocado na prateleira por produtores de decisões ao não participarem no processo de tomada de decisão; assim, enfraquecem a democracia, que se quer - para seja o governo do povo, a RES PUBLICA - sempre participativa; é a sua génese tal como nasce das revoluções liberais e procura evoluir a partir destas). É a escolha pelo caminho fácil do populismo, sacrificando os próprios alicerces humanistas que legitimam o regime e consequentemente a própria competência do autarca em decidir sobre a matéria.

Como ideial de justiça foi decidido neste país que nenhum cidadão ficará em situação de carência de habitação de forma a que esse evento seja juridicamente considerado justo ou válido. No país que não precisa construir nem mais um foco de habitação para os próximos 50 anos, mais injusta se torna a decisão de destruir habitações precárias sem propor alternativas que garantam o cumprimento do artigo 65º da Constituição. Na existência de programas específicos  dotados de fundos próprios para resolver este tipo de problemas, a violência demonstrada pelo executivo da autarquia revela a mais frontal cultura de chefatura e de desprezo face a uma parcela da população da qual como representantes são  também responsáveis. Lesa o costume democrático.

A concepção da justiça que muitos acusam de faltar às correntes marxistas ou suas derivadas, é bastante simples: assenta no materialismo de facto, na promoção material e não apenas formal de justiça. No campo do que é palpável,  visa promover a justiça ou seja: manter a paz, distribuir o pão, garantir a saúde e construir a habitação.

Contribuirá a lusofonia para o aprofundamento da democracia nesse espaço que se quer supranacional? A cidadania destes moradores é global, é multicultural, várias nacionalidades cruzam-se numa resposta a um problema que atravessa o globo e que afecta determinadas classes em qualquer parte do mundo, em qualquer tipo de regime político em qualquer tipo de cultura.

por Rui Estrela
Cidade | 28 Maio 2011 | cidadania, cultura democrática, desalojamento, habitação