«Ilhismo»: uma hipótese

Falar de bairrismo partindo do pressuposto de que o chamado bairrismo é a qualidade ou ação de quem frequenta ou habita um bairro. Quem defende os interesses do bairro ou de sua terra, tanto por atitudes de defesa exacerbada de suas alegadas virtudes, ou, por analogia, da terra natal de alguém. O termo possui geralmente uma conotação negativa, pois ao bairrismo está vinculada uma visão estreita de mundo que menospreza tudo aquilo que vem de fora. Raramente o bairrismo é encarado como atitude positiva, de amor e de orgulho por uma região, pelo fato de ferir a paz entre os povos das mais diversas regiões. (Dicionário Online de Português, 2009).

E ilhismo? Procuramos com este ensaio colocar a hipótese de desconstruir o bairrismo e estudar o ilhismo.

Em Cabo Verde, não é novidade nos dias de hoje uma vez que são muitas as tentativas de formalizar o fenómeno do bairrismo, em discursos descentralizados ou regionais, que infelizmente caiem no “saco roto”… talvez devido à sua conceptualização equivocada.

Mas a tentativa de compactar o assunto vem desde o fim do séc. XX, numa monografia por mim realizada, na qual auscultava a possibilidade de haver rivalidades em duas cidades de Cabo Verde, cuja perceção era maior do que o conhecimento das suas próprias realidades. Realidades que pretendo actualmente estender a todas as ilhas, permitam-me falar em regiões insulares, como sendo áreas formadas por conjuntos de ilhas (ou seja, arquipélagos) e falamos aqui de ilhas que fazem parte de um conjunto de dez e que formam o arquipélago baseado em manifestações que materializam a maneira de ser destes grupos populacionais, atuantes no seio de um conjunto de características insulares a que um arquipélago como Cabo Verde está isento.

Antes de entrar na essência desta matéria, comparo atualmente este fenómeno com o Brasil,  e entre Rio de Janeiro e São Paulo. Já me haviam falado desta rivalidade, e lido em blogues, artigos de jornais brasileiros. Mas e os outros estados? Rio Grande do Sul, por exemplo? Os gaúchos reclamam sinais de bairrismo (ou zonas?, compostas por morros, favelas…), pejorativo por parte do Rio de Janeiro. Um gaúcho já dizia que “quem ama inventa as coisas que ama”. E o gaúcho ama as suas praias mesmo que não tenham as melhores ondas, o erva mate mesmo que esteja quente no verão, o seu churrasco, os seus jogos.

A minha intenção primeira foi desvendar manifestações de rivalidade nestes dois espaços pois não reunia informação suficiente para as determinar em outras ilhas. Foi um começo… agora o estudo ficará mais completo!

De Portugal e em deslocações a Cabo Verde fui sedimentando dados que esboçaram um trabalho orientado para a existência de bairrismo (ou não).

Comecei pela análise epistemológica do termo e alarguei-o até ao termo racismo, pois tinha para mim que havia proximidades entre os dois, já que uma vez determinado bairrismo, os sinais deste cruzavam-se com sinais de racismo, como por exemplo: discriminação negativa, xenofobia, pertença a um território. Será importante ter atenção ao que Diop refere sobre esta temática.

Depois elaborei um quadro teórico dedicado aos grupos sociais e à identidade caboverdeana para compreender as manifestações. Tendo Bourdieu como referência. O que pretendi demonstrar com a teoria dos grupos sociais, era exatamente a sua formação e a assimilação do outro pelo grupo, dos seus hábitos, da sua cultura, da sua maneira de ser e de fazer ao se cruzarem. E assim percecionei os dois grupos regionais, de Praia e de Mindelo quando em interação.

Importante igualmente abordar a região, desde a aldeia denominada assim por ter signos como o campanário, à vila composta também pela autarquia e a cidade com vários lugares com o que as outras anteriores têm, mas mais cosmopolita, vista pelos estudiosos da sociologia urbana. Nas duas regiões estudadas lidamos com a urbe, a cidade. Embora Santiago tenha a zona rural, é meu intento trabalhar Santiago Sul e Santiago Norte, tal como comecei no artigo «Chão de Massapé».

A cidade é o palco onde classes sociais, conflitos, pobreza e novos valores culturais se juntam formando o retrato adequado para autores como Engels (teórico revolucionário alemão que colaborou com Marx), ou Simmel (sociólogo alemão/filósofo), entre outros, se debruçaram sobre os enigmas da vida urbana. Com Castells, aprende-se a estudar a cidade como elemento teórico, como elemento político, numa visão elitista. Ele vê a cidade num contexto de estudos africanos ou seja mostra em que medida o espaço urbano é um lugar de inovação e de lutas sociais, e para isso é necessário abordar temas como os sistemas alimentares e processos de urbanização; a economia urbana popular: uma sociologia do ‘desenrasque’ e do ‘contrabando’; as formas de apropriação da cidade; os desafios imobiliários em meio urbano: poderes e estratégias; as estratégias residenciais e os bairros periféricos; a gestão das aglomerações metropolitanas; as culturas urbanas; violência urbana e novas formas de luta social; as formas de organização e os grupos de pressão; os movimentos sociais, as redes associativas e as políticas urbanas; os lazeres modernos e as indústrias do imaginário. Assim como Mbembe ou Myers, que entendem que as cidades africanas devem ser estudadas a partir de instrumentos conceptuais diferentes das utilizadas nas teorizações sobre cidades nos Estados Unidos e na Europa, ou sob a perspectiva de desenvolvimento como tem sido comum nos vários estudos urbanos sobre África.

No caso norte-americano, a Escola de Chicago (década de vinte e trinta) refere-se à primeira importante tentativa de estudo dos centros urbanos e é indissociável da preocupação com a reforma social da grande metrópole e a emergência de novas abordagens para assim lhe fazer face.

Não só na academia se articulou a sociologia com a cidade, fora desta criaram-se espaços de reflexão. Muitos órgãos públicos e entidades civis produziram investigações, relatórios e ações políticas orientadas para a reforma urbana utilizando a linguagem e o modo de ação da sociologia.

Voltando à identidade. Somos europeus ou somos africanos? Ou somos cabo-verdianos? Sempre pensei que eu tinha “dupla identidade” pois faz sentido, emigrante em Portugal por demais de 25 anos e “regressada” a Cabo Verde há 12 anos. Então o que sou? Revejo-me na língua de Camões por assimilação, enquanto os Claridosos o fizeram por alienação. A construção mental e social do Claridoso era europeia, na forma de expressarem a cultura mindelense. Outrossim alguns autores denominados pró-africanistas debatiam-se contra essa ideologia, entre eles Amílcar Cabral. Aqui denotei alguns vestígios que apontavam o dedo para a descriminação, sintoma de que havia sinais de superioridade encarnado sobretudo pelo nosso douto Baltazar Lopes da Silva. …

Amílcar Cabral aparece falando do suicídio de classes, rompendo com a visão eurocêntrica da epistemologia. Consegue? Frantz Fanon apresenta-se mais perentório?

E Cheikh Anta Diop que, segundo um seu aluno, ajudou a colocar um fim na “falsificação da história humana” herdada do passado colonial.

Como se faz a identidade de um povo? A partir de uma elite? De uma nação? Cabo Verde, segundo Daniel Pereira, já era Nação antes de ser Estado. Uma nação com várias regiões, que deviam ser unidas pela mesma identidade. Segundo Pierre Bourdieu a simbologia retrata os sinais identitários de um povo. A representação da identidade é feita, por um lado, pelos símbolos afetos à nação, ao povo, e à vontade em determiná-los como pertença.

Desta forma em Cabo Verde no séc. XX, uma elite europeizante torna esta fundamentação materializável através da literatura, música, embora pouco conheça de outras regiões, como Santiago, o batuque, o funaná, outra literatura.

No seu auge Mindelo, conhece através do seu Porto outras civilizações, o seu Liceu ensina e educa vários alunos vindos de outras ilhas que não só São Vicente… (haveria bairrismo nesse tempo? De quem para quem? Como se manifestava?)…

Com uma certa durabilidade de mobilidade ascendente, Mindelo conhece depois uma queda económico-social e cultural, e a hipótese de ser capital não se pôs mais.

Santiago, com capital na Praia, sempre teve concorrência por parte de Mindelo que exigia para si a capital pelos aspetos já apontados. Mas com toda a parte administrativa concentrada na Praia, com a 1ª Cidade a ser habitada, o Seminário, a extensão da ilha, faz de Praia deveras a capital.

Vários indicadores nos permitem viabilizar quem devia ser capital ou não.

É importante determinar igualmente as características do sanvicentino e do badio nesta análise. Mais brincalhão, boémio, descontraído, pela experiência com outras culturas, o sanvicentino passa uma imagem de bem com a vida e o badio é mais reservado, um pouco desconfiado, muito trabalhador da sua terra.

Em momentos de fluxos migratórios, a perceção que resta entre estes dois é de descriminação negativa.

Em momentos políticos, a perceção é de subestima.

Em momentos de interação, a perceção é de bairrismo ou ilhismo?

Entre jovens com interesses diferentes pois de zonas diversas, urbana e rural é possível a existência de manifestações rivais, de turbulências. O jovem da urbe vive de forma mais intensa, nos cafés, cinemas, lê jornais, vai a lojas e o jovem do meio rural está mais dedicado à terra, à família, ouve os conselhos dos mais velhos que o protegem.

Os jovens dos bairros e a esse respeito, Schmidt (1951, p. 15) mostra que, até certo ponto, os limites de determinado bairro se confundem com os limites fisiográficos do espaço, pois o bairro “é um lugar, uma área qualquer, com características mais ou menos próprias”, podendo ser “um vale, […] ou nascente de algum ribeirão, uma praia […]. É o povo que lhe dá o nome e determina, com limites mais ou menos imprecisos, a área abrangida pelo mesmo”, é no dizer do sociólogo Redy Lima, uma zona.

Estes jovens identificam-se quase sempre em grupos de pares. Com o mesmo estilo de vestuário, acessórios, a mesma linguagem e os mesmos intentos. A música é semelhante, o lema igual, e pouco ou nada falam da família. Precisam dela para pedir dinheiro, ou quando fazem as refeições. Os pais, ou os adultos reveem-se neles para fomentar a altura em que estavam na “flor da juventude”.

Há, no entanto, muitas juventudes. Cada grupo de jovens é uma juventude. Com a sua tipologia temos jovens com vários objetivos na sua caminhada até a vida adulta. E são fechados neles.

Os jovens do meio rural  obedecem a alguns campos de análise e estes são:

i) o seu dinamismo, ou seja, os seus deslocamentos no espaço, isto é, as migrações.

ii) a morfologia social que abrange todo o estudo da diferenciação e da estratificação social, das classes e camadas em que se distribui a população do campo.

iii) as principais instituições sociais, a família, a escola, as filiações religiosas e instituições de administração e governo, todas elas analisadas do ponto de vista das características específicas que resultam de sua implementação no meio rural.

iv) a dinâmica social, isto é, todos os processos sociais que envolvem competição, conflito, cooperação, acomodação, assimilação e aculturação e mobilidade social.

Estes jovens aspiram à urbe, porque não acontece nada na sua zona. Querendo estar como o jovem urbano e almejando um melhor trabalho com outro salário para fazer o que o citadino faz.

Desde os anos 80 as políticas da juventude em Cabo Verde promovem o associativismo juvenil, a educação não-formal e informal, quer pela sua participação na vida ativa e ao longo desta.

O que é então ENF? É um processo de Aprendizagem Social.

Desde que surgiu na agenda internacional em 1968, tem sido um conceito objeto de um intenso e prolongado debate sobre as suas origens, os seus contornos, a sua aplicação, mas sobretudo a sua utilidade, nos diferentes contextos políticos, sociais, económicos, culturais e educativos.

Tenho consciência, o que se torna um paradoxo, que o termo encerra incerteza, confusão e dúvidas quanto ao seu significado, a sua pertinência e valor intrínsecos. Tento aqui desbravar o termo.

Ed. NF – vista como toda a Educação que acontece fora do sistema da Ed. Formal. Designa atividades realizadas sobre diferentes contextos sem que a primeira finalidade seja a aprendizagem propriamente dita.

Ed. Informal – nas ruas e precisa de um trabalho etnográfico. E será este o nosso trabalho de campo.

A ENF e estilos de vida dos jovens - Constituem uma presença e um referencial habitual na atualidade. São uma fase de transição entre a infância, a adolescência e a capacidade de procriar e de inserção na vida ativa. São da faixa etária dos 15-35 anos. Resistem à sã convivência, à família, à vizinhança, ficando por cumprir a educação para a cidadania e a cultura da Paz.

É o que pretendo observar dentro das zonas em várias regiões.

por Elsa Fontes
Cidade | 12 Outubro 2020 | Aprendizagem Social, bairrismo, identidade, Ilhismo