“Encontramo-nos na Zona?” Uma exposição de Ceci Lombardi, dri e Maria Cidraes
Curadoria de Ceci Lombardi. Inauguração: domingo, 13 de Julho, das 16h-21h. O Gabinete de Madame Thao, Lisboa. Entrada gratuita
*
O Comboio e o Jaguar (ou uma carta dos trópicos, para as artistas)
Escrevo estas palavras a partir de uma longínqua floresta, no Brasil. Por aqui, não se ouve o rumor dos comboios noturnos da CP, nem a voz robótica que se repete e multiplica em todas as carruagens, a anunciar a próxima estação. Escuto o rugido dos jaguares, em cativeiro, a ecoar na floresta, enquanto esperam o momento de regressar à vida livre. Esta floresta é o centro do mundo. Os jaguares pensam a sua existência a partir deste lugar.
Estamos em 2025: nós e os jaguares.
Na Linha de Sintra, ainda e sempre, o movimento perpétuo dos comboios. E três artistas: Ceci Lombardi, dri e Maria Cidraes, que se juntam para expôr uma constelação de obras que se enfeitiçam mutuamente. Este gesto curatorial é a afirmação do desejo de uma arte viva e feroz, que se deixa afetar pela vibração dos tempos e procura o contágio no coletivo, na acção, no encontro. As obras das três artistas parecem conspirar juntas, criando narrativas imprevistas entre si, e transformando o espaço expositivo num lugar que, ao invés de neutralizar a pulsão das autoras, reativa o seu movimento, como num mapa vivo. Também a Linha de Sintra é o centro do mundo - e escrevo estas palavras na sombra desta premissa.
As manchas do jaguar são únicas em cada indivíduo, funcionando como uma impressão digital. A pele do animal tem inscrita, de uma forma brutalmente bela, a expressão máxima da sua singularidade. Em “Encontramo-nos na Zona?”, são postas em jogo obras que partilham territórios afetivos e a produção de um conhecimento estético a partir de experiências de vida de três mulheres. Mas, apesar das evidentes pontes que as aproximam, Ceci Lombardi, dri, e Maria Cidraes lidam com tensões artísticas muito particulares, na forma como vêem e reorganizam mundos possíveis a partir das suas criações.
Os bonecos de Maria Cidraes, em Emocional, são representados no durante, a meio do movimento, momento instável que a artista não interrompe, reconhecendo que os seus modelos (vivos ou imaginados) se tenham recusado ao jogo das representações, ao dos corpos sentados passivamente em posição de observado, diante de um pintor ou escultor que os aprisiona. Como jaguares na floresta, os bonecos escapam enquanto nos olham de volta. Aqui, sempre em processo de derretimento, em fuga da figuração, como se a representação realista fosse apenas um estágio de passagem, estes seres com anima parecem ter uma vida própria, secreta, e uma individualidade que reconhecemos como próxima. Mas, ao mesmo tempo, são parte da multidão. Este trama - que a própria disposição dos bonecos pelo espaço expositivo intensifica - abre lugar a produtivas especulações. Cabe ao espectador, em movimento tátil com as obras, reorganizar estas tensões e trazer mais perguntas para o jogo.
A artista multidisciplinar dri reinventa uma ideia de cidade na obra lugar d’troca através de um conjunto de criações poéticas e inventivas que exploram a possibilidade de voltarmos a pensar as casas e as ruas como territórios afetivos, lugares de construção de narrativas, de intensificação de comunidade e da reprodução de memórias e imaginários profundamente vinculados às vidas de quem as habita. dri recusa a pura descrição observacional da cidade e o seu trabalho é iluminado por uma aguda consciência de que a construção das ditas periferias de Lisboa se deu sob um processo histórico profundamente ideológico, excludente e violento. Assim, e apropriando-se de técnicas e materiais diversos, dri parece dar vida às suas casas. Estas casas têm gente; estas casas são gente. O conjunto de prédios construídos à mão pela artista é muito mais do que uma mera alegoria da vida urbana: pensamos nas mãos cuidadosas da artista, no gesto mínimo e primoroso que dribla as brutas linhas rectas e opressoras da arquitetura autoritária e pensamos também no mesmo gesto mínimo e primoroso de operários, pedreiros, artesãos e emigrantes que, tijolo por tijolo, ergueram, da terra aos céus, a cidade infinita que se ramifica ao longo da Linha de Sintra. Casas com vida, com gente dentro, e com sons domésticos que quase ouvimos, ao longe, como o rugido do jaguar a rasgar a floresta, qual trovão ancestral.
As pinturas de Ceci Lombardi, são atravessadas por uma espécie de impermanente memória do mundo, com traços difusos, ritmos e contra-ritmos, composições que nos trazem o delírio do quotidiano e uma fúria sensível no uso das cores. São pinturas profundamente cinematográficas, mas que transcendem a hegemonia da linearidade - das formas e das narrativas - que, durante mais de um século, tem aprisionado a arte das imagens em movimento. Aqui, o que nos é dado a ver, são quadros vivos, figuras e lugares que se movem em slow motion, como uma cósmica projecção de cinema, numa tela nebulosa, onde a imagem nunca se chega a fixar. Podemos especular e pensar num pré-cinema, qualquer coisa de profundamente elementar, ainda que possamos tatear alguns signos esparsos da contemporaneidade. Pinturas que não se mostram, mas se revelam lentamente, como o celulóide num banho químico. Em De Cacilhas para o Pragal, do Pragal para Sete Rios, de Sete Rios para Rio de Mouro, Ceci Lombardi inventa um mundo possível, onde os caminhos de ferro são magicamente absorvidos por uma fábula verde: um regresso, sem nostalgia nem lamento, a um tempo pré-industrial. No lado direito do quadro, surge a silhueta de um ser mais-que-humano, em metamorfose. Um jaguar olhou para mim? Ceci Lombardi devolve-nos, nesta exposição, a cidade imaginada e a cidade real como uma só, entrelaçando as duas com a fluidez do seu traço, com a presença espectral das suas figuras incertas, e com a construção de cenas de comovente intimidade onde a sua mitologia pessoal é aflorada e transformada num festim de cor.
Um itinerário possível: que o espectador se detenha na obra A quadra da Rinchoa agora tem relva, como um passageiro apeado em plena via, entre estações. A tela expande-se, reaparecem os prédios de um lugar d’troca num horizonte próximo, e os bonecos de Maria Cidraes em Poemas cruzam a paisagem. A cidade está viva, em acção. O que as artistas parecem propor, é que as obras se pensem em comunicação entre si, como corpos que dançam juntos, em aproximação e soltura.
“Encontramo-nos na Zona?” esboça com beleza e fulgor um gesto de ressignificação e abolição das noções de margem e centro. A floresta é dos jaguares. E a cidade - lá onde os comboios passam - é de quem a faz e de quem a imagina.