A Cidade Camaleão - extractos de um hypomnèmata

Os corpos estão fechados, quase fechados. Os corpos são ilhas fantásticas isoladas na matéria. As ilhas são sérias à força de fixarem o horizonte. O horizonte, linha curva e cruel que nos interdita o que está para lá. 

cidade do Mindelo, Cabo Verdecidade do Mindelo, Cabo Verde
A cidade telúrica

O que revela esta cidade, que poesia brota deste “caos”, que mensagem telúrica é esta? Parece que a cidade refaz o que o vulcão fez há milhões de anos atrás, antes do nascimento do homem. Há qualquer coisa que nos escapa no crescimento tão súbito desta cidade. Qualquer coisa emerge, derramando-se à velocidade demorada de uma lava de cimento. É algo vivo, qualquer coisa de profundamente orgânico. A cidade dispara desesperadamente os tentáculos sobre os flancos da montanha e cobre, a pouco e pouco, a cratera.
A cidade é bela como uma paisagem, como uma construção natural porque escapa ao entendimento, porque surge de uma vontade superior. Um devir caótico independente, orgânico, sobrenatural.

Pesquisa

Procurar é tentar encontrar qualquer coisa que já lá está, que nunca ninguém encontrou ou sequer prestou atenção, ou simplesmente algo que toda a gente já encontrou excepto aquele que a procura. Não sei em qual das categorias me insiro. Sem dúvida que não é na primeira, mais provavelmente nas duas últimas. Quando se procura, procura-se a si mesmo. Procurar é estar comprometido com o inacabado, com o inexprimível, com o incomunicável. Procuramos e procuramo-nos e no dia em que nos encontrarmos já não estamos. A cidade procura-se. É uma cidade que está em construção e que ainda não se encontrou. A cidade procura-se através das suas influências, da sua história, dos seus habitantes; cresce na procura de um tempo que se inventa e se renova todos os dias. É uma cidade e um povo que se procura através de uma diversidade de origens e de influências. No dia em que se encontram ou se definam, morrem.

É claro que morrem porque permanecem indefinidamente presos nas suas próprias definições.

Agora a cidade morre e ressuscita todos os dias. Mata-se. Resvala. Foge ao entendimento, à lógica. Mas tem lógicas que se cruzam, que se multiplicam, que se unem. As casas unem-se na noite. É uma verdadeira orgia. E destas uniões monstruosas brotam outras casas que são universos. As casas são trampolins, rampas de lançamento, armadilhas de sonho, planetas inteiros, ilhas evidentemente. São belas, elegantes, admiráveis; ou grotescas, obscenas e fantásticas, ultrajam o bom gosto e ainda bem. À noite, as casas são barcos invertidos que se entediam num mar de pedra. Este som surdo são as quilhas que batem no fundo. Os habitantes adormecidos sondam o céu para saber se têm pé. As casas são veículos que abrigam e transportam… O quê? Os nossos desejos, os nossos sonhos, os nossos defeitos, as nossas fragilidades e aqueles que amamos.

Talvez sob uma destas casas se encontre a entrada de um túnel que liga todas as ilhas de Cabo Verde entre si mas também todas as outras ilhas. Juntas, as ilhas conspiram para delimitar – para tudo armadilhar – os continentes nas suas ciladas.

Ver as casas de cima, de dentro.
Ver o dentro de cima.
Ver o cimo, dentro.
Ver dentro.
Ver.

Método de pesquisa
Dois brasileiros serão os meus guias:

É que Narciso acha feio o que não é espelho, Caetano Veloso   

Estou-te explicando para te confundir
Estou-te confundindo para te esclarecer
Estou iluminado para poder cegar
Estou ficando cego para poder guiar
, Tom Zé

Quem acredita nestes espaços? Ninguém pode acreditar nestes espaços. Eles existem para nos fazer rir. Quem acredita que o que vê é, é aquilo que é.

Onde fica localizada a perspectiva no cérebro? Onde estou eu no meio destas linhas, destas geometrias? Serei eu paralelo à minha própria vida ou estarei dentro, sem distâncias e sem visões? Até que ponto o que vejo é o que é? Vejo formas, sombras, anti-formas e a antecâmara das sombras iluminadas e sem estrelas. Deve ser o outro lado do universo. Uma escada incrustada na pedra leva-me onde bem lhe apetece.


Da cidade em mim

Gosto das cidades, dos homens em construção. Os sacos de cimento abrigados por um plástico, os montes de areia e de gravilha, os tijolos arrumados na borda dos muros, os restos das paletes, as canalizações, as plantas que continuam a nascer no meio da poeira, as tranches sem destino, as vigas de betão que surgem aqui e ali, espírito de continuações. As transparências atravessam os edifícios, buracos em vez de janelas (como um sorriso desdentado), as portas em madeira, os cadeados, a pedra vulcânica das fundações, as escadas que não levam a lado nenhum, a cave ainda sem mistérios, sem reservas, as colunas brutas de cimento que ainda não deixam ver a sua origem grega ou romana, que não desvendam ainda nem o capitel nem o fantasma do proprietário, as varandas sem parapeito que nos dão vertigens ao vê-las de baixo, os andares em placa, as superfícies, os volumes ainda sem função que irrompem da fachada como pranchas, as passagens sem saída, as vias de sentido único. Os espaços imaginados para serem casas-de-banho, quarto, salão, cozinha, caves, águas-furtadas, arrecadação, nos quais um dia se bebe, se come, se prepara a refeição, se fuma um cigarro depois do amor, se olha pela janela, onde nos entediamos, onde esperamos… Os ossos, a carne e a pele agastada. O esqueleto é visível e os espaços entre os ossos recortam a paisagem. Através de ti vejo a paisagem, a montanha e o mar, o azul do céu. É isto que me atrai, que me fascina nestas casas inacabadas, em obras, esta estética do possível, do que está a fazer-se, do provável e do improvável, da aspiração, do irrealizável, do imaginário e da inquietude. Um mundo aberto sem certeza. O mundo da angústia, de todas as possibilidades. A liberdade dos seres ou de ainda não ser. (As pessoas sem inquietações são blocos guardados por pittbulls)

Sobre o inacabado

Mas o que procuro eu nas casas inacabadas? O inacabado, sem dúvida alguma. As casas não são senão veículos do pensamento.
Mas existe ainda algo mais instável, mais indefinível e que desestabiliza aquele que observa a cidade. O facto de existir, face a algo que nos escapa, que tem vontade própria, a sua própria autonomia. Habitualmente, chamamos a isto caos, um facto que se nos entranha, um frente a frente que nos transforma. Um facto inacabado que nos obriga a questionarmo-nos perpetuamente. O inacabado é qualquer coisa de instável, de dinâmico, de paradoxal: parar no tempo quando o pensamos e por isso impossível ser pensado, que se subtrai ao nosso pensamento mas ao mesmo tempo cheio de possibilidades, que tende para o futuro, que nos dá o elo. Sem relação com um mundo em ruína. Sem relação com a nostalgia de um passado já revolvido mas sobretudo uma tomada de posição de um tempo que nunca mais será o mesmo. O inacabado é o inquietante. É a angústia do devir que nos escapa e a angústia de um presente bem real e intransigente. 

Um ser em construção

Focalizo-me sobre o que acredito ser importante, é como quando procuro qualquer coisa perdida. Está mesmo em frente dos meus olhos mas eu sou incapaz de a ver, cego com a ideia de não a encontrar. Como de cada vez que procuro as minhas chaves, por exemplo. Removo céu e terra, vasculho a casa toda, torno vinte vezes ao lugar onde elas deveriam estar, e onde mais tarde elas se encontram efectivamente. Muitas vezes vejo-as e outras observo-as sem as chamar, incapaz de as distinguir já que o meu espírito não as pode imaginar ali. Quando procuro, procuro frequentemente o acessório, vou pelo caminho desviante. O essencial está à minha frente e eu perco-me nos detalhes. Nenhum destes detalhes é insignificante, nem os momentos em que procuro o acessório, nem o tédio que por vezes me invade, nem os momentos de lucidez em que sinto que nada disto tem sentido nem utilidade.

Para a próxima semana: cuspir no mar. Refazer o trajecto do vulcão. Todas as manhãs imitar a erosão.

Nesta cidade, vejo um ser que se move docemente, qualquer coisa que ainda não sabe andar, antes desliza. É um ser que me faz lembrar um outro ser que é este mesmo que eu observo. É um ser que me lembra todos os seres. Não deslizo, mas os meus caminhos são sinuosos e indefinidos. Todos estão inacabados e tudo em mim está em construção.

texto originalmente publicado na revista Dá Fala nº 4, Cabo Verde, 2005 e aqui.

Translation:  Marta Borges

por Mattia Denisse
Cidade | 16 Maio 2010 | Cabo Verde, ilha, Mindelo, vulcão