Zumbipenetrações

A lenda é medieval, da Europa Central. Um vilório estava infestado de ratos e grassava o medo da peste. Recorreram então ao mago Hamelin, que com os acordes dionísicos da sua flauta arrastou os ratos da cidade para o leito do rio, onde se afogaram. Mas a cidade não quis pagar o seu preço. Voltou então o flautista a cobro da noite e a suas melodias enfeitiçadas acordaram as crianças da cidade que levou consigo para o recôndito da floresta, encantadas e desaparecidas.

A lenda é um dos inúmeros vestígios da sobrevivência da tradição órfica no seio da cristandade e atesta o poder mágico da arte: conjuração e transformação. O desaparecimento de crianças e ratos é a sua prova viva.

Como estamos hoje, tantos séculos volvidos sobre a Idade Média? Italo Calvino fez o diagnóstico possível em Ponto Final (1995): “A sociedade manifesta-se como colapso, como ruptura, como gangrena (ou nas suas aparências menos catastróficas, como vida do dia-a-dia); e a literatura sobrevive dispersa nas gretas e nos desajustes, como consciência de que nenhuma derrocada será tão definitiva que exclua outras ruínas”.

Jorge Dias 'Coisas Suspendidas (Suspended Things)'Jorge Dias 'Coisas Suspendidas (Suspended Things)'

O que em Calvino vale para a literatura é igualmente justo para a arte. E os ratos, como se vê nesta exposição voltam a invadir tudo, a roer corações e memória. Urge um grito, um eco que estale a reificação geral, um novo brilho para as ruínas.

A arte em 2007 é um mundo de uma tão grande estratificação que já não admite um antes e um depois; um leque infinito de pesquisas e possibilidades apresenta-se simultaneamente no palco da contemporaneidade. Ademais, há muito que se perdeu a crença na arte como sortilégio, como agente de mudança; debilitado o seu poder mágico. Foi-se impondo por isso nos últimos anos uma racionalização que nos melhores casos, quando um tanto de sensibilidade Camp e de humor restituiram alguma candura, desembocou num neo-dada risonho ou num neo-conceptualismo de inspiração land.

O que me agrada nesta antológica de Jorge Dias, a sua primeira individual, é ver como evoluiu de uma linha de estilização redutiva neo-dada (de contornos perigosos dado que às vezes confunde engenho e arte), visível nos trabalhos Casulos, Em Construção, Frango Descansado, para um outro plano de integração e complexidade plástica que coloca a par da capacidade conceptual um impulso visceral, produzindo uma tensão, digamos, caleidoscópica.

A carga visceral em Aperfeiçoamento Sistemático, Coisas, Neo-Casulo, Plataforma Espiritual, Habilitação ao Zero, Trabalhos Antigos em Novos Projectos contrabalança a abstracção, a construção, e o orgânico mistura-se com o signo gráfico e pictórico (as moscas que são moscas e molas de roupa e signos gráficos; os lagartos que são… ee…). Há uma festiva recuperação da ambivalência como amplitude estética, o que se estende inclusive aos materiais – variados, compósitos, desviados

Jorge Dias, 'Coisa'Jorge Dias, 'Coisa'

Esta série de figuras heteróclitas, híbridas, que convocam à vez a riqueza cromática da pintura, a materialidade tridimensional da escultura e a apetência táctica dos móbiles de Calder, são instalações que se sonham?

Com Galinha Descansando estamos ainda face a uma representação que reage, parodiando uma ideia de arte e contrapondo ao sublime o gesto, mas com Neo-Casulo, Plataforma Espiritual, Coisas, etc., matéria e forma, imaginação e composição produzem novos artefactos, uma síntese que transporta já em si uma nova poética zooartística. E claramente não antropocêntrica. São “coisas” artísticas que demandam uma Cinestesia (até o olfacto nos é sugerido em Coisas) e que nos devolvem o mundo (esse bestiário ou zoológico subterrâneo, que queriamos banido) como grito e irrisão.

O que é evidentemente um saudável gesto político.

Tenho para mim que Jorge Dias é uma dessas crianças perdidas de Hamelin que voltou para nos atazanar o espírito e a mente. Não lhe regateemos o zumbido, a sua leve coloração demoníaca. Coisas que deve ter aprendido com o Mestre Hamelin.

por António Cabrita
Cara a cara | 4 Novembro 2010 | arte moçambicana, Jorge Dias