Wash and Go

Português prejudica, serigrafia sobre cartão. Yonamine, 2008.Português prejudica, serigrafia sobre cartão. Yonamine, 2008.

O trabalho de Yonamine que aqui se apresenta organiza-se a partir da evidência da rasura. Yonamine é oriundo de um país rasurado, Angola. Um país em que a história em vez de funcionar como um palimpsesto, como um texto sobre o qual se iam produzindo múltiplas escritas que iam deixando transparecer a escrita anterior, funcionou quase sempre como um processo de apagamento. A história foi sendo rasurada em nome de um interesse maior. O passado colonial português, que Yonamine evoca com subtil ironia no título da exposição e na série dos maços de tabaco “Português Suave”, foi rasurado pela descolonização precipitada, que por sua vez foi rasurada pela guerra, que é agora rasurada pela paz.

Este processo de sucessivas lavagens foi um processo abrasivo, como se o corpo (do país) fosse esfregado com palha-de-aço. E a pele, de sistematicamente ferida, se transformasse numa pele dura, numa pele escamosa, numa carapaça.

Esta exposição surge então como uma antologia da rasura. Não só nos métodos plásticos utilizados, mas nos conteúdos propostos. E temos, como imagem da própria exposição, uma mão calçando uma luva de borracha preta que sistematicamente esfrega uma superfície de vidro, enquanto a outra face desta instalação é ocupada por um incêndio de uma parede de jornais que cria um buraco atrás do qual aparece, fantasmático, o próprio autor. Os jornais forram ainda o chão da galeria numa contínua alusão à precariedade da História e do tempo. Os jornais são o relato do tempo presente, o lugar das notícias, mas também o território do efémero, de um tempo que se consome na voragem do próprio tempo.

A esta ideia de rasura associa-se assim uma ideia de acumulação, mas não será difícil concebermos que estamos perante a outra face da mesma moeda. A acumulação é uma forma de rasura, porque se organiza em torno de uma lógica de sobreposição e apagamento da camada anterior. É isto que acontece em “phreestyle”, uma parede-quadro, que poderia ser uma parede de rua, construída através da sobreposição de várias camadas de papéis rasurados e outros elementos, ou no processo de gravura-grafitagem que sofre a parede oposta da galeria, em que as imagens rasuradas (o texto quase censurado) dos maços de tabaco Português Suave são directamente gravadas na parede. Ou ainda nas telas da série Wash, em que a imagem, também imprecisa de George Washington, aparece tutelando uma série de outros elementos iconográficos, como se a história dos EUA se cruzasse com a História Universal da Lavagem.

Curiosamente Yonamine integra-se num movimento mais recente de recuperação iconográfica, de levantamento do estado das coisas em Angola, como tem sido a Trienal de Luanda (comissariada por Fernando Alvim). É por isso curioso verificar que a deriva mais pertinente deste levantamento acabe por desembocar nesta escatologia do efémero. E estamos perante uma escatologia que é também uma ontologia. Porque o lixo, o desperdício, o papel, a rasura são elementos organizadores desta narrativa.

Wash, dupla projecção video. Yonamine, 2008.Wash, dupla projecção video. Yonamine, 2008.

Não deixa por isso de ser relevante que um dos trabalhos mais impressionantes aqui apresentados, seja justamente um vídeo, em que uma mole de vermes impolutamente brancos devora, avidamente, a putativa carcaça de um qualquer cadáver apodrecido ao sol. Wash and Go.

Texto e imagens da exposição Tuga Suave, de Yonamine, Galeria 3+1 Arte Contemporânea, Lisboa, 2008.

por Paulo Cunha e Silva
Cara a cara | 14 Abril 2010 | angola, artes visuais, yonamine