“Com a sua obra, Paula Rego mostrou que a democracia não está completa sem incluir os direitos das mulheres”, entrevista a Catarina Alfaro e Leonor de Oliveira
“Revisitação da primeira exposição individual de Paula Rego”; “Ecos da exposição de Paula Rego”; “Paula Rego e o 25 de Abril”; “Paula Rego e os direitos das mulheres”; “Mutilação genital feminina” e “Paula Rego, uma contrahistoriadora”. Estes são os nomes que intitulam as oito salas da mais recente exposição inaugurada na Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais – “Paula Rego: Manifesto”.
Em entrevista ao BUALA, as curadoras Catarina Alfaro e Leonor de Oliveira falam da sua investigação em torno do trabalho desta artista portuguesa, cuja obra desafiou a época ditatorial em que viveu. O contexto pré e pós-Revolução dos Cravos, as questões políticas ou os direitos das mulheres são apenas algumas das temáticas que Paula Rego representou nas suas gravuras, pinturas e desenhos. A crítica à sociedade marca presença em todas, ainda que subtilmente.
A minuciosa pesquisa de Catarina e Leonor mantém-se, uma vez que muitas das obras da artista ainda se encontram em parte incerta. Porém, na exposição inaugurada a 18 de abril, o público terá acesso a uma recriação da primeira exposição individual de Paula Rego, apresentada há quase 60 anos. São dezoito de dezanove pinturas que compõe esta mostra histórica, criadas entre 1961 e 1965, e que ocupam a primeira parte da exposição.
Já a segunda parte da exposição apresenta cerca de 60 obras e “propõe um aprofundamento crítico, através do olhar e da experiência de Paula Rego, sobre temas como a intervenção cívica da artista no seu país de origem”.
Sentadas na sala “Paula Rego e o 25 de Abril”, as curadoras falam com entusiasmo do quão marcante foi conseguir reunir esta mostra artística e apresentá-la pela primeira vez ao público. Além disso, e relembrando a celebração dos 50 anos do 25 de Abril, Catarina e Leonor salientam ainda a importância da Democracia e de como é importante saber preservá-la. Segundo as suas palavras, devemos “rever a História constantemente”, “questionar as visões tradicionais” e olhar à nossa volta para “percebermos se elas de facto fazem sentido na sociedade em que vivemos atualmente”.
De onde vem o vosso interesse pela arte moderna e contemporânea, e, mais especificamente, pela arte de Paula Rego?
Catarina Alfaro (C.A) – Eu estudei História de Arte e fiz o mestrado em Museologia e Património. No início do meu percurso profissional, comecei a colaborar no Catálogo Raisonné Amadeo de Souza-Cardoso, na Gulbenkian, coordenado por Helena de Freitas. Foi uma grande experiência. Não era arte contemporânea, mas estava enquadrado na arte moderna. Houve logo um contacto com um artista muito internacional e que se relacionava com vários artistas da época. Também fiz fotobiografia do Amadeo, recolhi muita documentação que pertencia ao arquivo da “Viúva”. Portanto, passei ali por um período de intensa convivência, porque se tratava de um “mono artista”. Eu estava dedicada a apenas um artista e esse trabalho durou bastantes anos. Cerca de 10 anos. Esse foi o meu primeiro contacto com artistas como o Amadeo e foi aí que me comecei a interessar pela arte moderna e contemporânea.
A paixão pela Paula Rego veio a seguir, em 2011, ao começar a trabalhar aqui [na Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais]. Interessava-me muito, do ponto de vista da minha formação em Museologia, trabalhar num museu de artista. Acho que é muito interessante essa dedicação ao estudo, à investigação de um único artista. Um museu de artista é um museu que tem como responsabilidade dar a conhecer, de uma maneira mais complexa, o trabalho de um artista. A Paula Rego é uma artista que tem mesmo esse grau de complexidade. É uma obra extensa, uma obra que começa nos anos 1950 – e ela trabalhou quase até ao final da sua vida – e é também muito desafiante. As suas metodologias mantêm-se desde o início, apesar de, mais tarde, mudar a configuração do trabalho, a própria concepção da pintura. A partir do final dos anos 1980, tudo se muda, mas, na verdade, os pressupostos, os princípios e a mensagem da sua obra é muito coerente desde o início. O trabalho da Paula tem uma vertente política, mas é também o resultado da sua própria interpretação pessoal. Ela cruza as histórias do seu quotidiano com a própria História, com o seu próprio percurso, com as suas emoções e com os seus medos. Por outro lado, desde o início que a Paula recorreu a outro tipo de fontes que nos são mais próximas, como os contos populares, as cantigas de rua ou até notícias do que se passava no nosso país.
Leonor de Oliveira (L.O) – Eu tenho um percurso muito semelhante ao da Catarina. Também estudei História de Arte e também fiz um mestrado em Museologia. Nós cruzámo-nos no projeto do Catálogo Raisonné do Amadeo, mas o meu encontro com a Paula Rego surgiu ao longo da minha investigação de doutoramento e de pós-doutoramento. Aí, eu explorei o contexto dos anos 1950 e do pós-Segunda Guerra em Portugal. Depois dos movimentos surrealistas e neorrealistas, a narrativa sobre o trabalho dos artistas no nosso país afastou-se um pouco do contexto político – ou não se cruzou muito com questões políticas – e o trabalho da Paula Rego acabou por me interessar muito, porque abordava diretamente o contexto político português, as narrativas tradicionais sobre a História de Portugal, a questão do colonialismo. É uma obra que nos ajuda a reinterpretar este período histórico e também a desconstruir um pouco essas narrativas mais clássicas sobre a Ditadura em Portugal.
Para ti, Leonor, de que forma é que a Casa das Histórias Paula Rego homenageia a artista?
L.O – Bem, sobretudo, procurando mostrar períodos, temas que não são tão conhecidos da artista e fazendo uma investigação aprofundada e sistemática sobre a sua obra. Esta exposição [“Paula Rego – Manifesto”], resulta, por exemplo, de uma exposição que nós organizámos em 2014. E, pela primeira vez, conseguimos reunir um conjunto expressivo de obras da Paula Rego. Trata-se do trabalho que ela realizou após terminar a sua formação artística em Londres, ou seja, logo a seguir 1956. Esta exposição explora a resposta da artista às questões políticas do país, mas também a sua resposta ao contexto artístico britânico que, no fundo, foi o que a influenciou. A Paula Rego obteve as suas principais referências artísticas em Inglaterra e ela acabou por cruzá-las com esta abordagem mais política e de resistência ao regime. Portanto, o trabalho da Casa das Histórias tem vindo a chamar a atenção para outras linhas de interpretação e de trabalho sobre a obra da Paula Rego. Por exemplo, exploramos o trabalho dela com outras áreas criativas, como o ballet…
C.A – O ballet, sim… fizemos várias exposições que tentaram sair daquela abordagem mais cronológica. Ou seja, como não temos uma exposição permanente, o objetivo é tratar da multidimensionalidade da obra da Paula. Ela abrange e cruza-se com outras áreas artísticas, como o cinema, a literatura, o teatro. Portanto, o universo da Paula Rego é um universo infinito. Ela cruza-se com outras áreas disciplinares e, por outro lado, influencia outras áreas disciplinares. Por exemplo, já fizemos uma exposição só sobre a sua obra gráfica, já fizemos exposições por décadas, também fizemos uma que se dedicou apenas aos contos tradicionais. Portanto, ainda temos muito para explorar e para descobrir no âmbito da obra da Paula.
Muitas das obras aqui expostas encontravam-se em paradeiro desconhecido. Como é que chegaram até elas e como foi esse processo de investigação?
C.A – Como a Leonor disse, nós já tínhamos começado a nossa investigação em 2013. Quando fizemos a exposição “Ordem e Causa” em 2014, sugerimos à Paula Rego que era bom fazermos um Catálogo Resonné, situando as obras dos anos 1960, porque ninguém sabia delas. Enquanto Paula Rego foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, nós tivemos conhecimento de algumas dessas obras, mas depois percebemos que ainda havia muitas obras por localizar. Na altura, fizemos um levantamento dos catálogos…
L.O – Sim, sobretudo os catálogos da época. Em 1965, a Paula Rego faz uma primeira exposição individual. Mais tarde, ela começa a trabalhar com uma galeria e foi a partir de toda essa informação, dos relatórios da Gulbenkian, dos catálogos, que fomos conseguindo identificar algumas obras. O próprio trabalho da Casa das Histórias, de contacto com colecionadores, também fez parte de todo este processo de investigação.
Deve ter sido uma sensação incrível quando finalmente conseguiram encontrar e reunir todas essas obras da artista.
C.A – Sim e vê-las pela primeira vez! Quando a Paula Rego veio cá ver a exposição dos anos 60, lembro-me de ela estar a olhar para elas e dizer: “Ah, pois é, eu fiz isto! É como encontrar os meus amigos antigos”. Ou seja, ela própria ficou surpreendida ao ver aquelas obras. A Paula não gostava das obras dos anos 1970, mas as dos anos 1960 gostava. Foi a partir deste nosso trabalho – e agora falo um bocadinho sem modéstia, mas é verdade – que a obra da Paula Rego dos anos 1960 começou a ser apresentada em grandes exposições internacionais.
L.O – As próprias técnicas que a Paula utilizou, como a colagem ou o recorte, também fazem com que a obra dos anos 1960 se distinga de outras fases da sua vida profissional. Foi um período muito experimental da artista.
As pinturas da primeira parte da exposição afirmam uma “atitude de resistência contra a ditadura”. De que forma? Quais foram os principais temas criticados pela artista nesta primeira mostra?
L.O – Como disse, a Paula desenvolve um trabalho muito experimental nessa altura. Chega a ser até performativo. Ela tem um processo de desenho automático e baseia-se muito nos desenhos das crianças que, por sua vez, retratam verdadeiramente a realidade. São uma reprodução sem filtros da realidade. Depois, juntou colagens… às vezes, até intervinha diretamente na tela. O marido da Paula Rego, Victor Willing, escreveu muito sobre o trabalho dela e dizia que essa forma de construir, de trabalhar, de rasgar, de arranhar, de cortar e colar, era a sua forma de mimetizar a violência da Ditadura nesse período. Portanto, quando olhamos para as obras, essa atitude de resistência não é literal, não é imediata. Mas nós percebemos pelo caos, pela violência dos temas, pelos títulos. Falo da “Ansiedade de Agosto”, “As Três Faces do Medo”, “O Impostor” – que podemos relacionar com o Salazar – “A Violência Infantil”. Portanto, as próprias obras traduzem uma espécie de caos, de violência, são muito provocadoras.
Por um lado, existe uma certa destabilização do que era entendido como as práticas artísticas contemporâneas da altura, sendo que essas eram divididas entre a figuração e a abstração. Contudo, a Paula Rego, através dessa metodologia, conseguia juntar as duas. Ou seja, é uma obra figurativa, mas que tem aquela liberdade formal da abstração. Por outro lado, a sua arte representa a realidade e a contemporaneidade de uma forma muito humana, digamos, porque ela retrata a experiência de viver sob um regime ditatorial. O medo, a violência, o absurdo dessa circunstância política. É essa resistência e essa liberdade de expressão que ela quis manifestar através das suas obras, e que contrastam com a repressão e a opressão que se vivia na altura.
C.A – Talvez seja importante acrescentar que com esta própria técnica que a Paula desenvolve – de sobreposição de materiais, de utilização dos recortes e das notícias da altura – ela construía as obras de uma maneira muito críptica. Contudo, dava-nos pistas para o que estava em causa e para o que ela queria transmitir exatamente naquela obra. Existem muitas referências, fossem datas ou letras como o “F”, que ela introduz na “Alegoria Britânica”. As pinturas da Paula apresentam várias pistas, várias personagens. Por vezes, têm uma dimensão quase onírica. A mensagem está lá, temos é de a procurar.
E quem não conhece bem o trabalho da Paula Rego, consegue decifrar essa mensagem?
C.A – É difícil, porque são referências muito específicas. Por exemplo, na “Alegoria Britânica”, a Paula também alude à formação do Partido da União Nacional, ou seja, trata-se de uma data muito concreta. Também podemos encontrar datas e outras inscrições do género nos “Cães de Barcelona”. É preciso olhar para as obras com muita atenção.
L.O – Sim, e eu também diria que, na época, a obra da Paula foi muito interpretada por um lado mais psicanalítico. Não se podia falar muito das questões políticas, então, a sua interpretação foi muito pelo lado do medo, de como ela desconstruía e revelava uma outra face da realidade. Ela apresentou muitas das suas obras com títulos que só veio a completar mais tarde, porque tinha medo. A própria introdução do [poeta] Alberto Lacerda, no Catálogo [Raisonné], foi autocensurada, porque falava de denunciadores, de monstros…
Há pouco, falavam do experimentalismo plástico da artista. Diriam que foi dessa forma que Paula Rego conseguiu confundir a censura e, ao mesmo tempo, colocar em causa as convenções políticas e sociais da época?
L.O – Sim, eu creio que sim. Um dos temas que a Paula Rego também trabalha nesse período tem que ver com a própria representação da mulher. Ela critica a forma como a mulher tem sido representada na arte, por exemplo, ou como tem sido mencionada na historiografia da arte. É como se fosse um objeto completo. E a Paula tem várias obras nas quais se autorretrata e fala explicitamente dos seus desejos, da sua intimidade, da sua sexualidade, procurando desconstruir essa tradição artística e mostrar como essa tradição reiterou e promoveu a desvalorização da mulher na sociedade.
C.A – Quando surgem notícias sobre a sua exposição de 1965, pode ler-se “mulher pintora”, “mãe de família”, “mãe de três filhos”, ou seja, ela é imediatamente identificada pelo facto de ser mulher e não pelo facto de ser artista. E a obra da Paula Rego contraria tudo isso desde o início. Também é curioso percebermos que, mesmo em Inglaterra, nesta altura dos anos 60, quando ela tentou mostrar o seu portfólio a vários galeristas, disseram-lhe que não valia a pena exibir as suas obras, porque “dali a uns tempos ela iria deixar de pintar, pois iria ser mãe”, ao qual ela respondeu: “não, não, eu já tenho filhos”. Portanto, é curioso que tenha sido em Portugal que ela tenha conseguido fazer a sua primeira exposição individual. Não foi em Inglaterra. De algum modo, num país que era mais fechado, mais retrógrado, houve essa liberdade, precisamente pela qualidade da sua obra, pelo experimentalismo plástico, por aquilo que tinha de novo. A verdade é que a Paula Rego deu nas vistas logo em 1961, portanto, ela teve esse mérito próprio. Ela conseguiu surpreender no panorama artístico português.
L.O – Também se viu uma atitude de persistência por parte da Paula. Ela quis tornar-se profissional. Decidiu ir estudar para uma escola de artes e depois manter a sua atividade, apesar de ter uma família. Portanto, ela lutou uma pouco contra as convenções e contra a visão da sociedade portuguesa.
A decisão de separarem as obras desta exposição por oito salas foi apenas uma questão logística ou foi propositada?
C.A – Foi propositada. Claro que foi pensada em função do espaço, mas foi, acima de tudo, pensada em função das temáticas que queríamos abordar e das obras que conseguimos trazer. Aliás, existem muitas outras obras que nós queríamos ter trazido, mas que não conseguimos encontrar. Estão em parte incerta.
L.O – Apesar de já termos tido a ideia de reconstituir a primeira exposição individual da Paula há muito tempo, esta mostra também foi organizada no âmbito das comemorações do 25 de abril. Isso ajudou-nos a estabelecer uma ligação direta com o período pré e pós 25 de abril…
C.A – Sim, nós apresentamos obras que foram imediatamente realizadas no contexto pós-revolucionário e que mostram um lado muito caricatural. Portanto, apesar de ter sido um dos dias mais felizes da sua vida, a Paula Rego não deixa de exercer o seu espírito crítico. A sua pintura revela uma certa ironia. Por exemplo, ela cruza o universo dos contos populares com o episódio da revolução. Na obra “Baba Yaga”, que é inspirada num conto eslavo, a bruxa representada tem uns ajudantes que usam uns bonés a dizer “Movimento das Forças Armadas”. Ou seja, ela cruza estes vários universos. Consegue usar uma linguagem mais pop, mas ao mesmo tempo muito específica, com valores e imagens do folclore português e eslavo. É como se a Paula Rego estivesse a exprimir a tensão que existia na altura entre a revolução e a tradição. A sua interpretação dos factos políticos da altura é também uma interpretação que foge do comum.
Consideram a artista uma “contrahistoriadora”. Porquê?
L.O – Porque a Paula tenta sempre dar uma outra perspetiva de determinados momentos ou períodos da História, partindo de um lugar que, na minha opinião, é um lugar que ela considera de marginalidade: que é o da mulher. A História é contada e feita por homens, e ela tenta contrariar isso. Numa das salas que dedicamos à Paula Rego enquanto “contrahistoriadora”, podemos encontrar uma obra muito importante que ela fez e expôs em 1961 – mas com um título diferente – na qual é feita uma crítica ao colonialismo português, à vida glamorosa dos portugueses e à violência sobre as populações africanas. Essa obra intitula-se: “Quando tínhamos uma casa de campo, dávamos festas maravilhosas e depois íamos para o mato matar pretos”.
C.A – Essa frase foi mesmo dita! O marido da Paula ouviu essa expressão num clube em Lisboa e contou-lhe. Essa história marcou-a profundamente e ela representou-a naquela obra. Representou essa violência.
L.O – Uma violência que também não é clara, mas que nós vamos entendendo à medida que analisamos a obra. É uma espécie de tríptico e os próprios tons vão mudando. Há uma primeira parte que é mais luminosa, que tem que ver com a tal vida glamorosa, e depois há uma parte mais escura, com tons que se aproximam mais ao sangue. Portanto, existe uma desconstrução da narrativa relacionada com o colonialismo português. Há ainda outro aspeto importante que tem que ver com a visão distanciada da Paula. Ela morava em Londres, tinha acesso a notícias não censuradas e, quando descobriu o que se passava nas colónias, ficou mesmo muito impressionada.
C.A – A Paula Rego chegou a dizer numa entrevista: “eu gosto de interpretar a realidade da perspetiva dos underdogs”. E isso também é muito importante para conseguirmos interpretar a sua obra. Para ela, os underdogs são as mulheres, são os povos colonizados, são os vencidos.
L.O – Sim, e nessa atitude “contrahistoriadora”, ela também procura incluir na narrativa histórica a experiência das mulheres e a forma como elas observam determinados acontecimentos, nomeadamente o facto de viverem numa sociedade patriarcal.
A Paula Rego foi, definitivamente, uma artista que contribuiu para a consciencialização da opinião pública para que os direitos das mulheres se afirmassem em Portugal.
L.O – Claramente. Sobretudo, na altura do primeiro referendo do aborto, em 1998. Ela ficou tão chocada com o facto de apenas uma franja muito pequena da população ter ido votar – o que não foi suficiente para aprovar uma lei de descriminalização da interrupção voluntária da gravidez – que considerou que tinha de intervir mais diretamente.
E como é que ela o fez?
L.O – Fez obras que não eram, mais uma vez, totalmente explícitas. Primeiro, elaborou alguns desenhos – que nós exibimos aqui, na sala “Paula Rego e os direitos das mulheres”. Depois, fez pinturas, mas percebeu que as pinturas eram muito difíceis de mostrar, exigiam mais dinheiro e que também seriam difíceis de reproduzir. Decidiu então fazer gravuras. Portanto, ela teve essa consciência de perceber qual era o meio mais eficaz, tal como a técnica mais eficaz, para exprimir a sua mensagem. Ela quis dar um rosto a estas mulheres que praticavam o aborto em clandestinidade, sujeitas a todo o tipo de consequências nefastas para a sua saúde. E a Paula chegou à conclusão que seria através das gravuras que ela conseguiria chegar até à sociedade, porque as gravuras eram mais fáceis de reproduzir nos jornais ou de transportar e colocar em exposições, por exemplo. Até nisso ela pensou! A Paula percebeu que era importante mostrar essas mulheres que nos olham de frente, que mantêm a dignidade, concentrando todo o foco da nossa atenção nos seus rostos, no seu sofrimento.
Outro tema abordado pela Paula Rego é a mutilação genital feminina.
C.A – Em 2009, a Paula descobriu que, em Londres, ainda havia comunidades onde essa prática se realizava e que, claro, trazia consequências horríveis, como infeções ou até a morte. Ela percebeu que era uma realidade terrível, ainda que admitindo que se tratava de uma realidade ritualista, com contornos religiosos. Mas a Paula quis perceber como é que as mães daquelas meninas – que tinham passado pelo mesmo – eram capazes sujeitar as suas próprias filhas ao mesmo tipo de abusos. Ela só tratou este tema nas gravuras, não na pintura. E lá está, a Paula Rego percebeu que era preciso “dar a face ao medo”, que era preciso mostrar que violências eram, e ainda são, praticadas em relação às mulheres. Mesmo que essas violências sejam realizadas por elas mesmas. Com o passar do tempo, percebi que existem consequências sociais muito importantes no que diz respeito à mutilação genital, porque essas meninas seriam excluídas da sua comunidade se não fossem mutiladas. É assunto difícil, mas que a Paula não teve medo de abordar.
Falávamos há pouco dos 50 anos do 25 de Abril. Dentro desta exposição, que obras destacam mais o contexto pós-revolucionário?
L.O – O trabalho da Paula Rego após a revolução e a sua intervenção cívica, sobretudo no campo dos direitos das mulheres, mostra-nos que a Democracia é muito importante, mas que também é necessário promovê-la e sermos vigilantes. Com a sua obra, ela mostrou que a Democracia não está completa sem incluir os direitos das mulheres. Posto isto, eu destacaria as séries do aborto e da mutilação genital feminina, mas também, por exemplo, uma obra que ela fez em 1960 e que intitulou de “Salazar a vomitar a pátria”. Com essa obra, ela mostra que há uma outra face do ditador e que tem que ver com o regime que ele impôs, com a guerra que perpetuou e com a repressão sobre as mulheres.
A investigação que temos vindo a fazer sobre o trabalho da Paula Rego, ensinou-nos que é importante revermos a História constantemente, que existem outras perspetivas que têm de ser incorporadas na forma como abordamos a História. Devemos questionar essas ideias mais cristalizadas, questionar as visões tradicionais e olhar à nossa volta para percebermos se elas de facto fazem sentido na sociedade em que vivemos atualmente. Creio que a obra da Paula Rego nos ajuda a fazer essa reflexão mais crítica.
C.A – Vivemos tempos em que parece que existe um certo saudosismo do passado. Os direitos adquiridos pelas mulheres estão, neste momento, a ser colocados em causa.
Nesta exposição, vão encontrar muitos textos de parede, muita informação e documentação da época, cartas escritas pela própria Paula. Acho que esses elementos vão ajudar o público a perceber melhor o seu trabalho, mas também a nossa investigação.
Finda a entrevista, guiaram-nos numa visita às oito salas da exposição “Paula Rego – Manifesto”, que estará patente em Cascais até ao dia 6 de outubro.