A transexualidade aos olhos da Genspect
“Vem para a conferência sobre saúde mental?”, questionou-me o segurança quando cheguei ao Altis Grand Hotel. Hesitei na minha resposta. Não, não ia para uma conferência sobre saúde mental, apesar de ter sido por esse título que o evento se fez anunciar. Respondi que ‘sim’, a medo, pois havia a possibilidade de não me deixarem entrar.
Já dentro do espaço, olhei ao meu redor para observar a imensidão de riqueza que um hotel de cinco estrelas, localizado em Lisboa, emana habitualmente (e não estou só a falar do mobiliário). Desci as primeiras escadas que encontrei em direção a uma das amplas salas panorâmicas de que o hotel dispõe para a realização de eventos.
‘Saúde Mental – Sala Europa’, dizia o letreiro que me indicava que deveria virar à esquerda. Alguns passos e deparei-me com uma mulher que me recebeu à porta com um sorriso no rosto. Atrás dela, estavam várias mesas brancas e outros seguranças com a mesma vestimenta que ela.
“É a sua primeira vez?”, perguntou-me em inglês. Disse que sim, uma vez que estava a assistir apenas ao segundo dia da conferência. “Vou pedir-lhe que entregue a mala ao meu colega para que a possamos revistar”. Mais uma vez, hesitei. Não percebia o porquê de terem de me revistar a mala para um evento daquela natureza. Disse-lhes que era jornalista, mas responderam-me apenas com mais sorrisos. Entreguei a mala – que tinha apenas o meu bloco de notas, umas bolachas e a minha carteira – e ela rapidamente me foi devolvida.
Percebi que aquele era o primeiro passo para conseguir entrar dentro da sala onde estava prestes a começar o debate das 11h15, intitulado: ‘Painel de discussão – os limites da psicoterapia’.
O passo número dois foi mostrar o convite que me tinham enviado por email para marcar presença nesta conferência. Perguntaram-me, mais uma vez, se era o meu primeiro dia e entregaram-me uma pulseira de silicone azul. Nela estava inscrito o verdadeiro nome da conferência - ‘The Bigger Picture Conference. Reframing the Future’ – organizada pela Genspect.
“Ninguém nasce no corpo errado”?
A Genspect foi fundada em 2021 pela psicoterapeuta irlandesa, Stella O’Malley. Como se irá perceber adiante, baseia-se numa ideologia conservadora. Insidiosamente, desrespeita a comunidade transgénero e põe em causa os seus direitos – nomeadamente o de realizar a transição de género de forma medicamente assistida – o que está em clara dissonância com os valores atuais de integração e aceitação deste grupo.
A organização reúne vários especialistas da área da medicina que têm como objetivo, alegadamente, “alertar para os perigos da chamada abordagem afirmativa, assente na administração de hormonas e cirurgias de redesignação de sexo para quem sofre de disforia de género”.
Mas vamos por partes. Numa altura em que todos os dias ouvimos os termos ‘identidade’ ou ‘ideologia’ de género – habitual e erradamente para designar o mesmo - importa esclarecer que estes dois conceitos têm conotações diferentes associadas e que o correto é ‘identidade de género’. Este, de acordo com o glossário da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, refere-se ao “autorreconhecimento pessoal e profundo enquanto homem ou mulher, enquanto ambos, ou enquanto pessoa trans e/ou não binária”.
A identidade de género não coincide necessariamente com o ‘sexo’, que se distingue de ‘género’. Enquanto o primeiro se refere às características biológicas que definem os seres humanos como feminino ou masculino, o segundo diz respeito às construções sociais, papéis, comportamentos e expectativas do que a sociedade considera “adequado” para homens ou mulheres numa determinada cultura.
De uma forma mais clara, como se pode ler nas Orientações Técnicas Internacionais sobre Educação em Sexualidade – um documento produzido pela ONU e pela Organização Mundial da Saúde - o sexo são as “características biológicas e fisiológicas (genéticas, endócrinas e anatómicas) utilizadas para categorizar as pessoas como sendo integrantes da população masculina ou feminina”.
Mas esta é apenas uma parte da identidade de um ser humano. É a parte física e/ou biológica do indivíduo. Já o género, por sua vez, é determinado pela maneira como o mesmo se sente e se perceciona, assim como a forma como este deseja ser reconhecido pelas outras pessoas.
O termo é muitas vezes confundido pela chamada “ideologia de género”, frequentemente utilizada de forma controversa para descrever questões de género que divergem das visões tradicionais ou conservadoras.
De acordo com um artigo dos investigadores Richard Miskolci e Maximiliano Campana, publicado em 2017 na revista Sociedade e Estado, o termo “ideologia de género” surgiu inicialmente em textos doutrinários da Igreja Católica em 1997, escritos pelo então cardeal, e futuro Papa Bento XVI, Joseph Ratzinger.
Miskolci e Campana defenderam que esses textos constituíam “uma peça-chave para se começar a desenhar uma contraofensiva político-discursiva poderosa contra o feminismo” e contra “os direitos sexuais e reprodutivos da mulher”.
De acordo com o mesmo artigo, a discussão adensou-se na América Latina, em 2007, com o relatório da V Conferência Geral do Celam - o Documento de Aparecida. Neste, pode ler-se que “a ideologia de género não considera as diferenças dadas pela natureza e tem provocado modificações legais que ferem gravemente a dignidade do matrimónio, o respeito ao direito à vida e a identidade da família”.
Em suma, a ‘ideologia de género’ tem sido usada como expressão depreciativa por grupos conservadores contrários às discussões relacionadas com o feminismo, a sexualidade e a diversidade. Por detrás deste uso pejorativo está a crença de que a “ideologia” faz parte de um plano para destruir a família cristã tradicional e a heterossexualidade. No entanto, este não é um termo reconhecido pelos académicos que utilizam antes ‘identidade de género’.
As pessoas cuja identidade de género não corresponde ao sexo que lhes foi atribuído e registado no assento de nascimento denominam-se transexuais. Por exemplo, um homem transexual tem uma identidade de género masculina, porém o sexo atribuído à nascença foi o feminino. Como se pode ler no panfleto da Associação ILGA - ‘Sou uma pessoa. Pelo direito à identidade de género’ - “existe uma enorme diversidade de pessoas transexuais: de todas as idades, géneros, profissões, estados civis, etc. O que ainda falta são representações sociais e mediáticas que reflitam essa diversidade e esse é, aliás, um grande obstáculo à integração familiar, escolar, profissional e social das pessoas transexuais”.
Esta convicção profunda e persistente de que a identidade de género (a autoidentificação como mulher ou homem) não está de acordo com a aparência física e/ou anatomia (fenótipo físico), completa ou parcialmente, é conhecida por disforia de género ou perturbação da identidade de género. A transexualidade é uma forma de disforia de género, em que as pessoas se identificam persistentemente como membros do sexo oposto ao que lhes foi atribuído ao nascimento e necessitam de adaptar a sua aparência física à sua identidade de género através de terapias hormonais e/ou procedimentos cirúrgicos que não se limitam à cirurgia genital.
De acordo com a associação suprarreferida, “algumas pessoas sentem esta incompatibilidade entre identidade e corpo desde a infância (transexualidade primária ou clássica), enquanto que outras sentem-na mais tarde (transexualidade secundária). Quando a identificação com o sexo oposto ao que foi atribuído ao nascimento é contínua, é improvável que ela desapareça, mas podem passar anos até que a pessoa aceda, por vários motivos, ao processo transicional - conhecido como transição - partindo do sexo atribuído ao nascimento para o que está de acordo com a sua identidade de género”.
Salienta-se ainda que, atualmente, existem dois termos que podem ser distinguidos neste amplo espectro da identidade de género: ‘transexual’ e ‘transgénero’. O primeiro engloba as pessoas que não se identificam com o género atribuído à nascença e que se identificam inteiramente com o género “oposto”, e assim desejam viver. Frequentemente, sentem desconforto em relação a aspetos da sua anatomia e procuram apoio hormonal e/ou cirúrgico para a sua transição de género. O segundo é um termo inclusivo que engloba todas as identidades e/ou expressões de género que não coincidem com o sexo atribuído à nascença. Inclui pessoas que se identificam como transexuais, transgénero, de género fluido, não binárias, entre outras. Por norma, estas não desejam submeter-se à cirurgia genital, também conhecida como cirurgia de reatribuição de sexo.
E são precisamente estas questões médicas que a Genspect desaprova. Eis o que se pode ler no website da organização:
“Procuramos uma abordagem saudável no que diz respeito ao sexo e ao género […]. Analisamos cautelosamente os males que os tratamentos médicos podem causar […]. Reconhecemos que crianças e jovens que questionam o seu género, tendem a desenvolver doenças como transtorno de défice de atenção e hiperatividade ou especto do autismo. Também estamos preocupados com os números desproporcionais de crianças e jovens que se sentem atraídos por pessoas do mesmo sexo ou que irão identificar-se como ‘pré-gays’ entre outras crianças e jovens que escolhem medicar a sua identidade ao invés de permitirem que a sua sexualidade se desenvolva. Neste contexto, defendemos uma abordagem não medicada da disforia de género, sustentada por uma base de evidências de qualidade”.
E ainda:
“Queremos ajudar a criar uma sociedade que apoia a não-conformidade com o género – uma que não exija o pesado fardo que é o tratamento médico. Reconhecemos que os jovens gays, lésbicas e bissexuais não estão, frequentemente, em conformidade com o seu género. Ao invés de suprimir os impulsos hormonais com medicamentos, apoiamos uma abordagem que permita que os adolescentes explorem a sua sexualidade com liberdade e aceitação”.
A ‘eterna guerra’ entre a WPATH e a Genspect
No dia 17 de outubro, Stella O’Malley escreveu um artigo sobre as conferências que a Genspect organiza, destacando dois dos seus principais propósitos: “iluminar as questões significativas criadas pela abordagem da World Professional Association of Transgender Health (WPATH) para tratar a disforia de género e promover uma compreensão mais ampla e precisa das complexidades que cercam essa questão”.
Pode dizer-se que a Genspect é a grande opositora da WPATH. Anteriormente conhecida como Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association (HBIGDA), é uma organização interdisciplinar, sem fins lucrativos, que se dedica à saúde transgénero, estando a favor do apoio hormonal e/ou cirúrgico para a transição.
A equipa reúne membros profissionais, de apoio e estudantes que se envolvem em “pesquisas académicas para desenvolver uma medicina baseada em evidências e se esforçam para promover uma alta qualidade de atendimento para indivíduos transexuais, transgénero ou que não estão em conformidade com o seu género internacionalmente”.
A sua missão é promover cuidados baseados em evidências, educação, pesquisa, políticas públicas e respeito pela saúde transgénero. Além disso, a WPATH procura atingir melhores tratamentos para a disforia de género através de profissionais da área da medicina, psicologia, direito, psicoterapia, estudos familiares, sexologia, entre outros campos relacionados.
Posto isto, oferece a oportunidade para que os profissionais destas diversas especialidades comuniquem entre si no contexto da pesquisa e procurem tratamentos para as pessoas com disforia de género, incluindo através da organização de conferências científicas bienais.
E são precisamente estes simpósios que motivam a Genspect a propagar a sua própria missão. Sempre que a WPATH se reúne num determinado país ou cidade, a Genspect organiza um evento, nessa mesma região, com o objetivo de contra-argumentar o que foi dito anteriormente pela WPATH.
No artigo anteriormente mencionado, a psicoterapeuta assume que, na visão da Genspect, “a disforia de género, ainda que pouco investigada, não é mais incomum do que qualquer outra manifestação de sofrimento à qual nós, humanos, recorremos quando tentamos dar sentido ao mundo. A WPATH complicou o significado do ‘género’ e o seu trabalho de péssima qualidade foi completamente desacreditado […]. Claro que existe uma escassez de conhecimento neste campo, no entanto, ficou claro para nós que a posição da WPATH não é útil, pois conspira com o indivíduo que sofre de disforia de género, fazendo-o acreditar que ele, de facto, se pode tornar outra pessoa, com um novo corpo e uma nova identidade. A WPATH promove o enfraquecimento de corpos saudáveis através de intervenções desnecessárias, radicais e imprudentes”.
Já ficou claro que a Genspect é antagónica à posição da WPATH, defendendo antes que a disforia de género se trata de uma condição psicológica que deve ser curada através de terapia, ao invés de se procederem a tratamentos médico-cirúrgicos.
“Não acreditamos que a modificação corporal extrema seja um caminho de tratamento apropriado para uma condição psicológica. Ao invés disso, promovemos uma abordagem não medicada para a disforia de género que defende um modelo de tratamento menos invasivo primeiro”, pode ler-se no artigo de Stella. “Se a WPATH estivesse disposta a ouvir os muitos especialistas que destacaram problemas na sua abordagem, a Genspect não precisaria de os seguir ao redor do mundo, defendendo continuamente opções de tratamento mais realistas para a disforia de género”, assumiu a terapeuta.
Face a estas acusações por parte da Genspect, contactei a WPATH para obter uma reação sua. Esta foi a resposta que obtive: “Por norma, não comentamos sobre outras organizações, dada a necessidade de nos concentrarmos na nossa missão - promovermos cuidados de género saudáveis - e nos padrões de cuidados que constituem a base das nossas recomendações científicas, que são baseadas em evidências”.
A conferência que pretendeu “reformular o futuro”
Tinha enviado um email para a organização da Genspect no dia 20 de setembro a pedir uma credencial jornalística de forma a atender à ‘The Bigger Picture Conference. Reframing the Future’, a decorrer nos dias 27, 28 e 29 do mesmo mês, em Lisboa.
Rapidamente responderam que “teriam todo o gosto em receber-me”. Contudo, a acrescentar no email, liam-se as seguintes informações: “O evento terá lugar no bairro de São Mamede, em Lisboa, a poucos passos do Jardim Botânico de Lisboa. Para minimizar a chance de perturbações disruptivas, o local não será indexado no nosso site e só será partilhado com os portadores de ingressos 48 horas antes do evento. Compreendemos que isto possa dificultar o planeamento para os participantes, mas esta abordagem conseguiu evitar a desordem nos nossos eventos presenciais anteriores”.
Como previsto, dois dias antes do começo do evento, voltaram a enviar-me um email com a respetiva morada – o Altis Grand Hotel – e um pedido: “Para evitar possíveis perturbações no evento, pedimos que não partilhe esta informação. Além disso, tenha em conta que, por motivos de discrição e segurança, o nome do evento na sinalização do local será ‘Seminário de Saúde Mental’ em vez de Genspect”.
Cheguei ao segundo dia da conferência por volta das 11h00. Tinha perdido os quatro primeiros debates. Depois de passar pelos vários seguranças da organização, entrei para dentro da grande sala ampla. Centenas de pessoas percorriam o espaço, comiam e bebericavam enquanto conversavam. Ao que me pareceu, eu era a única portuguesa. Surpreendi-me com a quantidade de pessoas que me rodeavam, até porque os bilhetes para esta conferência custavam à volta de 500 euros, podendo chegar a 2000, os de grupo. Mais tarde, vim a saber que a grande maioria se encontrava ali por seguir o trabalho da Genspect ou dos oradores convidados.
Antes de me sentar para ouvir o debate que iria começar às 11h15, dei uma volta pelo espaço. Logo na mesa à entrada, estavam vários autocolantes brancos que podíamos usar, caso quiséssemos mostrar o nosso nome. Ao autocolante, podíamos adicionar um círculo que identificasse o grupo ao qual pertencíamos: amarelo para os pais ou familiares; verde para os media; laranja para investigadores ou especialistas da área científica; e azul para as pessoas que estavam em processo de destransição. Pelas outras mesas da sala, estavam espalhados livros, panfletos, brochuras e até meros papéis.
Porém, foi o conteúdo dos mesmos que me chamou a atenção. Havia autocolantes a serem distribuídos gratuitamente com a inscrição: “No one is born in the wrong body” [Ninguém nasce no corpo errado, em tradução livre]. Havia livros, com o custo de 30 euros para cima, que indicavam ser a ajuda que os pais precisavam para “salvarem” os seus filhos da disforia de género. Havia panfletos de propaganda a igrejas que “providenciam um lugar seguro e passível de reflexão sobre o que significa ser gay, lésbica, bissexual e cristão, através de reuniões, rezas, retiros e conferências”.
Para o primeiro painel de discussão subiram ao palco Stella O’Malley e os psiquiatras Susan e Marcus Evans. Ao ouvir as explicações destes três membros, rapidamente percebi que a conferência era dedicada aos “pais que procuraram ajuda para os seus filhos”.
“Há muito tempo que me orgulho de ser um profissional de saúde mental. É o meu amor e o meu trabalho. Mas, na verdade, esta tem sido uma jornada terrível. Os pais foram realmente traídos pelos serviços de saúde mental”, afirmou Marcus Evans. “A prática da saúde mental deve-se aos nossos limites. E estando nesta área há tanto tempo, percebi que, de vez em quando, os limites do nosso ofício nos empurram para uma ideia maníaca de que temos a solução para tudo. A psiquiatria tem um historial de soluções desesperadas, sem provas e, muitas vezes, com uma ideia sobrevalorizada do que a psiquiatria pode fazer. Estamos limitados, o que faz com que esta seja uma situação dolorosa para os pais, que se veem confrontados com uma espécie de sentimento de traição”.
Seguiram-se palmas e questões por parte do público. O microfone andou de mão em mão até chegar à de uma mãe, claramente emocionada.
“Antes de mais, tenho de agradecer à Stella. Mudou a minha vida e ajudou-me a salvar a minha filha”, começou por dizer, referindo-se à disforia de género da mesma. “Estou muito grata por me ter aconselhado o trabalho da Susan e do Marcus, porque vocês são fabulosos. Sinto que fomos abençoados por um excelente terapeuta e, acreditem ou não, quero partilhar isto com toda a gente, uma das melhores coisas que o nosso terapeuta fez foi dizer à minha filha para ter relações sexuais”.
Com o avançar dos debates, comecei a perceber que a abordagem era sempre a mesma: recorrer a uma linguagem médica e científica para, no fundo, classificar a transexualidade como uma doença mental, apelidando-a de disforia de género.
Oradores como o psicólogo clínico Jaco Van Zyl passaram a mensagem de que o ambiente no qual a criança cresce pode fazer com que a mesma “desenvolva certas frustrações, tornando-a mais vulnerável à transformação e a experienciar disforia de género”.
Posso afirmar que cada pessoa ao meu redor sentia quase que uma ligação para com os oradores. Alguns dos psiquiatras contaram histórias de “meninas de 15 anos que iniciaram o tratamento hormonal para a mudança de género”. Sempre que se ouvia um testemunho destes, o olhar das mães, dos pais, dos convidados ali presentes fechava-se em jeito de desaprovação acéfala.
Depois do almoço, reunimo-nos novamente na sala para a segunda parte da conferência. A oradora era Sarah Phillimore, uma advogada especialista em direitos das crianças. Mas antes desta subir ao palco, Stella O’Malley aproveitou a apresentação para fazer uma pergunta ao público: “Quantos dos aqui presentes vão votar em Donald Trump?”. A esmagadora maioria levantou o braço, marcando a sua posição. “E quantos vão votar na Kamala?”, perguntou ironicamente. Duas ou três pessoas manifestaram-se. Mais uma vez, ficou clara a posição política dos presentes.
Estive na conferência durante sete horas. No final, fui ter com a Stella O’Malley na esperança de que me desse um pequeno depoimento. A psicoterapeuta e diretora da Genspect aceitou sem qualquer problema.
Comecei por lhe perguntar qual a importância deste evento acontecer na capital do nosso país, ao qual ela me respondeu: “Achámos que era muito importante promover uma abordagem não medicada da disforia de género. A WPATH esteve aqui, em Lisboa, e promoveram a sua missão numa outra conferência. Nós consideramos que uma abordagem não medicada causa menos danos. Damos prioridade à saúde física e mental”.
E acrescentou ainda: “Acreditamos que existem muitas formas de as pessoas sofrerem de disforia de género e que há muitas formas de a aliviar, de a atenuar. É por isso que estamos aqui e temos oradores de todo o mundo. E penso que é muito importante que um grupo internacional com este tipo de experiência se junte para chamar a atenção para os danos que uma determinada forma de pensar está a promover. As pessoas têm de ouvir. E quero dizer, especificamente, que Portugal pode aprender com os erros do passado. Existem outros países que já estiveram neste caminho, mas que se retiraram dele e agora já não promovem essa abordagem de cuidados de género”.
Questionei a psicoterapeuta sobre o porquê da Genspect retratar a disforia de género como uma doença mental. Stella comparou-a a outras perturbações, como a anorexia. “Eu sou psicoterapeuta. Tal como acontece com o transtorno obsessivo-compulsivo, com a anorexia, a ansiedade ou a depressão, existem muitas formas de fazermos as pessoas se sentirem melhor. O género funciona da mesma maneira. Não é diferente de qualquer outra manifestação de angústia. Sim, claro que se pode medicar, mas há outras formas, como a psicoterapia. Ou talvez melhores competências sociais, relações de qualidade mais profundas, amizades de qualidade mais profundas”.
Por fim, mencionei as questões abordadas por Jaco Van Zyl, que falou das crianças que crescem em ambientes familiares tóxicos e que, segundo ele, podem experienciar disforia de género por essa razão. A minha dúvida era, no caso de dois irmãos que vivam no mesmo ambiente, por que motivo um pode querer mudar de género e outro não. Porém, senti que a psicoterapeuta se desviou um pouco do assunto. Eis a sua resposta:
“O contágio social é um fenómeno muito bem estabelecido. Assim, por exemplo, a anorexia é muito afetada pelo ambiente, tal como o suicídio. Se houver anorexia numa escola, há muita mais probabilidade de outros alunos desenvolverem anorexia. O mesmo se aplica à automutilação. O comportamento auto lesivo provoca mais comportamentos auto lesivos, especialmente entre as raparigas adolescentes. Este é o grupo de maior contágio e isso deve-se a várias razões psicológicas”.
De forma a contra-argumentar esta tese, contactei, via email, o poeta e ativista transgénero André Tecedeiro.
Sendo um homem trans, comecei por lhe perguntar como se sentia ao ver que existem psicólogos, psiquiatras e outros profissionais que caracterizam a transexualidade como uma doença mental. “Acho que é lamentável que existam pessoas que dediquem o seu tempo e recursos financeiros a alimentar o ódio contra as pessoas trans […]. Eu não dou credibilidade a psicólogos, psiquiatras e outros profissionais que caracterizem a transexualidade como uma doença mental, pois ela deixou de ser considerada um transtorno mental em 2018 pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Um profissional de saúde que está desatualizado seis anos não pode ser um grande especialista sobre esse assunto. A homossexualidade e a masturbação também foram em tempos consideradas doenças mentais e isso hoje parece-nos bizarro”.
Para Tecedeiro, é urgente desmistificar a ideia de que a transgeneridade é uma escolha. “Ninguém escolhe ser transgénero”, rematou o ativista, explicando ainda que “as estatísticas dizem que a maior parte das pessoas transgénero sabem o seu género com a mesma idade que as pessoas cisgénero - por volta dos três anos. Mas, ao contrário do que acontece com as outras crianças, os adultos não acreditam no que elas dizem, porque não vai ao encontro das suas expectativas”.
André revelou que nunca se sentiu uma rapariga, mas que acabou por ser socializado como tal. “Aos 37 anos fiz a minha afirmação de género e pude realmente começar a viver. Muitas pessoas não reagiram bem. Aliás, no início só três ou quatro reagiram com naturalidade”. Perguntei-lhe se, tal como afirmaram Stella O’Malley e Jaco Van Zyl, existem fatores externos e/ou ambientais que podem levar a que alguém experiencie disforia de género. A resposta do ativista foi clara: “Não há um único estudo que confirme essa hipótese”.
Em suma, e de acordo com Catarina Lucas, psicóloga e diretora do Centro Catarina Lucas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e outras organizações de saúde reconhecem a disforia de género como uma questão de saúde que requer atenção e cuidados específicos, mas não a consideram uma doença mental.
É importante entender que a disforia de género não é causada por um distúrbio mental, mas sim pela incongruência entre o sexo de nascença e a identidade de género de uma pessoa. É considerada uma condição médica ou psicológica, porque pode causar angústia significativa e impactar a saúde mental e o bem-estar emocional das pessoas que a experimentam.
Tal como conclui André Tecedeiro: “Uma pessoa transgénero pode optar por fazer muitas cirurgias ou nenhuma. Depende da pessoa, do grau de sofrimento que tem com o seu corpo, das possibilidades financeiras e do acesso a cuidados de saúde. Infelizmente, poucas pessoas trans têm recursos que lhes cheguem para sobreviver, já que enfrentam mais dificuldades no acesso à educação, trabalho e bem-estar”.
Aqui chegadas, impõe-se constatar que a Genspect é uma organização com posições sobre a transexualidade manifestamente conservadoras e, face a tudo o que se sabe atualmente sobre o assunto, claramente desfasadas da realidade. A OMS determinou que a transexualidade não é uma doença mental. As pessoas transgénero não são doentes mentais. Defender que o são é uma posição chocante e grave, mas que infelizmente se propaga, acima de tudo entre os conservadores de direita, e um pouco por todo o mundo.