Resem Verkron, arte de revelar emoções silenciadas

Lua 

A Lua, composta por três sílabas que ecoam como um planeta celeste em órbita ao redor da Terra, guarda uma conexão poética com Luanda. Foi nesta cidade que tive o privilégio de conhecer Resem Verkron, ainda um jovem de 18 anos, envolto na sua timidez. Verkron, do colectivo onde cresceu como artista e ser humano, Resem vem dos “Verkron, uma forma de vida”, refere na conversa que tivemos no Hangar (Verkron significa verdade colorida e provém da junção das palavras do latim e do grego Veritate in Croma). 

A conversa com o Resem teve início em 2019, quando andámos pela cidade com Noa Yekutieli, artista americana e israelita que chegou a Luanda com um olhar colonialista e exótico, preferindo ser fotografada pelas zungueiras, ao contrário do habitual, para intervir artisticamente com as suas técnicas de recorte, montagem, formas de trabalhar temas como migração, assimilação e conflito. 

As ruas de Luanda, as suas personagens, as imagens e sons são o objeto de trabalho de Resem Verkron. Os meios que usa para transmitir a sua mensagem passam pelo vídeo, pelo som e pela fotografia. Sempre em lugares de experimentação, não abandona a liberdade e a energia alimentada pelo coletivo Verkron, para o qual entrou com 16 anos (em 2015) e que vai inscrevendo acentuadamente através de murais icónicos pela cidade capital de Angola. 

Resem Verkron @GoldmaaResem Verkron @Goldmaa

Desde essa altura foi experimentando e colaborando “sem problemas de pegar em cabos, sem problemas de andar com os mais velhos, sempre à procura das emoções das personagens”, partilha Resem. Inicialmente com influência do afrofuturismo, definido como a junção de temporalidades africanas no mundo, através da arte, política, literatura, cinema, música, prefere, hoje falar de futurismo emocional. E a escuta deste artista parte da energia das emoções dos personagens que habitam a cidade de Luanda onde nasceu. O Marçal, um dos bairros ícones das musicalidades da história de Angola, em paralelo com a Ilha de Luanda, as bandas de música, as guitarras e a batida do kuduro trilharam as sensibilidades sonoras e visuais do artista. Entre semba e kuduro, Resem foi processando e identificando onde se queria movimentar como artista. O “futuro emocional” é assim cunhado como uma forma de explorar o “não dito”, o “não declarado”. É nesse silêncio, nesse ambiente de emoções não verbalizadas que Resem Verkron quer trabalhar e explorar. 

Trilha sonora de Emotional futurism 1

Anda!


Lola & Mami - Um Fragmento de amor é a sua primeira curta-metragem. Nela explora as masculinidades tóxicas que habitam a cidade de Luanda, esses homens que tudo dizem poder e fazer, simultaneamente com uma auto-estima de rastos. Com guião e produção promovidos nas residências do Atelier Mutamba, promovido pela Kino Yetu (em português “nosso cinema”), teve a participação de vários realizadores como Gegé M’bakudi e Irene A’Mosi. Fazem parte das relações artísticas de Resem, espaços de discussão de ideias e de trabalhos em conjunto. Todos se ajudam, todos colaboram, seja “a puxar cabos”, seja como “atores de performances, filmes, na direção de fotografia e nas trilhas sonoras”. Uma geração de artistas que orbita em torno de projetos de residência e experimentação em Luanda como o Fuck’ing Globo, uma mostra impulsionada por Kilianji Kia Henda, artista conceptual que também orbitava pelas influências dos artistas do Elinga Teatro. 

Lola & Mami amam-se entre quatro paredes, cuidam das frustrações da vida da rua, da vida social tóxica que permeia a cidade de Luanda. Lola, um polícia que reprime as prostitutas da rua, mas que ama uma Mami, uma prostituta da baixa de Luanda. Mami é ainda o porto seguro de Lu, lésbica assumida, que é expulsa da casa dos pais. Rejeições e discriminações aos que não cabem nos espartilhos do conservadorismo. 

Com uma fotografia e banda sonora que insuflam muito as emoções, Resem trabalha as emoções, sobretudo as dos homens “imponentes” que escondem os seus sentimentos. “Retrato de um homem angolano, imponência perante a sociedade, mas entre quatro paredes também vemos esse homem angolano fragilizado e que precisa de afeto”, refere o realizador e compositor na nossa conversa. A intimidade acaba por ser o revelador destes homens, das personagens que tem trabalhado através da fotografia, do vídeo e da música. Resem interessa-se pelas “conversas” e os “silenciamentos” entre quatro paredes, num filme onde não há falas. Procura, através da fotografia, espelhar as nuances emocionais das pessoas de todas as cidades do mundo. 

Para tal, caminha pela Baixa de Luanda, senta, escuta e conversa. Por vezes, grava sons e filma momentos. Depois reúne-se com os seus companheiros artísticos, discutem ideias, traçam ideias que serão digeridas através de guiões e notas de música, de imagens estáticas ou em movimento. Nada do que faz está totalmente fechado, mas nada está totalmente em aberto. Vai fazendo caminho, vai colaborando. 

Raio X 

Resem está sempre a fazer o “diagnóstico” da cidade. Conhece bem Luanda, os mercados, os bairros, as pessoas que giram a cidade, vendedores, kitandeiras, taxistas, cambistas, prostitutas. Trabalhar nessa circulação e dar-lhe corpo fez parte da proposta da residência artística que frequentou no Hangar, em outubro de 2023. Acabou por ter a companhia de Michel de Figueiredo, compositor e guitarrista angolano com formação em Londres. Lisboa, Luanda, Londres, uma aliteração em L que juntou estes dois artistas multifacetados. 

Michel Figueiredo e Resem Verkron Michel Figueiredo e Resem Verkron

Com direção artística de Kiluanji Kia Henda, o resultado da residência resultou numa instalação de performance com Resem e Michele em palco. Ao fundo, um cenário com paredes de vários níveis, que serviram de projeção de imagens de Luanda. Os candongueiros (táxis privados) de cor azul, as entradas dos prédios, o mercado de São Paulo. Os sons variaram entre discursos do passado, do primeiro presidente de Angola, Agostinho Neto, e as vozes das vendedoras de hoje, expulsas do seu local de trabalho por não estarem nas normas da venda “formal”. Em Luanda, “estás na rua e vês histórias acontecimentos e essas histórias invadem-te, quer queiras ou não”, refere Resem. É pela emoções que cria momentos de reflexão e de desconstrução dessas histórias. Nessa desconstrução criativa faz uma espécie de radiografia das emoções, um negativo “que surge de forma lenta e desconstruída”. A parafernália de imagens, de estéticas de sons, ganha assim uma nova vida gerando novas emoções e novos futuros. 

É um processo lento e minucioso que revela um negativo pulsante e em constante transformação. As imagens surgem, as estéticas sonoras entrelaçam-se, ganhando uma nova vida, gerando não apenas novas emoções, mas também abrindo portas para novos futuros. 

Resem Verkron pretende continuar a trilhar esse caminho, apostando na confluência de diferentes meios, como o vídeo, a fotografia e o som, para abrir diálogos capazes de alcançar um “futurismo emocional” que desafie e inspire solidariedades e criatividades numa sociedade maioritariamente jovem e cheia de futuro(s). 

 

por André Soares
Afroscreen | 8 Novembro 2023 | Ateler Mutanba, Fuck'ing Globo, luanda, Michel Figueiredo, perfomance, Resem Verkron