O homem que fazia acontecer

Os jovens que aos fins-de-semana invadem as ruas do Bairro Alto estão, na sua maioria, longe de saber que em tempos por ali andou um homem chamado Zé da Guiné. O homem que fez do Bairro Alto um local de culto nocturno. O rei da noite de Lisboa, em pessoa.

Costumava passear no Chiado e Bairro Alto na companhia dos seus dois dobermanns. Altíssimo, musculado, pele cor de ébano. Estava sempre a sorrir e acenava a todos com quem se cruzava. Ninguém ficava indiferente ao seu visual. Ora usava um kilt com uma boina de golfe, ora usava um fato dos anos 50 tirado de um baú qualquer, ora recuperava as origens e vestia túnicas africanas. Tanto passava por um gangster como por um aristocrata. Vestia peças que comprava na Feira da Ladra ou em lojas de roupa em segunda mão. Nunca lhe faltava cor. Não se inspirava em ninguém. Estava tudo na sua cabeça. Tudo se resumia entre o que estava «muito à moda» e o «isto não é moda».

É a história deste homem que se conta em Zé da Guiné – Crónica de um Africano em Lisboa de José Manuel Lopes, realizador, produtor e chefe montador de cinema que o conheceu nos anos 80 e de quem se tornou amigo. Mas conta-se também a história de uma Lisboa que se liberta dos grilhões da ditadura e desperta para uma histeria cultural. «O Zé está associado a um movimento que modificou hábitos e comportamentos em Lisboa e na forma como nos víamos. Sempre achei fascinante como é que alguém vindo de uma aldeia nos trópicos traz tanto cosmopolitismo a Lisboa», explica o autor do documentário, que começou a trabalhar nele em 2000 e que será exibido na RTP.

Tudo se passava no Bairro Alto, casa de fadistas, marinheiros e prostitutas. Com os anos 80, ficaram os fadistas, foram-se os marinheiros e as prostitutas, chegaram os jornalistas, publicitários, músicos, artistas plásticos e actores. Era um país que despertava definitivamente do cinzentismo da ditadura. O pop e o rock saíam de garagens obscuras e tomavam o seu lugar na ribalta. Zé da Guiné não cantava, não escrevia livros, não representava. Mas era o homem que dinamizava todas estas áreas. Foi o catalisador da expressão artística. «Era ele que juntava as pessoas», reforça José Manuel Lopes. «Sempre teve uma grande sensibilidade para as artes. Foi graças a ele que James Brown chegou a Portugal».

José Osaldo Barbosa nasceu em 1959 numa aldeia na Guiné-Bissau. Ainda muito jovem passou pela guerrilha na luta pela libertação da então colónia portuguesa, mas acabou por fugir da Guiné à boleia dos militares que regressavam a Portugal. Chegou a Lisboa sem dinheiro e apenas com umas calças de ganga na mala.

Ganhou a alcunha de Zé da Guiné à porta do Teatro D. Maria II – onde parava habitualmente, entre fascistas, retornados e africanos. Sociável e simpático, depressa conheceu elementos do MRPP e mudou-se para a casa de um deles. Treinou karaté – atingindo o cinturão negro – e atletismo. Chegou a conhecer Carlos Lopes e » Fernando Mamede e, por convite destes, ficou três anos no Sporting. Era um atleta. Todos os dias treinava no Estádio Universitário e era normal vê-lo «às duas da manhã a fazer alongamentos ali no meio do Largo Camões», recordam os amigos. Apesar de se mover na noite, «era muito conservador. Não fumava, não bebia, não se drogava», recorda o realizador.

No final dos anos 70, início da década de 80, dedicou-se à compra e venda de antiguidades e o seu corpo musculado valeu-lhe os primeiros trabalhos de segurança. Esteve na porta do Browns, na Avenida de Roma, e foi aí que começou a conhecer a elite intelectual lisboeta. Foi convidado para criar o RockHouse, na rua do Diário_de Notícias, no Bairro Alto, seleccionando a clientela e atraindo os amigos famosos que conhecera. Começou então a revolução do bairro. O ponto de encontro era o RockHouse, onde se dançava Sex Pistols, The Cure ou David Bowie. Mais tarde inaugurou o Jukebox, no mesmo local do antigo RockHouse.

Mas escasseavam as horas, as noites eram curtas. Em 1985, juntou-se a Hernâni Miguel e Mário Duarte para organizar festas que duravam até à manhã do dia seguinte. Assim nasceram as Noites Longas, no antigo palacete do Casa Pia Atlético Clube, onde mais tarde foi a discoteca africana B.Leza, entretanto também encerrada.

Todas as sextas-feiras uma multidão se deslocava até aquele palácio, sem saber bem o que iria encontrar. Ali se juntava o meio boémio, cultural e artístico da cidade, a elite intelectual. Mas se houvesse fome, também se podiam assar frangos no pátio. Podia assistir-se a um concerto punk ou a um espectáculo de travestis. Os Ena Pá 2000 começaram numa dessas festas. Os Rádio Macau, os Delfins, os Xutos & Pontapés, todos passaram por ali. Na plateia era possível ver o cronista Miguel Esteves Cardoso, o escritor Eduardo Prado Coelho, o artista plástico Pedro Cabrita Reis, os músicos Rodrigo Leão e Ayres Magalhães. Zé da Guiné era sempre o último a sair. Fechava as contas e depois ia passear de eléctrico pela cidade.

Esteve na origem das Manobras de Maio, na rua do Século, aquele que foi o primeiro grande movimento da moda portuguesa. Foi modelo, participou em videoclips como ‘Zuvi Zeva Novi’, dos Mler Ife Dada e teve uma breve passagem pelo cinema nos filmes “Repórter X” e “Um Adeus Português”, de João Botelho. Lá fora também repararam nele. Na edição de 5 de Janeiro de 1986, o jornal francês Libération descrevia «Za da Guinea» como «a estrela da capital».

Depois de quatro anos de Noites Longas, regressou ao Bairro Alto para inaugurar o seu primeiro bar, em 1994. O Be Bop foi um sucesso imediato e, após um ano, Zé decidiu finalmente partir para conhecer mundo. Esteve fora um ano, mas o regresso foi agridoce: o bar esteve fechado e as dívidas acumulavam-se. É nesta altura que descobre sofrer de esclerose lateral amiotrófica, a mesma doença neurológica que vitimou Zeca Afonso.

Mas Zé é um lutador. Aos primeiros sintomas prendeu réguas nas pernas para não perder o equilíbrio. Já lá vão dez anos. Preso a uma cadeira, continua a alimentar projectos e sonhos no T2 de um bairro social de Chelas que divide com uma das quatro filhas. Quando os amigos o visitam e lhe perguntam se está bom, ele responde invariavelmente que sim, mas que ainda vai ficar melhor. «Há quase uma década que o Zé da Guiné diz à morte que ainda não é o seu tempo, enganando-a com o seu riso largo e contagiante. De tal maneira que os seus amigos quase acreditam que aquela não é uma doença avassaladora, assassina suficiente para o Zé da Guiné. E então riem-se com ele e o Zé esquece-se das dores e do inevitável», remata José Manuel Lopes, sobre o homem que mantém vivo o sorriso grande.

 

publicado originalmente no jornal Sol 

Trailer do Documentário:

 

moradas

site Zé da Guiné 
página do filme no facebook
página para ajudar Zé da Guiné

por Raquel Carrilho
Afroscreen | 6 Fevereiro 2012 | bairro alto, Lisboa, Zé da Guiné