Filme 'Gabriel', afectos, direitos, oportunidades e sonhos

A intensidade da violência social gera impacto constrangedor sobre o espaço e a condição das pessoas a ponto de a sobrevivência passar a ser a única luta de afirmação. Eis Gabriel, um filme de Nuno Bernardo, com Igor Regalla (Guiné-Bissau), José Condessa e Ana Marta Ferreira (Portugal), com participação especial de Ângelo Torres (São Tomé e Príncipe), que acaba de estrear nos cinemas.

Em contexto de imobilidade social, o choque do sonho europeu esbarra num lugar de não conhecimento marcado pela exclusão de territórios estigmatizados. Assim, a entrada em cena, Gabriel, um jovem cabo-verdiano à procura do pai em Lisboa, encontra um novo mundo, focado não no entusiasmo fílmico, mas na força e protagonismo da representação das personagens que encarnam um mundo difícil de sobrevivência, onde as identidades de força projetam nas telas o debate sobre a condição humana perante privações de afectos, de direitos, de oportunidades e, também, de sonhos.

A construção estética de um bairro marginalizado da capital da antiga metrópole é o cenário para realização de combate clandestino de boxe, de exploração do corpo preso de ressentimentos. Não se trata de um filme sobre o jogo pelo prazer ou pelo vício, nem de violência gratuita. Trata-se de uma narrativa que traz ao debate público a questão da integração social de gerações de migrantes negros que procuram realizar o seu sonho de felicidade, assim como de brancos pobres, que, perante o vazio de oportunidades, confrontam-se para ganhar a vida em detrimento do outro que partilha o mesmo espaço de imaginação, de poder e de desencantamento.

O desempenho dos protagonistas do filme e a extrema fragilidade de laços sociais faz o espectador mergulhar numa intensidade de cenas portadoras de mágoas, incompreensões e revoltas internas sobre os problemas enfrentados pelas sociedades ditas modernas e globais, que colocam tatuagens em grupos sociais e povos face à pobreza e corrupção do serviço público desumanizante para quem não tem capacidade de montar um sistema alternativo - mesmo que marginal - que possa garantir segurança e possibilidade de continuar a viver com dignidade.

Os protagonistas conseguem ilustrar a dor da migração, a tragédia de rompimento de laços, o drama de uma cidadania precária, o poder de destruição de estigma sobre territórios, mas, sobretudo, a vontade de cada um encontrar o seu espaço, o seu desejo de ser reconhecido e aceite, podendo estar em paz com o seu passado e sentir-se plenamente integrado em memória de uma ancestralidade idealizada num futuro desejado que o presente faz imperfeito. 

Quem viaja no filme, sem dar conta, embala-se numa sonoridade do território identitário - a força da sua banda sonora - vinda desse gueto emotivo-criativo-reativo, onde as narrativas poéticas conseguem não só mapear os códigos da sobrevivência, mas fazem dela os marcos da potência mobilizadora para consciência sobre a realidade vivida, bem como a capacidade interior de superação numa elaboração da comunicação quase que psicossocial da construção de uma autoestima negada.

O filme Gabriel é, simultaneamente, influenciador e produtor de relações de interculturalidade contra-coloniais, em situação de fragmentação social, disfunção económica e da superficialização de políticas, que só podem ser enfrentadas e superadas com a mobilização de sentimentos de pertença, consciência sobre o bem comum, capazes de serem descodificadas individualmente e coletivamente, quer nas famílias, como nos bairros ditos problemáticos que precisam, não só de requalificação urbana, mas sobretudo da ampliação do campo de cidadania ativa para construção de justiça social. 

por Miguel de Barros
Afroscreen | 23 Março 2019 | boxe, cabo-verdiano, estigmatização, Gabril, imigração, juventude, luta, racismo