Cinema negro português

Introdução

A conjuntura social e política de crise pós II Guerra Mundial permite a ascensão internacional de um movimento de massas que traz como inflexão a questão urgente do racismo. A luta dos negros pelos direitos civis nos Estados Unidos, a crise ética do regime do Apartheid na África do Sul, bem como as lutas pela descolonização dos países africanos culminam numa ampla frente de resistência que faz surgir o Movimento Negro Unificado em meados dos anos 1970. 

O cinema negro, embora tenha raízes mais profundas, irá ampliar-se e aprofundar sua atuação na década de 1970 ao redor do mundo movido por esse contexto sociocultural, como é o caso do Brasil. De forma ampla, define-se como cinema negro uma postura conceitual para expressar a diferença de uma nova posição sociocultural do afrodescendente no sentido de construir uma imagem afirmativa do povo negro e de sua cultura. Além disso, a busca é não apenas pela representatividade, ou seja, pela construção de narrativas e imaginários cujo negro ou negra é fio condutor, mas também da busca negociada pelo protagonismo – ocupando o lugar de quem fala. Ao contrário da cinematografia oficial nacional que era produzida no âmbito do movimento do Cinema novo no Brasil, surgem cineastas negros como Zózimo Bulbull, Luiz Paulino dos Santos e Adélia Sampaio que colocam em crise a representação do povo negro e passam a negociar novos regimes de visibilidade para os negros, negras e afrodescendentes no Brasil. 

Tal situação irrompe no cinema português tardiamente, ou melhor, já nos anos 2000, quando, a partir da segunda ou terceira geração de portugueses afrodescendentes radicados em Portugal – a maioria com formação escolar europeia -, uma nova produção cinematográfica passa a ser produzida, desta vez por realizadores que colocam em causa a identidade nacional e a memória do colonialismo. 

A matéria de Joana Gorjão Henriques de 13 de abril de 2018 publicada pelo jornal Público intitulada Há um cinema negro em Portugal?, aponta uma interessante cartografia de realizadores em atuação em Portugal, bem como um breve olhar sobre seus filmes. O citado artigo de Henriques insere-se num novo campo de atuação cultural português, no qual jovens realizadores afrodescendentes conseguem ocupar o posto narrativo e lançar novos olhares sobre o cinema português. 

Muitos desses realizadores têm a diáspora familiar como metáfora de origem e grande parte de seus filmes circulam em torno de questões como memória, identidade, representação, pertença e origem. 

Neste artigo, em vez de desenvolver a temática e a pertinência em torno do conceito do cinema negro, irei aproximar-me do cinematografia do realizador português afrodescendente Silas Tiny através do documentário O Canto do Ossobó (2017), inserindo o filme no contexto cinematográfico internacional e propondo algumas referências e filiações.

Silas Tiny é natural de São Tomé e Príncipe e vive na região de Lisboa desde os cinco anos de idade com sua família. É formado pela Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa e tem seus filmes produzidos, em grande parte, pela produtora Real Ficção, do também realizador português Rui Simões.

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Este artigo é pensado no âmbito do projeto de pesquisa “À margem do cinema português: estudo sobre o cinema afrodescendente produzido em Portugal”, cujo interesse é pensar a forma com a qual realizadores portugueses afrodescendentes despontam no campo do cinema português propondo novas dinâmicas de produção e circulação de imagens, além de temáticas voltadas para a questão pós-colonial e anticolonial, transpondo ou superando o lugar da representação para a autoetnografia, ou seja, para a produção de um relato em forma de filme sobre um grupo de pertença que parte de si mesmo. 

Muito recentemente, o debate sobre racismo em Portugal aprofundou-se em diferentes frentes de atuação. Numa delas, além da revisão dos traumas e feridas do período colonialista, a produção intelectual de negros e negras tem mantido aberta a questão sobre a inserção social, cultural, profissional e, sobretudo, representacional do povo negro e afrodescendente na sociedade portuguesa. 

Inspirado no trabalho de Catherine Russel Experimental Etnography: the work of film in the age of vídeo, no qual a autora aprofunda a relação entre o filme experimental e o filme etnográfico, exploramos a linguagem do documentário de Silas Tiny O canto do Ossobó relacionando-o com os percursos do filme-ensaio, refletindo acerca das formas assumidas pelo filme e o modo como o realizador utiliza e aprofunda o documentário como uma ferramenta de busca por identidade, memória e pertença, própria de um método investigativo autoetnográfico. 

Por ser um texto literário localizado num entre-lugar entre o poético e o didático, entre a crítica e a ciência, entendido como uma “literatura menor” por Deleuze e Guattari, a forma e a escrita ensaística por si requerem uma aproximação e um entendimento. De acordo com Arlindo Machado:

“Denominamos ensaio uma certa modalidade da escrita que carrega atributos amiúde literários, como a subjetividade do enfoque (explicitação do sujeito que fala), a eloquência da linguagem (preocupação com a expressividade do texto) e a liberdade do pensamento (concepção de escritura como criação, em vez de simples comunicação de ideias).” (Machado 2003, 2)

Bastante influenciado pela literatura ensaística, o filme-ensaio vai assumir alguma de suas errâncias e evocar sempre uma relação, como aponta Julia Vilhena:

“Como se sabe, a forma ensaio no cinema e na literatura possuem grandes afinidades. O gênero literário conferiu ao ensaio alguns de seus princípios mais fundamentais. Sendo assim, é frequente encontrar nos estudos sobre o filme ensaio uma valorização excessiva do texto verbal, falado ou escrito, na composição fílmica. Apesar da importância de se manter essa herança literária como referência para se refletir sobre a forma, torna-se necessário também um exame mais atento dos materiais e dispositivos expressivos próprios da linguagem audiovisual, que conferem aos filmes uma inflexão ensaística.” (Vilhena 2019, 21) 

Dessa forma, assumindo o espaço híbrido de filme-ensaio, e por isso entendendo-o não como um gênero cinematográfico, mas como um campo fértil de experimentação e contaminação entre múltiplas linguagens cinematográficas, partimos do ponto em que consideramos como filme-ensaio a “forma que pensa”, ou seja, um tipo de cinema cuja dimensão reflexiva é caráter ontológico da imagem, bem como a premissa ativa da subjetivação do autor. 

Para o filósofo francês Gilles Deleuze, o cinema moderno é capaz de produzir um tipo de relação entre a imagem e o espectador que aprofunda e amplifica a subjetividade daquele que vê, mas também daquele produz a imagem. Para ele, o pensamento gerado pelo cinema reconstrói a potência da vida, produz um tipo de relação que leva o espectador a experienciar e pensar o mundo. Para o filósofo, o pensamento nasce no vácuo ou nos interstícios entre imagens e coloca o espectador em uma posição de suspensão. Deleuze vai dizer que o cinema moderno apresenta uma ruptura com o mundo, na medida em que estabelece uma barreira entre este e o espectador. Nesse sentido, a preocupação deixa de ser com a associação ou a atração das imagens e passa a ser com o ‘interstício’ entre imagens, “um espaçamento que faz com que cada imagem se arranque ao vazio e nele recaia” (Deleuze, 2013, p.216). in: (Vilhena 2019, 36)

Afora a clara diluição de fronteiras entre ficção e documentário, o filme-ensaio causa na linguagem cinematográfica a quebra ou a redefinição de supostos lugares “fixos” como as tradicionais dicotomias sujeito/objeto, privado/público, pessoal/coletivo, memória/história, o “eu” e o “outro”. O embaralhamento das fronteiras entre esses lugares transforma o filme-ensaio num vasto campo de experimentação no cinema: um terreno fértil, poroso e indeterminado. No documentário, é evidente o uso marcado da multivocalidade ou da polifonia, em detrimento de uma voz off  ou over que explica o mundo que vemos, bem como a maneira imprecisa e errante com que trata seus temas, contaminados por diferentes linguagens e sobreposições. 

Ao traçar uma breve genealogia do filme-ensaio, ainda que sejamos incapazes de apontar limites precisos para o aparecimento dessa forma-cinema, desde Carta da Sibéria (1957), de Chris Marker até os dias de hoje, é muito evidente uma “voz pessoal” e ativa, mediadora de imagens e sons – que nem sempre são congruentes. 

Ao lado do aparecimento dessa “forma que pensa”, de um cinema subjetivado e /ou autobiográfico que surge como oposição à linguagem narrativa hegemônica seja da ficção ou da não-ficção, o campo do documentário também vai sofrer inflexões ou influências das transformações vividas no campo da sociologia e da antropologia que, desde os anos oitenta, passa a questionar a objetividade da investigação e a marcar cada vez mais a importância da narrativa pessoal e das experiências dos autores da/na pesquisa. 

É dessa forma que surge o conceito da autoetnografia nos anos oitenta como um lugar político de pensamento sobre a identidade – e sobre a produção cultural da identidade – que, aliado ao movimento feminista, aos estudos queer e aos escritos pós-coloniais movidos por novas vozes emergentes reconfiguram, a partir daí, o locus da produção cultural ao redor do mundo.

De forma breve, podemos dizer que a autoetnografia é baseada em três orientações: uma orientação metodológica, cuja base é a etnografia e a análise, uma orientação cultural, que tem como ponto de partida a interpretação dos fatos vividos (a partir da memória), da relação entre o pesquisador e os sujeitos (objetos) da pesquisa, e uma orientação de conteúdo, cuja base é a autobiografia aliada a um caráter reflexivo. 

Isto torna evidente que a reflexividade assume um papel fundamental nesse modelo de investigação. Queremos pensar a partir deste ponto: de que forma o cinema na forma do filme-ensaio absorve (e é absorvido) por essas novas dinâmicas da produção de conhecimento que partem do campo da sociologia e da antropologia? Ou seja, poderia ser a “forma que pensa” do filme-ensaio matéria (e sujeito) do método autoetnográfico? Como se dá em termos de imagem? Partimos, assim, para a análise de O Canto de Ossobó, de Silas Tiny.

O pássaro-espelho

Uma das sequências iniciais do filme de Silas Tiny acompanha crianças a brincar em cima de árvores de cacau. Um deles, observa a câmera e aponta em direção ao espectador/realizador, devolvendo um olhar que funciona como espelho: sabemos, ao longo do documentário, que Silas Tiny emigrou de São Tomé e Princípe para Portugal aos cinco anos de idade e que grande parte das motivações deste filme consiste em recuperar uma memória perdida. O filme parte dessa busca pessoal e deste encontro do realizador com suas “origens”, numa postura ativa de Silas Tiny que se coloca também em cena, como personagem num entre-lugar entre sujeito e objeto, chave característica do filme-ensaio.

Não parece demais referir que nos últimos anos, a produção intelectual em torno da noção e da historiografia do filme-ensaio é impulsionada por uma certa “virada subjetiva do documentário”, ou seja, transformações que, como referimos acima, partiam também do campo da sociologia e da antropologia e que caminharam juntas com inflexões da linguagem documental que foi exigindo para si um lugar de mediação e reflexão sobre o mundo e sobre a vida, abandonando, cada vez mais, a relação com o “real” e com a “realidade”. Como comenta Arlindo Machado, 

 

O documentário começa a ganhar interesse quando ele se mostra capaz de construir uma visão ampla, densa e complexa de um objeto de reflexão, quando ele se transforma em ensaio, em reflexão sobre o mundo, em experiência e sistema de pensamento, assumindo, portanto, aquilo que todo audiovisual é na sua essência: um discurso sensível sobre o mundo. Eu acredito que os melhores documentários, aqueles que têm algum tipo de contribuição a dar para o conhecimento e a experiência do mundo, já não são mais documentários no sentido clássico do termo; eles são, na verdade, filmes-ensaios (ou vídeosensaios, ou ensaios em forma de programa de televisão ou hipermídia) (Machado 2003, 10)

O canto de Ossobó, de Silas TinyO canto de Ossobó, de Silas Tiny

O início do filme O canto de Ossobó parte exatamente deste ponto: da reflexão sobre o mundo. O realizador caminha por entre a mata, observa e é observado, toca as plantas e as árvores, num esforço de espanto e dúvida. Inicialmente, essa reflexão sobre o mundo recai numa perspectiva muito individual e familiar que, aos poucos, como veremos, vai se alargando.

Nasci em São Tomé e Príncipe e aos cinco anos emigrei com minha família para Portugal. Durante três décadas permaneci afastado das minhas raízes e do meu país. Ignorei a história dos meus antepassados que ocuparam este minúsculo território perdido algures no meio do Atlântico e atravessado pela linha do Equador. As memórias que tinha desse lugar desapareceram, o elo que me ligava à terra, perdeu-se. Esqueci meu passado, como quem esquece um trauma difícil, uma recordação dolorosa. Escondo a cicatriz dessa ferida profunda por baixo da minha pele, longe dos olhares das pessoas que me observam e das pessoas com quem falo todos os dias. (O canto do Ossobó, 2017)

Esse documentário de busca, para usar o termo cunhado por Consuelo Lins e Cláudia Mesquista, movido pela viagem de Silas Tiny de volta a sua terra, reflete sobre a memória individual do realizador e é confrontado com as ruínas, no sentido benjaminiano, ou seja, ao longo de todo o filme o realizador tenta converter o passado em “imagens dialéticas” capazes de dialogar com o presente e iluminar o futuro. Converte o próprio filme num “cinema de ruínas”, guiado por fragmentos de um passado silenciado e incerto que vai se transformar numa espécie de imagem-fantasma, como o canto do Ossobó, o pássaro que anuncia a chuva, mas que nunca é visto, segundo a lenda de São Tomé. 

A metáfora da vida e da morte percorre todo o filme, transformando e relacionando a trajetória pessoal do realizador com a trajetória coletiva do seu país e os percalços vividos durante o período do colonialismo. A cena da cabra que está parindo ao lado de fora das ruínas de um antigo hospital faz viver e reviver o drama coletivo colonial. A imagem em ruína do hospital é uma imagem-síntese do processo de busca, de reflexão, do método investigativo autoetnográfico e também de filmagem, esgarçando completamente e em definitivo as fronteiras entre sujeito-objeto, pessoal/coletivo, memória/história:

Uma das minhas irmãs nasceu neste hospital em 1980, nesta altura tinham se passado cinco anos da independência de São Tomé. As roças tinham sido nacionalizadas e transformadas e cooperativas. No início dessa década ainda seriam visíveis as marcas dos milhares de homens e mulheres que por aqui passaram, esgotados pelo peso do trabalho e do medo. Nesta mesma maternidade, da qual hoje apenas restam ruínas e animas que fugiam para poder dar luz ás suas crias, nasceram crianças que testemunharam a dor e o sofrimento dos seus anónimos que durante gerações viveram a escravatura. Em São Tomé, a avidez, o poder e a dominação colonial foram representados por um espaço: a roça. (O canto do Ossobó, 2017)

 

A questão da auto-representação 

Por outro lado, O filme de Silas Tiny, um português afrodescendente que produz um contundente discurso sobre o período do colonialismo, reposiciona as indagações presentes no conhecido ensaio de Gayatri Spivak Can the subaltern speak? ao lado da crítica presente no texto Plantation Memories de Grada Kilomba. Segundo esta autora:

“Spivak’s positon on the silent subaltern is however problematic if seen as an absolute statement about colonial relations, because it sustains the idea that the Black subject has no ability to question and counter colonial discourses. This position, argues Benita Parry (quoted in Loomba 1998) deliberate deafness to the native voice where it can be heard and attributes an absolute power to the white dominant discourse. The ideia of a subaltern that cannot speak, as Patricia Hill Collins explains, first encounters the colonial ideology that subordinate groups identify unconditionally with the powerful and have no valid interpretation of their own opression – and thus cannot speak.” (Kilomba 2010, 26)

O Canto de Ossobó caminha na direção do texto de Grada Kilomba, ou seja, na produção de um contra-discurso do sujeito colonizado e na tentativa de visibilizar este discurso nos mesmos espaços de circulação das vozes brancas e da imagerie ocidental. O filme foi exibido no Festival Doclisboa de 2017 como um filme português e também circulou no circuito comercial em Portugal no mesmo ano, além de ser produzido por uma destacada produtora portuguesa. A presença da voz e do corpo do realizador em cena refaz e questiona a ausência de vozes e de vidas negras silenciadas pelo colonialismo. 

Embora o filme tenha como ponto de partida uma tentativa de recuperar a memória individual do realizador, ou de reencontrar as raízes africanas perdidas pela diáspora familiar, a reflexão de Silas Tiny vai dirigindo-se cada vez do pessoal para o coletivo, reorganizando a história colonial portuguesa em seu país, resignificando imagens de arquivo da Cinemateca Portuguesa acerca do período colonial em São Tomé e Princípe e rediscutindo também a própria representação do povo africano ou da África, sempre atribuída ou feita, em sua grande parte,  por um ocidental branco que fala “em nome do outro”.  

O longo plano sequência que explora São Tomé numa viagem que busca e que como pretexto a procura pela casa de seus pais lembra-nos a cena inicial do filme-ensaio de Trinh Min Ha Forgetting Vietnam. Assim como a realizadora vietnamita, Tiny provoca um descompasso entre imagens e sons, entre aquilo que é visto e o processo de reflexão em torno da imagem. Faz com que os fantasmas que habitam a ilha e o seu passado regressem e constrói uma relação com o “outro” como alguém que não deseja falar por ele, mas falar com ele, falando ao lado, a partir de uma criação política de afinidade e afeto.

Inserido no contexto atual em que vozes negras ou afrodescendentes reclamam um lugar de fala e o direito de autorrepresentar-se em Portugal, o filme O canto do Ossobó levanta uma série de questões de cunho político e social para a imagem. Tal reivindicação tem como lastro as lutas anti-coloniais, os escritos pós-coloniais no contexto anglo saxão, o “giro decolonial” na América Latina, e as novas formas de pensar e fazer cinema no Terceiro Mundo que emergiram em lugares tão distintos como Vietnã, Senegal e Brasil.  

A já mencionada questão de Spivak e os desdobramentos políticos das reivindicações contemporâneas em torno da identidade podem ser, hoje, atualizados, com novas perguntas não menos complexas, e não menos polêmicas. O método autoetnográfico movido não apenas pela vontade de reflexão a partir de si mesmo, mas também da defesa de um ponto de vista localizado, circunscrito e de alguém que fala “do lado de dentro” levanta novos problemas. Como indaga Ella Shohat e Robert Stam: 

“De um lado, as políticas das identidades afirmam que as pessoas pertencem a grupos sociais reconhecíveis, e que certos representantes podem ser escolhidos para falar em seu nome. Mas a experiência da opressão confere direitos especiais para falar sobre a opressão? (…) Quando é que o medo da “apropriação” se transforma em uma forma de segregacionismo mental e um repoliciamento das fronteiras raciais, em uma recusa de reconhecer sua própria co-implicação (o termo é de Chandra Mohanty) com o outro? Como pode o trabalho intelectual, artístico e pedagógico “lidar” com o multiculturalismo sem defini-lo de modo simplista como um espaço onde apenas os latinos podem falar sobre os latinos, somente os afro-americanos sobre os afro-americanos e assim por diante, com cada grupo prisioneiro de sua diferença reificada? Em que medida um membro de um grupo minoritário pode falar por outro? (…). Como seria possível não prolongar a herança colonial de incompreensão e da falta de sensibilidade em relação ás chamadas minorias (inclusive no sentido acadêmico da política de prestígio e citação) sem silenciar aliados em potencial?” (Shohat, Stam 2006, 446)

As questões acima extrapolam e excedem a experiência do visionamento do filme de Silas Tiny, mas invadem o universo da prática cultural e social em que o filme está inserido nos dias de hoje. Adaptando a questão acima, a experiência do colonialismo confere direitos especiais para falar sobre a opressão? A pergunta em nova situação até revela-se importante, entretanto quando percebemos o contexto cultural racista em que estamos inseridos, o sistema educativo e de produção de conhecimento que preserva as mesmas narrativas de poder e de exclusão de quinhentos anos atrás, a sensação é de profundo incômodo. 

Partilho com Silas Tiny da vontade de explorar pássaros mágicos e serpentes matreiras, de construir e fazer ouvir uma voz ativa e reflexiva, ambivalente, errante, contaminada por vozes de “dentro” e de “fora”, mas jamais neutra, numa busca não de uma essência mas de uma “afinidade estrutural” ainda que “ a capacidade de dialogar com o discurso de uma comunidade, e mesmo defendê-la com eloquência, não se resume à “autoridade existencial” (Shohat & Stam 2006, 449), para concluir com as palavras de bell hooks. 

Bibliografia 

Lins, Consuleo. Mesquita, Cláudia. Filmar o Real: sobre documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008

Kilomba, Grada. Plantation Memories. Episodes of Everyday racism. Auflage, April, 2010

Nota Texto: (Kilomba 2010, 26)

Machado, Arlindo. O filme-ensaio. Comunicação apresentada no Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, BH/MG, 2 a 6 de setembro, 2003

Nota Texto: (Machado 2003, 2)

Nota Texto: (Machado 2003, 10)

Russel, Catherine. Experimental etnography. The work of film in the age of vídeo. Duke University Press, 1999 

Shohat, Ella. Stam Robert. Crítica da imagem eurocêntrica. Multiculturalismo e representação. São Paulo: Cozac & Naify, 2006

Nota Texto: (Shohat, Stam 2006, 446) 

Spivak, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 1. ed. Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.

Tese/Dissertação

Vilhena, Julia. Falar ao lado: vozes femininas e pós-coloniais no filme ensaio. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2019

(Vilhena 2019, 21)

(Vilhena 2019, 36)

Filmografia

O canto do Ossobó. 2017. De Silas Tiny. Portugal:Divina Comédia. DVD.

Nota Texto: (O canto do Ossobó, 2017)

 

por Michelle Sales
Afroscreen | 24 Julho 2019 | auto-biografia, autoetnografia, cinema negro português, estudos pós-coloniais, filme experimental, representação