A propósito de Bab Sebta

Em 2005, entre o final do mês de Setembro e o início do mês seguinte, vagas sucessivas de homens e mulheres organizados procuraram atravessar a fronteira entre Marrocos e o enclave espanhol de Melilla, forçando ou galgando a rede fortificada que se interpõe entre os dois territórios. Durante duas semanas, jornais e meios de comunicação em geral deram extensa cobertura aos acontecimentos, acompanhando primeiro a ritmo quase diário as tentativas de intrusão que se sucediam noite após noite, dando depois conta das suas consequências políticas e humanitárias.

Bab Sebta, de Pedro Pinho e Frederico Lobo, foi filmado no norte de África alguns meses depois.

À distância de quase três anos, os enunciados lacónicos dos títulos de um desses jornais permitem recuperar a sequência abreviada dos factos (cf. Correia da Manhã no intervalo das datas discriminadas). 27 de Setembro: «Centenas de imigrantes tentam entrar em Espanha». 28 de Setembro: «Segunda tentativa em 24 horas. Ilegais tentam entrar em Melilla». 29 de Setembro: «Tentativas de infiltração em massa sucedem-se. Ilegais morrem a tentar entrar em Melilla». 5 de Outubro: «Mais uma avalanche de ilegais em Melilla». 6 de Outubro: «Quinta tentativa para chegar a Espanha. Seis emigrantes morrem ao entrar em Melilla». Os mesmos enunciados, no estrito respeito pelos mais elementares preceitos do jornalismo, permitem também destacar desde logo o interveniente da acção – uma primeira aproximação aos agentes do acontecimento: «Quem»? «Imigrantes», «emigrantes», «ilegais». Ali, nos cabeçalhos mas também no corpo dos artigos, o sujeito do enunciado começaria por ser definido pela sua condição circunstancial de expatriado e, no decurso de poucos dias, acabaria por ser pura e simplesmente substituído, nessa função, pela única especificação que durante a primeira semana o qualificava: o eventual e futuro estatuto de ilegal.

Não surpreende aliás tanto o facto em si como o rigor matemático da ocorrência, com a devida e única excepção – ao terceiro dia, designavam-se no correr do texto, de forma mais anódina, «indivíduos». Seria preciso esperar pela segunda semana de notícias e pela entrada em cena de outros enunciadores para ficarmos a saber aqui algo mais acerca dos elementos constitutivos dessa «massa». As consequências trágicas das expulsões de território espanhol e do abandono dos infractores no deserto de Marrocos encontravam eco nas denúncias de organizações humanitárias. Falava-se agora de «pessoas», quinhentas, entre as quais «mulheres e crianças», entregues à sua sorte sem comida ou água – mil e quinhentas desde a semana anterior. A 8 de Outubro, quase duas semanas após os primeiros relatos, pela voz dos Médicos Sem Fronteiras ficávamos finalmente a saber (não fora até então o recurso à intuição ou a outras fontes disponíveis) da proveniência «subsariana» dos imigrantes em causa. Informação singela, mas ainda assim a única que, embora por mera sugestão, remetia para um horizonte mais alargado de motivos e motivações e, no limite, telescopicamente apenas, para os sujeitos da acção.

As causas estruturais, chamemos-lhe assim, destas movimentações massivas de indivíduos, aqui e em todo o globo, encontram-se hoje bem documentadas pela teoria e por incontáveis investigações científicas, genericamente agrupadas pela designação do seu objecto, «migrações internacionais». E muito embora a este respeito sobressaiam ainda argumentários clássicos mais estritamente economicistas (para nada dizer de abordagens ao tema que não se estribam senão no racismo), as explicações mais sofisticadas destes deslocamentos, que associam factores daquela índole com outros de natureza histórica, política, social e cultural, são já hoje, poder-se-ia dizer, de conhecimento comum.

Muitas das razões do êxodo reverberam aliás nas próprias palavras e na experiência pessoal dos indivíduos que se nos dirigem em Bab Sebta: a história de colonialismo e as relações privilegiadas que os antigos territórios administrados mantêm com as respectivas potências administrantes, frequentemente sobre a forma de neo-colonialismo; o carácter corrupto de muitos regimes de nações africanas e a perfeita indistinção entre economia e política que neles vigora; a força geradora das redes sociais mantidas entre emigrantes e co-nacionais nos seus territórios de origem; ou a ascendência cultural e a socialização prévia aos países industriais do Norte a que são submetidos potenciais emigrantes, por força das já-não-tão-novas-como-isso tecnologias de comunicação. Até pela sua relativa evidência, porém, não são tanto essas causas que nos interpelam nos gestos e nas palavras dos que vivem às portas de Ceuta (e mais adiante). Interpelam sobretudo a intensidade e a ligeireza com que normalmente se insinuam certas categorias («imigrantes», «ilegais»), intensidade e ligeireza medidas ao longo do filme pelo deseclipsar do que essas mesmas categorias cobrem na sua imediata transparência e, pontualmente, pela indignação de alguém que no filme, enquanto espera por que lhe cortem o cabelo, afirma: «aquele que usa a palavra clandestino (…) já foi clandestino em algum sítio, uma vez!» (1’ 26’’ 31’’’).

A este respeito, a própria teoria – nesta como noutras áreas de estudo –  viu-se durante muito tempo enredada numa espécie de sono epistemológico, veiculando e vinculando oposições conceptuais em muitos casos procedentes dos contextos de emergência de cada uma daquelas áreas, fossem eles administrativos, jurídicos ou políticos. Pressupostos nacionalistas, por exemplo, revelaram-se matriciais no desenvolvimento das ciências sociais e na construção de conceitos que lhes são centrais como «cidadania» (e dos seus inversos, como «ilegal»), ou até mesmo no modo de conceber os limites do «espaço social», confinando metodologicamente a «sociedade» às fronteiras de um Estado-nação singular (o chamado «nacionalismo metodológico», de que fala por exemplo Hermínio Martins). A auto- e hetero-análise a que aquelas ciências têm sido submetidas elevou certamente o limiar de vigilância epistemológica, com resultados que nalguns casos são também eles bem conhecidos: nos estudos sobre migrações internacionais, para citar um caso clássico e apropriado, o processo tornou manifesto o quanto um conceito científico como «assimilação», na qualidade de descritor do processo de adaptação de imigrantes a uma nova sociedade, traduzia as expectativas de elites políticas nacionais, quando não enquadramentos jurídicos do próprio Estado.

Relativamente aos «ilegais», a opção científica por «indocumentados», na sociologia por exemplo (unauthorized, em inglês, sans-papier, em francês), traduz mais a suspensão do problema do que propriamente a sua solução. A questão não é simples e está longe de poder ser superada por declarações de princípio que não contornam a necessidade de objectivar a realidade. Seja como for, a formulação negativa daquela opção acolhe a linhagem desconstrutivista do pensamento crítico e remete para o carácter modal da categoria e para o cunho normativo da noção de que deriva. Mas não pode do mesmo passo (e por isso mesmo) aceder às qualificações positivas daquilo que designa, aos sujeitos que classifica. A própria crítica neste âmbito é sobretudo antídoto para uma certa preguiça ontológica que se substitui naturalmente à necessidade de tomar por objecto de estudo os próprios enunciados. (Reparei entretanto como o ficheiro em que trabalho tem o nome «ilegais1»).

Diga-se a propósito que uma orientação relativamente comum em vários domínios para «teorizar» a crítica parece redundar no mesmo fixismo do discurso espontâneo (ou no seu perfeito inverso) reduzindo tudo e todos a «instituições», «dispositivos» e «processos» que organizam e demarcam discricionariamente toda a experiência – que deixaria assim de precisar de ser pensada e, no limite, por coerência, sequer vivida. Da crítica da burocratização da vida à teoria da vida burocratizada, não restariam senão e uma vez mais puros e simples ilegais, já não como condição natural embora como peças de uma engrenagem que lhes é alheia, é verdade, mas que os consome absolutamente. Ora esse lugar de demarcação está claramente presente em Bab Sebta, na sequência prévia que abre o filme e que de modo perfeitamente explícito começa por retratar um dos lugares dessa violência simbólica (neste caso de extrema violência física, sublinhe-se) – a «rede»; e também, depois disso, apenas de forma latente, atravessando episódios do quotidiano, em relatos da «rota». Mas ele quase não é mais que o pretexto de uma digressão geográfica e logicamente invertida em que de Ceuta a Nuakchott, passando por Oujda e Nuadhibu, nos cruzamos com existências em trânsito não reduzidas à sua condição de desterro.

 

Versão revista do texto originalmente publicado em Paisagem: o trabalho do tempo. Textos de apoio, Doc’s Kingdom (Seminário Internacional sobre Cinema Documental), 2008, pp. 159-162.

 

por Frederico Ágoas
Afroscreen | 29 Setembro 2010 | Bab Sebta, fronteiras, ilegais, migração