Processo eleitoral angolano apontado como o maior entrave à democratização do país

Em Angola muito poucos são os especialistas que se têm pronunciado com a necessária ciência sobre o sistema eleitoral angolano cuja estruturação conheceu com as primeiras eleições multipartidárias de 1992 o seu ponta pé de saída/ano zero.

Tal só foi possível no âmbito e como consequência da abertura política iniciada com a aprovação dos Acordos de Paz de Bicesse assinados em Portugal em Maio de 1991 por José Eduardo dos Santos (Governo do MPLA) e Jonas Savimbi (UNITA).
Passavam-se mais de 17 anos desde a data em que, também em Portugal, no Alvor, o MPLA, a UNITA e a FNLA, então reconhecidos pela antiga potencia colonial como sendo os únicos e legítimos representantes do povo angolano tinham-se comprometido pela primeira vez a realizar eleições, a culminar o processo de descolonização que conduziria Angola à Independência.
Em 1975 as previstas eleições não se realizaram, mas Angola tornou-se independente, tendo mergulhado numa guerra civil brutal com intervenções estrangeiras bem pronunciadas no contexto da guerra fria que então caracterizava as relações internacionais.
Em 1992 conseguiu-se a paz, realizaram-se as primeiras eleições sob supervisão das Nações Unidas, mas o país regressou a uma guerra ainda mais devastadora que se prolongou até 2002, quando, algures no infindável leste angolano, Jonas Savimbi desaparecia definitivamente do mapa crivado de balas.
Serve este breve parêntese histórico apenas para destacar o relacionamento do processo eleitoral angolano com as sucessivas crises políticas que o país vem conhecendo, a ponto de, até ao momento, a UNITA nunca ter reconhecido os resultados dos quatro processos já realizados nestes 23 anos da chamada paz definitiva, inaugurada com a morte em combate de Jonas Savimbi em Fevereiro de 2002.
Se quisermos, a novidade agora tem a ver com o facto das crises pós-eleitorais serem apenas políticas e de curta duração, nunca tendo o país conhecido uma convulsão parecida com aquela que se verificou recentemente em Moçambique. Nem pouco mais ou menos.
A verdade é que as eleições em Angola continuam a ser mais sinónimo de problema/desafio/crise, do que de solução consensual no âmbito da consolidação do próprio processo democratização em curso.
Se quisessemos resumir numa só palavra o que é preciso para as eleições em Angola deixarem de ser o recorrente pomo de discórdia que são e, pelos vistos, vão continuar a ser, a mesma seria confiança. Muita confiança.
Se quiséssemos acrescentar uma outra palavra a este “glossário”, poderia ser transparência.
O que falta é confiança e transparência.
É o que mais tem faltado tendo na sua origem um mix de razões mais ou menos identificadas.
Não há, contudo, qualquer convergência na hora de se apontarem as verdadeiras causas, mas sobretudo de se identicarem os responsáveis pela situação, ou seja, pela desconfiança instalada na gestão do processo.
Para explicar muita coisa sobre o processo eleitoral angolano é aqui que deviam entrar e em força os especialistas cuja ausência, conforme foi referido no início, é notória em Angola.
Uma lacuna a traduzir, eventualmente, outros receios de índole mais política, sem descartar alguma incompetência pelo meio.
É uma área especializada onde o senso comum ajuda pouco, pois os números, as percentagens, as proporções falam muito mais alto, o que exige a necessária competência técnica para dizer coisas que convençam minimamente todos pela sua consistência, independentemente das convicções políticas de cada um dos destinatários.
Entretanto, navegamos no contexto angolano, onde os académicos também fazem da auto-censura e da omissão a sua melhor estratégia de sobrevivência, sobretudo quando o objecto de estudo pode, de algum modo, afectar os interesses dominantes, que são os mesmos que governam o país desde que se tornou independente, já lá vão cerca de 50 anos.
Claramente que o processo eleitoral é uma destas áreas de estudo politicamente mais sensíveis onde poucos se atrevem a penetrar com ferramentas mais académicas que exigem antes de mais independência/autonomia-honestidade intelectual por parte de quem as utiliza em nome da objectividade que deve nortear qualquer pesquisa que se preze.

Um jovem académico que se destaca facilmente por mérito próprio

Sérgio DundãoSérgio DundãoCom pouco mais de 38 anos de idade, é neste “deserto” que hoje se tem vindo a afirmar um jovem cientista politico angolano de nome Sérgio Manuel Dundão, que acaba por ser das poucas referências com obra já publicada sobre o processo eleitoral angolano, salvo melhor informação.
E a melhor informação é-nos fornecida pelo próprio autor quando nos diz que as abordagens já produzidas, sendo na sua maioria feitas por juristas, “dificilmente atingem a essência do funcionamento e os efeitos práticos de um sistema eleitoral, visto que não estudam profundamente os efeitos na distribuição de mandatos numa determinada eleição.”
Para Sérgio Dundão “explicar o funcionamento do sistema eleitoral angolano traduz-se numa tarefa ardilosa, porque os jornalistas, os académicos e os cidadãos em geral estão apenas despertos ou atentos quanto aos aspectos constitucionais e aos diplomas legais que regulam o funcionamento do sistema eleitoral, principalmente em períodos eleitorais”.
A confiar na consistência deste alerta, têm razão todos aqueles que, meio a sério, meio a brincar gostam muito de usar a expressão “Angola não é para principiantes”, sendo efectivamente o processo eleitoral um dos domínios da vida política que mais competência exige se quisermos deixar os lugares comuns das narrativas dos prós e dos contras para passarmos para a analise propriamente dita dos fenómenos.
Editado em 2022 pela Marmoco Criações (MC), o seu primeiro livro chegou às bancas com o título “SISTEMA ELEITORAL ANGOLANO E ELEIÇÕES EM CONTEXTO DE PÓS-GUERRA: UM ESTUDO DAS ELEIÇÕES DE 2008, 2012 e 2017”.
Menezes Caputo, outro jovem cientista político angolano que o autor convidou para prefaciar o seu livro com cerca de 450 páginas repartido por cinco capítulos, considera que o “argumento central da obra é de que o sistema eleitoral angolano é caracterizado pela constitucionalização, rigidez institucional e cristalização de um sistema de representação eleitoral bloqueado e fechado”.
Para Menezes Caputo o autor pretende demonstrar que este sistema tem “um impacto claro, sobretudo nos princípios da legalidade, dado o entrave aos ajustamentos técnicos da magnitude dos círculos angolanos para gerar maior representatividade e proporcionalidade, no principio da igualdade, a julgar pelo peso do voto dos cidadãos das circunscrições territoriais demograficamente maiores, e no principio da representação proporcional, com distorções na representatividade.”

Entre as conclusões a que chegou, depois de ter passado em revista os pleitos de 2008, 2012 e 2017, Sérgio Dundão parece não ter muitas dúvidas quando afirma que “as eleições em contexto de pós-guerra dificilmente contribuem, de forma significativa, para o processo de desenvolvimento de uma democracia ou para a democratização de Angola”.
Para o pesquisador angolano, a forma rígida como estão estruturados os círculos eleitorais tem “gerado uma ampliação representativa dos pequenos círculos e, por sua vez, uma redução da capacidade representativa dos 5 maiores círculos angolanos, designadamente Luanda, Huíla, Huambo, Benguela e Kwanza-Sul.”


Nas contas do académico “i) um partido angolano com 63% dos votos, que conquiste mesmo todos os deputados dos cinco maiores círculos, pode não conseguir conquistar a maioria dos assentos parlamentares; ii) um partido com 37% dos votos pode, muito bem, conquistar a maioria dos deputados; iii) o peso dos círculos divulgado aquando do resultado do recenseamento não é semelhante ao peso representativo, porque um circulo como o do Bengo, que apenas detém, em média, 1,4% do eleitorado, consegue eleger 7 deputados. Assim, o peso representativo do Bengo é de 3,2% (7*100/220). Por sua vez, o círculo de Luanda que tem em média 29,6% do eleitorado, apenas elege 44 deputados. Sendo o seu peso representativo de 20% (44*100/220); iv) o sistema proporcional angolano está apenas configurado com estruturas de representação proporcional, mas não assegura em si uma representação proporcional visto que garante uma maioria absoluta de deputados com uma minoria de votos, sendo esta uma característica dos sistemas de maioria simples”.
Mas pelos vistos e a olhar já para os próximos desafios eleitorais, as coisas podem-se complicar ainda mais no que toca ao aprofundamento das distorções e desproporcionalidades do processo eleitoral identificados por Sérgio Dundão no seu livro.
Trata-se de uma obra que tem, efectivamente, o mérito histórico mas não só, de ser o primeiro estudo académico já produzido sobre esta nevrálgica problemática por alguém que se apresenta como sendo um investigador independente desde 2011.
Parece redundante esta apresentação para um académico, mas em Angola ela continua a fazer todo sentido, considerando que a partidarização das instituições republicanas é um fenómeno transversal que se mantém bem vivo e actuante.
As Universidades não têm escapado a esta “longa manus” do poder político angolano, embora hoje com o surgimento de instituições privadas, a vida académica já não esteja tão politicamente controlada como no passado.
Claramente que o beneficiário deste prognóstico vai ser mais uma vez o actual partido maioritário que, com a sua maioria absoluta no parlamento, (um domínio que já foi total, entenda-se com a maioria qualificada) continua a desenhar e a fazer aprovar a legislação eleitoral que melhor sirva o seu principal objectivo estratégico que é, claramente, a sua eternização no poder, faça sol ou faça chuva.
Se é legitimo ou não este tipo de controlo estratégico do processo eleitoral pela via da legislação é uma questão da maior pertinência que vai continuar a alimentar o debate, numa altura em que várias vozes da sociedade civil se têm estado a mobilizar no sentido de fazerem chegar a Assembleia Nacional as suas preocupações no âmbito da chamada democracia participativa prevista na Constituição e já densificada em dois diplomas legais aprovados na legislatura anterior.

Em concreto tem-se conhecimento de uma petição que várias organizações e personalidades da sociedade civil pretendem fazer chegar a Assembleia Nacional e que neste momento já recolheu on line mais de 500 assinaturas.

Os subscritores da petição “instam o Parlamento a frear o mecanismo de aprovação das propostas de alteração à Lei nº 36/11, de 21 de Dezembro submetidas pelos partidos concorrentes às eleições de 2027, sem a devida auscultação ao soberano, a incluir na discussão a proposta da sociedade civil e assegurar-se que, não só esta seja diretamente implicada no debate que conduzirá à sua forma final, mas também que esse debate seja transmitido em directo, para que todos possam acompanhar os argumentos de razão de cada parte envolvida, garantindo assim a transparência, a integridade e a legitimidade do processo eleitoral no país”.
No que toca ao futuro do processo eleitoral angolano é caso para citar um dos postulados da “sabedoria murphyana” segundo o qual “nada está tão mal que não possa ficar ainda pior”.
E o novo desafio aqui, que já está identificado por alguns observadores como sendo um verdadeiro veneno, tem a ver com o impacto eleitoral da nova divisão político-administrativa (DPA 2024) que introduziu no país mais três províncias, passando das anteriores 18 para 21, tendo mais que dobrado por outro lado, o número de municípios que de 164 passou para 326.
Alguém já identificou esta DPA como sendo um golpe de misericórdia na possibilidade de se realizarem a médio prazo as eleições autárquicas em Angola que é uma das bandeiras mais estruturantes da Oposição parlamentar e da sociedade civil.
Com mais três províncias, Angola passará a ter mais três círculos eleitorais, o que significa que os angolanos vão eleger em 2027 mais 15 deputados numa Assembleia que hoje conta com 220 representantes.
Tendo como pano de fundo esta nova divisão administrativa, mais recentemente Sérgio Dundão publicou um artigo científico voltado já para o processo em curso que vai conduzir o país às eleições dentro de cerca de dois anos.
“Com base nas nossas projecções, a criação de três novas províncias apenas agravará as situações de distorções representativas que acontecem no âmbito do sistema eleitoral angolano, por força da distribuição artificial de 5 deputados por cada círculo provincial, sem atender à população de cada círculo, conforme demonstramos no nosso livro. Por isso, será apenas necessário um partido angolano obter 37,53% dos votos válidos para alcançar 124 deputados, através de 75 no círculo provincial e 49 no círculo nacional (com base na Projecção do Efeito da DPA de 2024 na distribuição dos deputados nos pequenos círculos, com base nas eleições de 2022). Estes 124 deputados representam uma maioria absoluta de 57,8% dos deputados num parlamento (agora) de 235, segundo a nova configuração trazida pela DPA de 2024. Para este resultado contundente, nem se necessitaria de um único voto dos maiores núcleos populacionais do país: Luanda, Benguela, Huambo e Huila.”

por Reginaldo Silva
A ler | 25 Maio 2025 | angola, eleições, guerra, Sérgio Dundão