Os processos socio-históricos em acção nas artes contemporâneas africanas

Historiador de arte, trabalha na Argentina onde vive há 18 anos. O senegalês Boubacar Traoré analisa - no contexto da  DAK’Art 2010, onde foi convidado a intervir sobre o tema “Estética e territórios”- os processos socio-históricos em acção nas artes contemporâneas africanas.

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Desde 1989, ano em que foi criada sob a sua antiga designação1, a Bienal de Artes contemporâneas africanas de Dakar (Dak’Art) tornou-se um espaço de criação e de convívio panafricano. É verdade que Dak’art é ainda, pela sua juventude, um acontecimento menor ao lado das clássicas bienais de Veneza, São Paulo, a Documenta de Kassel, sem falar da grande feira de arte contemporânea (Art Basel). No entanto, face aos seus resultados, a Dak’Art é actualmente um acontecimento incontornável em África. Temos portanto que nos regozijar e felicitar todos os actores que a tornaram um ponto de encontro dos artistas africanos e da diáspora.

O ano 2010 marca o cinquentenário das independências africanas. A julgar por este aniversário simbólico, tratar-se de esboçar alguns eixos de reflexão face aos desafios que interpelam a Bienal de Dakar e a criação africana em geral. O nosso planeta é, há já alguns anos, palco de uma série de transformações que dão lugar a novas configurações. Assiste-se simultaneamente a um desabrochar cultural e à emergência de novas formas culturais. Este novo dado arrasta um certo número de elementos, entre os quais são os mais importantes: por um lado, a importância cada vez mais evidente de um mundo globalizado, considerado como o húmus de uma diversidade de manifestações culturais e artísticas e, por outro, o papel crescente das técnicas de comunicação e de informação.

As artes africanas contemporâneas são o produto de um processo sócio-histórico, cuja dinâmica é necessário ter em conta. Se é certo que a globalização, característica principal da nossa época, não é um fenómeno exclusivo do século XX ou XXI, mas que surge logo que a técnica permite uma invenção que dá lugar a novas possibilidades de relações e de sociedades, devemos admitir que, sob a sua nova fórmula, a globalização trouxe alterações que modificaram a nossa concepção do mundo assim como o modo como urge construí-lo. A situação em que se encontram os Estados-nações, como de resto as suas culturas, é um índice que nos esclarece indubitavelmente sobre a transformação das nossas sociedades. Com efeito, a porosidade das fronteiras, uma questão importante para os Estados-nações, do mesmo modo que as identidades nacionais e as suas culturas tornam-se, hoje, realidades que suscitam muitas interrogações. A globalização arrastou a desterritorialização das culturas e a explosão dos poderes centrais dando, assim, lugar a novas culturas chamadas híbridas.

Ihosvanny, Urban Fox, 2007 Video artworkIhosvanny, Urban Fox, 2007 Video artwork

Novos espaços de sociabilidade

O problema que a globalização coloca às culturas é um fenómeno complexo que comporta vários aspectos: culturas globais, culturas nacionais ou ainda culturas locais; todas estas formas de cultura estão hoje ligadas a estruturas de comunicação formal e informal (Agier e Quintin, 2003). A sua aliança com a internet constitui uma outra dimensão da problemática. Com efeito, esta aliança abriu um campo que não pára de nos surpreender. Contribuiu também para a implantação de um novo paradigma que, pela sua abrangência, está a reformular os nossos princípios metodológicos, teóricos, sem esquecer as noções de culturas e de culturas nacionais.

A internet permitiu construir um espaço ecológico e mental que se pode comparar a “uma rede cognitiva de grande envergadura (global)” (Agier e Quintin, 2003). Assistimos hoje à emergência de um espaço de sociabilização e de sociabilidade que ultrapassa de longe o quadro formal dos Estados-nações. Tudo isso se tornou possível graças à conjugação de vários factores, entre os quais o factor tecnológico, para citar apenas um, desempenhou um papel considerável ao permitir a criação de novas identidades (Maria de la Luz Casas Perez, inédito). Estas identidades, é preciso dizê-lo, já não estão submetidas a limites territoriais ou a constrangimentos nacionais: há uma espécie de sobreposição de lugares. De espaços e de práticas culturais, como um palimpsesto.

Esta situação deu lugar a narrativas que visam essencialmente apresentar o debate com novos termos.

No Senegal, registaremos os trabalhos de Souleymane Bachir Diagne. Num texto publicado em Sénégal, trajectoires d’un État (Senegal, trajectórias de um Estado), o investigador senegalês, voltando deliberadamente as costas ao que ele define como um “impressionismo etnológico” propõe face “às várias dicotomias conceptuais de enraizamento/abertura, tradição/modernidade, autenticidade/alienação”, demasiado estatísticas e, a seus olhos, demasiado convencionais para apreender os mecanismos que actuam na esfera da cultura e das representações, o conceito de avaliação que tem como corolário as noções de território e de desterritorialização são mais aptos para reflectir a dinâmica social.

Diagne pensa que o discurso da construção do Estado que viu a luz do dia a partir das independências é hoje incapaz de fazer face à realidade que representa a nova emergência da sociedade civil. A temática da identidade versus as forças de alienações exteriores, propõe que sejam substituídas pelas significações culturais e as exigências que colocam às próprias populações, jovens e cada vez mais urbanas.

No que diz respeito à América Latina, é Alfonso de Toro quem retém a nossa atenção. Como Diagne, Toro inscreve a sua abordagem na via ligada ao pós-estruturalismo e à pós-modernidade socio-filosófica. A partir daí apoia-se em autores como Lacan lembrando de passagem a importância do seu conceito de castração no quadro da constituição de um sujeito descentrado, sujeito cuja definição se fará a partir de um terceiro (outro). Esta situação, como de resto as que estão ligadas, por um lado, à disseminação (Derrida) e por outro ao rizoma (Deleuze/Guattari), leva o investigador a formular uma crítica relativa ao logocentrismo, ao dualismo ocidental e aos meta-discursos abrindo, assim, caminho para uma reformulação do Discurso, tanto entre os Ocidentais como entre os latino-americanos. Esta abordagem permitirá colocar as premissas de um diálogo que Toro não hesita em comparar ao discurso pós-colonial definindo-o como um processo de desconstrução bilateral em que a ideia de uma “pureza da identidade cultural (una pureza de la identidad cultural) “é fortemente criticada. Não há identidades puras nem para o centro e menos ainda para a periferia - dirá ele. Nenhuma cultura escapa aos fenómenos de hibridismo, de transculturalidade e de multiculturalismo. O pós-colonial é, por isso, um discurso ao mesmo tempo transdisciplinar e transtextual e o contacto inevitável entre as culturas produz, na sua opinião, uma contaminação recíproca; isso leva-o à afirmação conclusiva de que a pós-colonialidade, enquanto fenómeno discursivo, é simultaneamente uma reformulação do centro e da periferia. É, pois, uma contracultura que tende a ser subversiva, heterogénea e sobretudo criativa.

N'Dilo Mutima, Cosmogónicos. Masks I - III, 1997 C-Prints on aluminum 80 x 100 cmN'Dilo Mutima, Cosmogónicos. Masks I - III, 1997 C-Prints on aluminum 80 x 100 cmAlianças a inventar

Partindo da premissa de que a pós-modernidade é “uma estratégia que permite entrar e sair da globalização2”, como lembra Garcia Canclini (2002), queremos propor aqui uma reflexão sobre o conceito de desterritorialização. Este conceito é um mecanismo de construção simbólica e geográfica susceptível de redimensionar as artes africanas contemporâneas, uma vez que a sua acção deverá conduzir a um alargamento da sua base. Num contexto mundial em que as culturas nacionais têm dificuldade em impor-se, a sobrevivência das artes africanas dependerá sobretudo da capacidade de leitura e de interpretação dos actores culturais face aos constrangimentos. Estes constrangimentos resumem-se a acções de reposicionamento e de reformulação.

Se há uma coisa que surgiu com a globalização e que suscita muito interesse, é exactamente a importância atribuída às alianças. Estas alianças são formas de construção estratégica. O exemplo disso é a Francofonia que, com os seus 200 milhões3, se tornou hoje um espaço cultural com uma grande diversidade. A Francofonia é um espaço de ficções que permite aos artistas disporem de fontes de inspiração que franqueiam limites territoriais das nossas pequenas nações. A construção de alianças entre criadores é um mecanismo que comporta várias dimensões: além da diversidade das fontes de inspiração indispensável para a criação, abre o caminho a uma visibilidade, muito interessante, embora haja quem veja nisso uma forma de perpetuação das mesmas relações de dominadores para dominados. Quanto a nós, encorajamos vivamente esta ideia. E que a ideia não se limite apenas ao espaço francófono; ela devia inclusivamente estender-se a outras zonas culturais. Por razões ligadas à história e à cultura, a América Latina pode constituir uma zona de intercâmbios entre os artistas originários dos dois continentes. Efectivamente, uma geminação da Bienal de Dakar com a de São Paulo pode significar um factor determinante para a construção de um pólo cultural e artístico entre África e a América Latina.

A ideia de uma aliança ou de uma cooperação entre África e a América no domínio da cultura não é, verdadeiramente, nova. Basta recuar no tempo para encontrar precedentes que surgiram no contexto das lutas de libertação e de emancipação dos povos negros. Recorde-se, por exemplo, l’Étudiant Noir, uma revista corporativa e de combate e que visava o fim do tribalismo, do sistema de clã em vigor no Quartier Latin! Deixava de se ser um estudante martiniquês, guadalupense, africano, malgache para se ser apenas um e mesmo estudante negro. Acabar com o isolamento. Acontecimentos como a primeira conferência dos escritores negros, seguida da segunda que se realizou em Roma em 1959 acabaram por dar uma forma mais precisa a este projecto4. A partir daí, a luta pela libertação e a emancipação dos africanos e dos negros americanos, nascida do tráfico dos escravos e da colonização, tomava um cambiante racial que, em princípio, diria respeito a todos os negros independentemente da sua pertença geográfica. É verdade que é necessário matizar e que nem sempre se tratava de uma união sagrada entre os africanos francófonos e os seus irmãos anglófonos: Com efeito, nunca faltava uma ocasião para um dos protagonistas revelar as suas divergências. Apesar desta situação que, por momentos, tomava aspectos de uma rivalidade entre fortes personalidades como a que opunha o poeta e académico senegalês, Leopold Sédar Senghor, defensor da Negritude, ao dramaturgo nigeriano e laureado do prémio Nobel da Literatura, Wole Soyinka, teórico da African Personality, deve reconhecer-se, no entanto, que para nenhum havia dúvidas sobre a ideia de uma opressão da raça. Ela não constituía em si um ponto de divergência, a limite tratar-se-ia de diferenças quanto às abordagens. O que mostra que se está, efectivamente, em presença de uma estratégia de construção de uma aliança cuja principal cavilha de ligação é a raça. Se é verdade que esta aliança federou negros de horizontes diversos dando, assim, uma dimensão épica às suas lutas sobre temas tão variados como a emancipação, a liberdade e o respeito pelas culturas negras, dever-se-ia, em contrapartida, reflectir sobre a viabilidade de um tal cenário hoje em dia.

Devemos reconstituir o mesmo esquema ou procurar dar-lhe uma nova forma? Desde logo se põe uma questão que nos remete para as condições actuais de uma nova aliança entre africanos e latino-americanos: que lugar deverá ser atribuído à raça numa época em que os especialistas são muito críticos quanto a esta noção? Alejandro Frigerio e Livio Sansone crêem que a relação entre cultura, identidade e raça nem sempre é tão simples como se tende fazer crer. Isto quer dizer que uma aliança que se faça numa base racial arrastará sem dúvida uma grande falha, a de ser demasiado redutora e, consequentemente, sem grande alcance prospectivo. Criar uma aliança com a América do Sul que tenha como objectivo a edificação de laços entre os artistas e as instituições - Bienais dos dois continentes, obriga-nos a estar atentos às evoluções do mundo. É preciso construir novas perspectivas que remetam para uma visão mais dinâmica.

De facto, num continente como a América do Sul em que a cultura afro atravessa as “barreiras étnicas”, é pena que uma aliança, sob qualquer forma – entre os artistas ou entre as instituições-Bienais – seja exclusivamente orientada para a comunidade negra.

Dak’Art deve alargar o seu público e, entre uma variedade de possibilidades, existe a opção de uma aliança cultural e artística com a América do Sul. Esta opção inscreve-se num procedimento que visa articular a Bienal de Dakar e as artes contemporâneas africanas num contexto global.

A criação de um pólo artístico e cultural desta dimensão inscreve-se, sem dúvida, numa abordagem prospectiva cuja aposta é conseguir desbloquear e alargar a esfera de produção e de visibilidade das artes contemporâneas africanas.

É verdade que as pressões externas por si só não bastam, porque é preciso analisar também pressões internas (a constituição de um campo artístico) para se ter uma ideia mais exacta do ambiente das artes contemporâneas africanas e da Dak’Art, mas o seu domínio constitui sem dúvida um avanço significativo.

 

artigo originalmente publicado no Africultures.

  • 1. Biennale des lettres et des Arts de Dakar
  • 2. uma estratégia de entrar e de sair da globalização
  • 3. Alliance Francaise de Buenos Aires, mars 2010
  • 4. Lilyan Kesteloot, Anthologie negro-africaine: panorama critique des prosateurs, poetes et dramaturges noirs du XX siecle Marabout.
Translation:  Maria José Cartaxo

por Boubacar Traoré
A ler | 12 Agosto 2010 | arte africana contemporânea, Dak'art, globalização, identidade