Mimese, Performance e Colorismo

A mimese ”vem do verbo grego mimeisthai, «imitar», e designa com efeito a imitação da realidade, isto é, o mecanismo recorrente segundo o qual a ficção artística se estrutura há mais de dois milénios”, explicam Mireille Losco e Catherine Naugrette1. No meu entender, além da ficção artística, a própria realidade ancora-se desde sempre neste mecanismo. 

O teórico e ensaísta brasileiro Edélcio Mostaço, por exemplo, constata que o ser humano passa a vida inteira a fazer coisas como pescar, ler, plantar, ou a desempenhar funções tais como ser mãe, estudante ou então presidente, sem ter a real ideia de que tudo isso está ligado ao conceito de performance2

“Noção atual, embora derivada de um antigo verbo inglês, passou a maior parte do tempo despercebida enquanto tal, provavelmente em função da quase naturalidade que infunde: fazer ou desempenhar são hábitos tão entranhados no dia a dia que dificilmente nos damos conta de como os realizamos, segundo quais perspectivas e seguindo que modelos”, acrescenta Mostaço. 

Ou seja, estamos tão habituados a realizar coisas que já não nos apercebemos dos processos que levam a essa realização. No entanto, quem exerce uma parentalidade presente, por exemplo, tende a ser recordado com mais frequência disso. É comum notar nas crianças uma tendência para reproduzir o comportamento dos adultos, como modo de criar os seus próprios processos. 

Aliás, quando as crianças são bem pequenas, somos nós, adultos, que incentivamos essa imitação, como forma de passar conhecimento. Sentamo-los como nós nos sentamos, falamos com eles ainda que não entendam e, quando passam a consumir sólidos em vez de líquidos, exageramos nos sons e gestos enquanto fingimos (mimese) que estamos a comer, para que eles possam repetir o gesto em tamanho menor. 

Em momentos de interação com a minha filha, é comum acontecerem instantes de abstração mental, onde questiono alguma resposta ou comportamento. Na maior parte do tempo, que chego à conclusão que ela está a emular alguma resposta ou comportamento que viu nos adultos que a rodeiam. 

O ser humano aprende naturalmente através de exemplos que observa e posteriormente imita. Todos os exemplos, os bons e os maus. Como diria Nelson Mandela, “ninguém nasce a odiar outra pessoa pela cor de sua pele, ou pelo seu passado, ou pela sua religião. As pessoas aprendem a odiar”

É assim que entendo a questão do colorismo, como um comportamento aprendido do racismo e implementado também nas e pelas comunidades não caucasianas, uma herança direta do colonialismo. Uma ideologia que parte da falsa premissa de que há uma raça superior e de que, quanto mais próximo a essa raça, melhor será para a pessoa. 

A pesquisadora Alessandra Devulsky define o colorismo como “o braço articulado, o braço tecnológico do racismo e, assim como o racismo, tem nuances na forma como se desenvolve, de acordo com a sociedade, a cultura à qual adere, na qual é construído.”3 

“Então, o colorismo é, basicamente, um conceito, uma categoria, uma prática, mas sobretudo uma ideologia na qual hierarquizamos as pessoas negras de acordo com o fenótipo que têm: aproximado ou distanciado da africanidade, próximo ou distante da europeidade”, adiciona a também advogada. 

Segundo as pesquisadoras Clara Maiana Neves da Conceição, Perla de Souza Leite, Raira Vieira da Cruz e Caroline Ramos do Carmo, “O termo colorismo foi usado pela primeira vez pela escritora estadunidense Alice Walker (1983) no ensaio “If the Present Looks Like the Past, What Does the Future Look Like?”, que foi publicado no livro “In Search of Our Mothers’ Garden” em1983”4

As pesquisadoras explicam que “a autora aborda aspectos que tocam o cotidiano de mulheres negras, inclusive os traços que as afirmam como mais ou menos negras em algumas realidades, como nos Estados Unidos, mas que pode aplicar-se na realidade brasileira”, na portuguesa, na angolana, cabo-verdiana e são-tomense. 

Sociedades que conheceram de perto o processo de colonização, seja usufruindo, seja sofrendo com ele, interiorizaram muito profundamente os preceitos do racismo e, quando não fosse possível aplicá-lo plenamente, acabaram por encontrar formas de o reproduzir noutras circunstâncias. 

O processo de miscigenação, iniciado de forma violenta, com os colonizadores a violarem as pessoas escravizadas, acabou por acrescentar mais variedade ao já vasto leque de tons da pele negra. E o colonizador viu nisso mais uma oportunidade para “dividir e reinar”. 

Aprofundando ainda mais tensões já existentes entre povos que muitas vezes tinham sido inimigas e que agora eram obrigadas a conviver como compatriotas em territórios forçados sobre eles por forças externas, os colonizadores passaram a dar melhor tratamento aos que fossem “assimilados” e, melhor ainda, aos que fossem mais claros e tivessem traços “finos”. 

Assim, num processo de mimese em relação aos conceitos que premeiam a ideologia do racismo, surge a ideologia do colorismo na qual qual, quanto mais claro e com traços mais finos o negro for, mais facilmente ascende socialmente. Nunca chega ao lugar do branco, importa frisar, mas tem mais mobilidade na escala social. 

Claro que isso acentuou rivalidades e desembocou também no outro extremo do colorismo que é considerar pessoas mais claras menos negras que as pessoas mais escuras. Uma realidade bem patente no tempo colonial, o colorismo sobreviveu ao tempo e as suas mudanças e permanece vivo até aos dias que correm. 

Bridgerton, da Netflix Bridgerton, da Netflix

Há anos que venho presenciando casos, tanto no continente africano como no europeu e no americano, de crianças a serem proibidas e adultos a coibirem-se de apanhar sol para “não ficar muito escuro”. O objectivo é distanciarem-se o mais possível do tom escuro e aproximarem-se o quanto for possível do claro. 

Em Luanda por exemplo, era comum assistirmos ao colorismo em acção à entrada das discotecas e de grandes eventos. Brancos entravam de chinelos se quisesse, os miscigenados também tinham facilidade, embora conviesse estar um pouco melhor vestidos. Já os negros de pele mais escura tinham de ficar na fila por um bom tempo, mesmo que estivesse de fato e gravata. 

Houve uma altura em que se usava a expressão “vidas mulatas” para referir um estilo de vida mais sumptuoso, numa clara referência a preferência que os miscigenados tinham em relação aos mais escuros, dentro do sistema colonial e que acabava por se notar num maior poder aquisitivo. 

Na dramaturgia esse colorismo vê-se na forma como os personagens negros com mais destaque positivo são sempre interpretados por actores e actrizes de pele mais clara e os que têm um destaque mais negativo quase sempre têm a pele escura. Se tiverem espaço de todo. 

Mesmo projectos que almejam ser mais inclusivos e dar mais destaque à personagens negras parecem padecer deste mal. Lançada no fim de 2020, a série da Netflix Bridgerton foi apresentada como sendo um projecto inclusivo, que apostava num elenco com forte presença de actores e actrizes negros e trazia um actor negro para o papel de galã. 

Para quem vinha com as expectativas altas depois de assistir ao Pantera Negra5, um filme de grande produção de elenco maioritariamente negro, a série foi de certa forma uma decepção. 

Bridgerton é uma grande mostra do que é o colorismo e de como pode ser replicado por pessoas afectadas pelo racismo. 

Apesar de ter sido produzido pela Shondaland, uma empresa detida por uma mulher negra, o projecto parece não ter conseguido escapar a necessidade de escalar actores negros de pele mais clara e traços mais próximos aos europeus, para os papeis de destaque reservados aos negros e os mais escuros para os papeis mais vis. Assim os estereótipos voltaram a ser reforçados, o colorismo reproduzindo e imitando os conceitos e preceitos do racismo de que quanto mais claro melhor. 

Bibliografia 

SARRAZAC, Jean-Pierre, (org) Léxico do drama moderno e contemporâneo, Tradução: André Telles Cosac Naify, 2013 

MOSTAÇO, Edélcio, Incursões e excursões: a cena no regime estético, Teatro do Pequeno Gesto, 2018. 

CONCEIÇÃO, Clara Maiana Neves 

LEITE, Perla de Souza, CRUZ, Raira Vieira, CARMO, Caroline Ramos, A interseccionalidade e o feminismo negro: as diversas formas de segregações a partir do Colorismo, Universidade Católica do Salvador | Anais da 22a Semana de Mobilização Científica, 2019 

Frase Famosas de Nelson Mandela”, Jornal de Notícias, 06 de dezembro de 2013.

https://www.jn.pt/mundo/dossiers/especial-nelson-mandela/frases- famosa...

DE MARTIN, Roberto, “O colorismo é o braço articulado do racismo”, Carta Capital, 24 de Março de 2021.

https://www.cartacapital.com.br/entrevistas/o-colorismo-e-o-braco-articu...

  • 1. SARRAZAC, Jean-Pierre, (org) Léxico do drama moderno e contemporâneo Tradução: André Telles São Paulo: Cosac Naify, 2013
  • 2. MOSTAÇO, Edélcio Incursões e excursões: a cena no regime estético Teatro do Pequeno Gesto, 2018.
  • 3. https://www.cartacapital.com.br/entrevistas/o-colorismo-e-o-braco-articu....
  • 4. Universidade Católica do Salvador | Anais da 22a Semana de Mobilização Científica
  • 5. Black Panther, Director: Ryan Coogler, 2018.

por Aoaní d'Alva
A ler | 6 Fevereiro 2024 | Colorismo, Mimese, performance