Memória, diáspora e identidade: para uma espécie de in-betweenness na obra poética do tempo suspenso (1998) de Maria Alexandre Dáskalos

Como componente da chamada “geração das incertezas” (Kandjimbo, 2001) da literatura angolana, que engloba uma constelação poética distinta, incluindo nomes brilhantes como Paula Tavares, Ruy Duarte de Carvalho, Lopito Feijóo, etc., a voz poética de Maria Alexandre Dáskalos (1957-2021), embora relativamente menos destacada e analisada, contém uma sensibilidade exuberante, única e inovadora, que dialoga experimentalmente com vários elementos de diversas representações culturais, realizando uma contemplação reflexiva sobre os vários significados do tempo, do espaço, da história e da identidade. O pensamento da poeta angolana sobre as relações entrelaçadas entre o presente e o passado, entre a posição atual e a terra longínqua, e entre as diferentes referencialidades culturais e identitárias traduz-se em três tópicos fundamentais na sua obra Do Tempo Suspenso (1998): a memória, a diáspora e a identidade. Estas particularidades da poesia formam, no seu conjunto, um estilo de oscilação, movimento e pluralidade ou, em outras palavras, conforme Stuart Hall (1997), constituem um “play of difference within identity”. Tendo em conta o que foi referido, o presente artigo propõe uma leitura da obra Do Tempo Suspenso (1998) de Maria Alexandre Dáskalos a partir da perspetiva teórica do in-betweenness (Bhabha, 1994), com o objetivo de decifrar a construção dinâmica de uma determinada identidade africana na poesia, sempre enquadrada pelo contexto pós-colonial, pós-guerra e de diáspora, que não se pode desligar da posição peculiar do sujeito poético entre diferentes lugares de memória (Assmann, 2008), divergentes paisagens de humanidade e variadas terras geoculturais.

1. INTRODUÇÃO

Ao falar da chamada “geração das incertezas” (Kandjimbo, 2001) da literatura angolana, surge ao leitor à partida uma constelação poética distinta, incluindo nomes brilhantes como Paula Tavares, Ruy Duarte de Carvalho, Lopito Feijóo, entre outros. No entanto, a presença reduzida de poetas mulheres angolanas desta geração literária pós-independência, inclusive Maria Alexandre Dáskalos, em compilações e estudos académicos contrasta com a ampla documentação sobre poetas masculinos angolanos de diferentes períodos. A Iria Fernández Moscoso, em sua obra intitulada A posição das escritoras angolanas no campo da crítica académica lusófona (1975-2015), apresenta dados estatísticos detalhados que evidenciam esta disparidade. De acordo com a sua investigação (Moscoso, 2016, p. 40-42), apenas dois dicionários literários – Dicionário Temática do Lusofonia, de Fernando Cristovão (2005), e Dictionary of Literary Biography, de Rector e Vernan (2002) – lançam um agrupamento generalizado de nomes de mulheres dessa geração literária angolana como Paula Tavares, Lisa Castel, Amélia Dalomba e Maria Alexandre Dáskalos.

Nesse contexto, a voz poética de Maria Alexandre Dáskalos, embora relativamente menos destacada e analisada, contém uma sensibilidade exuberante, única e inovadora, que dialoga experimentalmente com vários elementos de diversas representações culturais, realizando uma contemplação reflexiva sobre os diferentes significados do tempo, do espaço, da história e da identidade. O pensamento da poeta angolana sobre as relações entrelaçadas entre o presente e o passado, entre a posição atual e a terra longínqua, e entre as diferentes referencialidades culturais e identitárias traduz-se em três tópicos fundamentais na sua obra Do Tempo Suspenso (1998): a memória, a diáspora e a identidade. Estas particularidades da poesia, no seu conjunto, formam um estilo de oscilação, movimento e pluralidade ou, por outras palavras, conforme Stuart Hall (1997), constituem um “play of difference within identity”. Ou seja, em sociedades profundamente marcadas por inumeráveis sofrimentos causados pelo deslocamento, escravatura e colonização, como Angola, já não existe um sistema binário e simplificado de representação. O que está constantemente a reconfigurar a identidade do povo que partilha estas histórias comuns são as diferenças que se recusam a ser categorizadas e que, de forma incessante e multiplicada, deslizem entre lugares do tempo, do espaço e da questão.

Levando em consideração seu caráter e focalizando esses três elementos, o presente artigo propõe uma leitura da obra Do Tempo Suspenso (1998) de Maria Alexandre Dáskalos a partir da perspetiva teórica do in-betweenness (Bhabha, 1994), com o objetivo de decifrar a construção dinâmica de uma determinada identidade africana na poesia, sempre enquadrada pelo contexto pós-colonial, pós-guerra e de diáspora, que não se pode desligar da posição peculiar do sujeito poético entre diferentes lugares de memória (Assmann, 2008), divergentes paisagens de humanidade e variadas terras geoculturais.

2. MEMÓRIA: O INDIVÍDUO E A GERAÇÃO, A NOSTALGIA E A GUERRA

Em sua célebre obra sobre memória cultural, Aleida Assmann (2011) recorre à metáfora da “orquestra”, cunhada pelo escritor italiano Italo Svevo (1967), para ilustrar a natureza polifónica, híbrida e vigorosa da memória em sua ressonância no presente. Essa metáfora evidencia como a memória pode ser ativada e modulada pela consciência subjetiva do indivíduo. Segundo Svevo, é justamente esse caráter orgânico da memória que fundamenta nossa perceção do passado, uma vez que:

[…] It wants these particular sounds, or those – and no others. That explains why the past may at times seems very long and at times very short. It thunders forth or murmurs pianissimo. The only part of it that is highlighted is the part of that has been summoned up to illumine, and to distract us from, the present; and it is then that one recalls pleasant memories and regrets more vividly than recent happenings. (Svevo, 1967, citado por Assmann, 2011, p. 8)

A memória apresenta-se, assim, como uma amálgama multidimensional cujas seções emergem em diferentes momentos, invocadas seletivamente pelos fluxos da consciência, inconsciência e subconsciência do sujeito (Nora, 1984). Por essa razão, as componentes dessa orquestra mnemônica podem manifestar-se de forma difusa ou até contraditória. Em sua análise sobre a polissemia e ambiguidade presentes no corpus da memória, a teórica alemã destaca os meios pelos quais a memória pode alcançar um desempenho performativo mais abrangente. Nesse contexto, ela atribui especial importância à criação literária, ressaltando que a literatura, como disciplina única, oferece constantemente múltiplas perspetivas que revelam e abordam as ambivalências e tensões inerentes à memória (Assmann, 2011).

Do mesmo modo, na poesia de Maria Alexandra Dáskalos, observa-se como seus textos aprofundam e desvendam as camadas da memória individual e coletiva, suscitando novas interrogações e interpretações sobre identidade e história. Tal perspetiva evidencia-se no poema:

Primeiro amor. Vivi aí.

Casa grande de janelas abertas

para o verde, chave do nosso coração.

Meninos do bom Deus com histórias diferentes

e o mesmo temor e esperança.

Tudo tinha muita cor

como as casas pintadas de fresco

e as ruas debaixo da sombra das árvores.

Dos jardins víamos os novos modelos dos carros

dos anos setenta.

Havia concertos para piano sem orquestra.

E, às vezes, mulheres, loiras muito loiras

cantavam músicas de nós desconhecidas.

Pousávamos para os fotógrafos,

moças virgens esperadas à saída das aulas

e ouvíamos «If you are going to San Francisco».

As fotografias dessa época estão em casa das tias

e os nossos olhos de terra ou de água ou de noite

não são o que eram: por isso, continuam os mesmos.

Ondulam as cortinas levemente

como a última brisa

para lá da sebe junto aos muros baixos

oiço o barulho das árvores

imensas e antigas

e lembra-me um andamento

das Fantasias de Schumann.

Primeiro amor. Vivi aí.

(Dáskalos, 1998, p. 11)

Maria Alexandre DáskalosMaria Alexandre Dáskalos 

Através da encenação de um quotidiano que é atravessado e urdido por símbolos visuais e sonoros, o poema tende a evidenciar a tangibilidade da memória do passado. Esta perceção mnemónica reflete-se em dispersos objetos, cores, imagens e cenas, que parecem não ter uma relação forte entre si, o que é, efetivamente, uma maneira relevante de modular a memória. Dietrich Harth (2008), em seu artigo sobre a memória cultural, utiliza a metáfora de “rede” para designar e interpretar o processo de constituição mnemónica. Conforme Harth (2008, p. 86), devido à sua abertura, flexibilidade e extensão, a “rede” é capaz de interligar ou desconectar seus “nós” sem perturbar ou destruir padrões cruciais que organizam o corpus da memória. Com efeito, ao entrelaçar de diferentes “nós” ou representações da memória, o poema de Maria Alexandre Dáskalos demonstra a maleabilidade da constituição mnemónica e, recorrendo à poeticidade desta “rede”, acaba por revelar a relação de afinidade e afetividade entre o eu lírico e um período do passado.

No poema, para além dos elementos mnemónicos, observa-se que características marcantes como a nostalgia e a harmonia são construídas pela fusão entre a visão individual e a memória cultural compartilhada por uma geração. Essa construção desenvolve-se a partir de uma transição do “primeiro amor” do eu lírico para as “histórias diferentes e o mesmo temor e esperança” de um “nós” coletivo. A memória geracional, que Jan Assmann define como “the connective structure of common knowledge and characteristics.” (Assmann, 2011, p. 3), manifesta-se no poema através de diversos símbolos, como os carros dos anos setenta e a canção “San Francisco (Be Sure to Wear Flowers in Your Hair)”. Composta pelo músico norte-americano John Phillips, da banda The Mamas and The Papas, em 1967, esta canção tornou-se um hino do movimento hippie, circulando globalmente nos anos 70 como símbolo de liberdade, harmonia e amor. Nesse período, a jovem poeta Maria Alexandre Dáskalos vivenciou o início da independência nacional e a reconstrução do estado angolano, passando a sua infância e uma parte da juventude em um contexto temporariamente ingénuo, até o desencadeamento da guerra civil.

Após essa experiência compartilhada e transitória da memória coletiva dos jovens angolanos daquela época, “os nossos olhos” transformam-se e “não são mais o que eram”. A melancolia nostálgica diante da irreversibilidade do passado intensifica-se sutilmente ao longo do poema, acompanhada pelo desvanecimento daquele “nós” coletivo e pelo retorno solitário do eu lírico no desfecho. Nesse contexto, evidenciam-se os processos de identificação, seleção e manifestação subjetivas do indivíduo em relação à memória coletiva, como já discutimos anteriormente ao abordar a consciência do sujeito e o papel da literatura na orquestra mnemónica. Aliás, as “Fantasias de Schumann” tornam-se, efetivamente, a síntese do eu lírico sobre a memória de seu primeiro amor, reiterando a subjetividade na perspetivação da memória e sua operacionalidade. Isso manifesta-se particularmente na relação ambígua entre a memória e a fantasia, considerando que “fantasiar implica não apenas evocar imagens anteriormente percebidas, mas também criar novas imagens tendo em vista o que já se viveu.” (Loureiro, 2015, p. 185).

É importante ressaltar que este é um dos raros poemas no livro Do Tempo Suspenso que retratam a memória de uma época relativamente pacífica. De facto, a maioria dos poemas tende a delinear os aspetos funestos e trágicos da realidade social, com ênfase particular na crueldade dos conflitos armados e no desamparo dos grupos vulneráveis nesse contexto. Esta particularidade pode ser observada nos dois poemas seguintes:

A noiva costurava com pontos de alquimia

o seu vestido branco

Chegou a guerra e jaz morto

o noivo.

Ela não pode levar

com o seu vestido feito de fumos e água

Vieram os soldados e levaram-na. (Dáskalos, 1998, p. 34)

 

Oiço exércitos do norte do sul e do leste

fantasmas lançando o manto das trevas

os rostos exilando-se de si mesmos.

Oiço os exércitos e todo e qualquer som abafarem

— Não ouves a chuva lá fora, a voz de uma mulher

o choro de uma criança?

Oiço os exércitos, oiço

os exércitos.

(Dáskalos, 1998, p. 32)

A fragilidade e a precariedade da condição de mulheres, representada pelo “vestido feito de fumos e água”, contrasta com a superioridade repressiva e avassaladora do contexto de guerra, simbolizada pelos “exércitos do norte do sul e do leste”. Este confronto entre a memória individual e a memória coletiva evidencia a resistência quase inviável da primeira, devido à tentativa de “qualquer som abafarem”. No entanto, a autora esforça-se para resgatar, desta ruína da narrativa mnemónica coletiva, os fragmentos da memória de inumeráveis indivíduos, através da interrogação “Não ouves a chuva lá fora, a voz de uma mulher / o choro de uma criança?”. Assim, os poemas de Maria Alexandre Dáskalos revelam uma relação assimétrica entre a memória individual e a coletiva, demonstrando a possibilidade e a urgência de questionar, refletir e redimir as vozes históricas silenciadas, marginalizadas e relegadas ao oblívio, como defende Walter Benjamin (1987).

A intenção de testemunhar e interrogar o “manto das trevas” da história de violência e terror manifesta-se de maneira evidente na escrita poética de Maria Alexandre Dáskalos, particularmente no seguinte poema, cujo impacto, num limite sensorial, surpreende ao combinar e condensar elementos aparentemente contraditórios como desespero e esperança, loucura e lucidez:

A quilha de madeira bate na pedra fria

navegamos para norte norte norte

e a tempestade abala o choro das crianças.

Antes de enlouquecer digo-vos

— a pátria já não é nossa

mas não será vossa.

(Dáskalos, 1998, p. 33)

A poesia de Maria Alexandre Dáskalos apresenta uma dualidade significativa: por um lado, suas particularidades formais herdam características da tradição poética angolana de gerações anteriores; por outro, a sua obra inova ao trazer uma perspetiva ainda pouco explorada na poesia angolana - a vivência das mulheres que experimentam ou sobrevivem ao absurdo da guerra. Esta perspetiva da mulher, amplamente presente em sua escrita poética, abre caminhos para reflexões sobre a experiência traumática individual no contexto da guerra prolongada em Angola. Como bem observou a poeta e historiadora angolana Ana Paula Tavares, trata-se de compreender “não a guerra em Angola, mas Angola na Guerra.” (Tavares, 2012, p. 94). Tal abordagem permite analisar tanto a memória e a narrativa fundamentadas nesta experiência quanto a relevância da mulher como sujeito e narradora deste processo histórico.

3. ESTADO DE IN-BETWEENNESS E UNHOMELINESS: A IDENTIDADE EM DIÁSPORA

Na perspetiva de Aleida Assmann, a violência coletiva, o trauma e o deslocamento forçado foram determinantes para a heterogeneidade da memória e para a produção explosiva da escrita, fenómenos que se intensificaram a partir de meados do século XX (Assmann, 2011, p. 9). Este fenómeno é particularmente evidente em países africanos como Angola, onde a questão da violência perpassa uma extensa trajetória cronológica, abrangendo o processo desumanizador da colonização, a luta pela independência e os conflitos armados internos. No caso específico de Angola, como observado, “a guerra é muita e estendida no tempo e múltipla e variada, e determina a mudança de todos os implicados.” (Tavares, 2012, p. 194).

Neste contexto, a constituição da memória é caracterizada por sua extensão, ambivalência e dimensão multifacetada, o que transforma significativamente os modos tradicionais de sensibilização e identificação, provocando novas formas não lineares de perceber e reconhecer a temporalidade através da reinterpretação das memórias coletiva e individual. Achille Mbembe, ao analisar especificamente essa nova sensibilidade temporal, propõe o termo emerging time, enraizado na experiência africana pós-colonial:

The present as experience of a time is precisely that moment when different forms of absence become mixed together: absence of those presences that are no longer so and that one remembers (the past), and absence of those others that are yet to come and are anticipated (the future). (…) I felt that what distinguishes the contemporary African experience is that this emerging time is appearing in a context—today—in which the future horizon is apparently closed, while the horizon of the past has apparently receded. (Mbembe, 2001, p. 16)

De acordo com Mbembe, esta temporalidade pós-colonial caracteriza-se pela miscigenação de diferentes formas de ausência e presença temporais. O passado, embora ultrapassado, permanece vivo na memória e lembrança, enquanto o futuro, ainda não materializado, já se faz presente em antecipação. Nesta suspensão temporal, como argumentou Homi Bhabha (1994), emerge uma temporalidade que transcende as normas e conceitos convencionais, devendo ser compreendida como uma novidade que não se insere na continuidade linear entre passado e presente, mas se localiza em um cruzamento contingente entre ambos – um espaço que ele denomina “in-between”. Segundo o teórico indiano-britânico, nesse espaço que integra passado e presente, permitindo ao sujeito histórico transitar entre ambos, o fundamental não é o anseio de retorno ao passado, mas sim a necessidade de o sujeito existir nesta contingência, reconhecendo a importância de ambas as dimensões temporais na construção identitária.

Na poesia de Maria Alexandre Dáskalos, o lugar de in-betweenness manifesta-se de formas múltiplas e complexas. Isso é particularmente evidente no poema a seguir, onde encontramos uma perturbação sensorial que opera em duas dimensões: por um lado, evoca a nostalgia do passado e, por outro, através de toques de sutileza e leveza e de símbolos modernizados, estabelece um contraste marcante com as incongruências do presente. Desta tensão surge uma nova perceção sobre a memória, a temporalidade e a condição do sujeito pós-colonial. Como sugere o próprio título do livro de poesia, o que se materializa não é nem o passado nem o presente, mas sim “o tempo suspenso”:

Suspenso o tempo

nos intervalos do jazz band ao vivo

no vídeo.

Ruas desertas e o prédio iluminado

depois da meia-noite.

Sem lugar a poesia cala e consente esse desamor.

Suaves milagres a recriam em datas marcadas.

Única dádiva possível suspirando o neón e as vitrines.

Um livro, um perfume, uma gravata

mas não nesta cidade distante da nostalgia

De outra época, de outro tempo, de outra gente.

(Dáskalos, 1998, p. 13)

Em outro poema de Maria Alexandre Dáskalos, observa-se, de forma implícita, uma manifestação do conceito de in-betweenness em sua dimensão espacial. Por meio da representação simbólica da fauna africana e do contraste entre dois espaços distintos, a poeta constrói uma metáfora de deslocamento tanto geográfico quanto psicológico. O ponto de partida dessa travessia é a terra africana, representada pela “cabra de leque”, que materializa a desconstrução do topos do in-betweenness – “as fronteiras de um outro lugar” – culminando na transmissão de “leves as tuas palavras”.

Cabra de leque

entre o deserto e o mar

ágil

nas fronteiras de um outro lugar,

assim nos chegaram

leves as tuas palavras.

(Dáskalos, 1998, p. 28)

Dessa forma, pode-se inferir que o in-betweenness no poema manifesta-se como um processo de deslocamento contínuo através de margens e delimitações em múltiplos níveis, tendo como propósito fundamental a transmissão da palavra, ou seja, da língua. Sobre essa perspetiva, Homi Bhabha elucidou a natureza desse movimento in-between ao afirmar que: “It is in this sense that the boundary becomes the place from which something begins its presencing in a movement not dissimilar to the ambulant, ambivalent articulation of the beyond […].” (Bhabha, 1994, p. 5).

Na poesia de Dáskalos, seja através da memória polifônica ou do conceito de in-betweenness, evidencia-se que o caráter in-between da experiência africana contemporânea está intrinsecamente ligado às particularidades do deslocamento transcontinental e transcultural do período pós-colonial e pós-guerra, tanto na dimensão individual quanto na coletiva. Nos dois poemas a seguir, identificamos diversas imagens poéticas que simbolizam o deslocamento, o afastamento e a diáspora. Metáforas como “navegação”, “aves sem ninho”, “caminhos da diáspora” e “rota das andorinhas” emergem repetidamente para enfatizar a temática diaspórica, sublinhando a impossibilidade do retorno. Este cenário caracteriza a condição de unhomeliness, como teorizada por Bhabha, na qual o indivíduo se vê compelido a um movimento perpétuo em múltiplas direções devido a circunstâncias histórias e sociopolíticas, de tal modo que “the personal-is-the political; the world-in-the-home.” (Bhabha, 1994, p. 11).

Por que te tiraram mil luas

E o silêncio do fogo de cacimbo?

Ave sem ninho não deram tempo

à tua mãe de te ensinar a voar.

Por que é que te arrancaram a terra

do teu coração pequenino?

(Dáskalos, 1998, p. 21)

 

Os caminhos da diáspora

levaram-no para longe de casa

por muito tempo.

Com histórias da história

erigiu paredes

e

as janelas são as nossas madrugadas.

(“Sapalalo”, Dáskalos, 1998, p. 30)

A condição de unhomeliness mantém, indubitavelmente, conexões profundas com a experiência traumática. A coerência da poesia de M. A. Dáskalos manifesta-se justamente em sua análise meticulosa da relação entre a melancolia do passado e a inevitabilidade do deslocamento, bem como em sua capacidade de contextualizar essa trajetória pessoal no panorama sócio histórico. Dessa forma, a poeta articula de maneira precisa a experiência traumática individual com a macro narrativa histórica, como evidenciado no final do poema “Sapalalo” – “Com histórias da história /erigiu paredes / e / as janelas são as nossas madrugadas.” (Dáskalos, 1998, p. 30). Esta perspetiva encontra o seu respaldo teórico nas palavras de Homi Bhabha:

The unhomely moment relates the traumatic ambivalences of a personal, psychic history to the wider disjunctions of political existence. […] Such forms of social and psychic existence can best be represented in that tenuous survival of literary language itself, which allows memory to speak. (Bhabha, 1994, p. 11)

Como analisámos anteriormente, nos poemas de Maria Alexandre Dáskalos, os estados de in-betweenness e de unhomeliness convergem para realçar a urgência das palavras e histórias a serem contadas e trocadas. Com efeito, as conexões entre língua, identidade e diáspora constituem uma temática central em sua poesia. A poeta busca delinear, no poema a seguir, a condição de isolamento, ininteligibilidade e insurgência da comunidade diaspórica, começando pela sua língua misteriosa que circula e se compreende apenas em seu interior. Em contraste com a realidade domável e conformista daqueles que não pertencem ao grupo diaspórico, a poeta pretende criar um espanto – ou melhor, uma exaltação – sobre a insubmissão da memória, história e língua de proveniência antiga, ainda que marginalizadas. O que se pode vislumbrar é, mais uma vez, um cruzamento in-between, onde a identidade em movimento e todos os elementos de sua memória cultural estão profundamente ligados à diáspora e às suas características distintivas, tais como a dificuldade de inclusão na chamada cultura dominante e a complexidade de seu corpus memorial.

Os ciganos conhecem-se e falam entre si

uma língua quase desaparecida.

Enquanto outros adormecem embalados pelo

conformismo

eles trocam sinais de uma magia que sobreviverá

à diáspora

e tecem uma longa teia para lá dos continentes.

(Dáskalos, 1998, p. 31)

Neste espaço-tempo caracterizado por uma vasta intersecção de diferentes histórias e memórias, ao responder à sua própria invocação “Poeta, somos filhos da diáspora” (Dáskalos, 1998, p. 23), a poeta angolana, através do verso “E agora só me restam os poetas gregos” (Dáskalos, 1998, p. 25), busca fazer-nos compreender o âmago in-between de sua referencialidade histórica, cultural e identitária. Esta referencialidade, tão contraditória em suas inúmeras conotações, não pode ser julgada apenas pelo binarismo das diferenças, devendo ser considerada como “a deeper historical displacement” (Bhabha, 1994, p. 13).

Neste percurso de deslocamento e descontinuidade em variados sentidos – entre a terra de origem e o lugar distante, a guerra e a paz, a memória e a presença – a poeta testemunha e registra, por um lado, o trauma indelével da violência: “o relâmpago desfez o sonho / como a raiz ficou nua na terra seca. / Uma palavra matou a onça e a zebra.” (Dáskalos, 1998, p. 35); por outro lado, reconhece, com profunda lucidez, a condição de contradição, negação e exclusão, precisamente devido à identidade diaspórica: “no labirinto que negou os meus passos / vi tesouros que não eram meus.” (Dáskalos, 1998, p. 19).

Entretanto, Maria Alexandre Dáskalos, em seus poemas, não deixa de afirmar a sua posição in-between e busca aproveitá-la para conceber sua própria narrativa. Em vez de ressaltar a angolanidade condensada, que existe amplamente nas gerações literárias angolanas dos anos 50 e 70, a poeta desconstrói o sentido de identidade e tenta redefini-la num lugar de transição, tal como o teórico jamaicano Stuart Hall esclareceu: “Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar.” (Hall, 2003, p. 44).

4. CONCLUSÃO

A memória individual e coletiva, o tempo passado e presente, bem como a identidade histórica e cultural, ao longo do percurso da diáspora, são vislumbrados e entrelaçados na poesia de Maria Alexandre Dáskalos. Estas interseções não apontam para um juízo absoluto ou para uma categorização fixa, mas visam engendrar novas observações, reflexões e questionamentos, estabelecendo ligações e interligações entre diferentes facetas da vivência que é condicionada, inevitavelmente em nosso tempo, pelo estado de in-betweenness.

Homi Bhabha, ao discorrer sobre os significados da descoberta, do reconhecimento e da aplicação desse estado in-between nas artes, apontou: “When historical visibility has faded, when the present tense of testimony loses its power to arrest, then the displacements of memory and the indirections of art offer us the image of our psychic survival.” (Bhabha, 1994, p. 18). Podemos concluir que a poesia de Maria Alexandre Dáskalos, através de uma linguagem de inegável valor estético, constrói uma voz literária que evidencia a multiplicidade e a diferenciação das memórias e identidades referentes à história e à sociedade angolanas. No que diz respeito à questão da canonização da história da literatura angolana, particularmente ao nível dos géneros textuais e da autoria, a poesia de Maria Alexandre Dáskalos contribui para uma reflexão mais ampla sobre a presença, reavaliação e empoderamento das poetas mulheres angolanas.

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Artigo publicado originamente aqui.

por Peilin Yu
A ler | 30 Abril 2025 | diáspora, identidade, literatura angolana, Maria Alexandre Dáskalos, memória