Manifesto-Haraway PREFÁCIO

Um Manifesto Ciborgue foi publicado em 1985. Caiu como um meteoro na academia e nas suas divisões normalizadoras do saber, academia essa que parecia impreparada para o acto de mistura que articulava carne e máquinas, capital e dominação, informática e ligações. Estávamos diante de frases cortantes, que não tinham nenhuma disciplina que as justificasse e as acolhesse. Algo de profundamente novo vinha a caminho nessa escrita fulgurante, que continua o seu percurso agora em português, mas também noutras frases que prolongam o manifesto, que originam outro novo, ou talvez correspondam ao devir-manifesto de Donna J. Haraway1.

A escrita deste manifesto é intensamente política, e podia mesmo dizer-se que, pela mera declaração, a escrita se torna política. Houve sempre um lugar especial para esse tipo de escrita, como a tábua dos Dez Mandamentos de Moisés, as 95 Teses ou Disputação do Doutor Martinho Lutero sobre o Poder e Eficácia das Indulgências ou, na Idade Média, as proclamações do soberano sobre o estado de coisas, em que declarar equivalia a mobilizar o real por um comando. Esse carácter combativo da declaração torna-se dominante na modernidade, seja a política do Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx, ou a estética do Manifesto Futurista, de Filippo Tommaso Marinetti, caracterizado pela «violência e precisão». Além da mania enumeradora, das frases a compasso, é essencial a força da frase, o seu carácter disseminativo, a sua inscrição no real.

A força do manifesto está no seu poder de iniciar. Depois começa sempre o trabalho de inscrição no real, em busca de realizar-se. A nitidez da frase perde-se, o manifesto torna-se programa. Nada disso sucede com Donna J. Haraway. Quando ganha vida escapando aos textos ou originando outros, revela-se toda a sua potência generativa e metamórfica. A frase é real e não procura realizar-se, pois ela é a sua própria realização. As frases originam novas frases, mantendo em aberto o manifesto, que se relança uma e outra vez, num segundo, como é o caso d’O Manifesto das Espécies de Companhia (2006), para não referir as frases que se disseminam em torno da entrada da Terra na época do Chthuluceno, e que tem ocupado na actualidade o pensamento de Haraway. Tudo isto vai perpassando em frases inesquecíveis e marcantes, sobre as quais retorna uma e outra vez em conversa com Cary Wolfe: «Antes queria ser ciborgue do que deusa», ou «Composting is so hot!» que resume a crescente prioridade das ligações, ou «make kins not babies», máxima para outra política da Terra (Haraway, 2016).

Os dois manifestos agora traduzidos e publicados pela Orfeu Negro são o registo de um certo devir-manifesto de Haraway. O pensamento de Haraway, sendo altamente coerente, é também decidido e sem subterfúgios – isso faz parte do estilo dos manifestos –, mas com modulações inesperadas de sensibilidade, com diferenças de acentuação, com deslocações mínimas, mas significativas. Como passar da «informática da dominação», com os ciborgues, para as espécies de companhia, como os cães? Com saudável ironia, Haraway ataca as análises de Gilles Deleuze, que, para defender o animal selvagem e em matilha, atacam «a senhora com o seu cão» (Gane, 2006). Mas o que tudo liga na escrita feita carne de Haraway – e para ela «o sinal e a carne são um só» (p. 137) –, ou na carnalidade da escrita de Haraway, é a prioridade absoluta da relação ou da ligação, essa «unidade mínima de análise» (p. 144), à concreticidade do espaço a habitar, linhas que o atravessam e que ligam o passeio com o cão à criação lucrativa desta espécie, mas também aos matadouros globais e às histórias do capitalismo, mas que não determinam absolutamente esse espaço, que resiste, é ambivalente, absolutamente singular.

Para apreender o devir-manifesto de Haraway, associarei algumas das teses essenciais dos dois manifestos, de modo a deixar ressaltar alguns traços essenciais com que Haraway nos confronta.

1. Essa é a razão por que a política ciborgue insiste no ruído e defende a poluição, rejubilando com as fusões ilegítimas de animal e máquina. São estas as ligações que tornam Homem e Mulher tão problemáticos, subvertendo a estrutura do desejo, a força imaginada para gerar a língua e o género e assim subverter a cultura e os modos de reprodução da identidade «ocidental», da Natureza e da cultura, do espelho e do olho, do escravo e do senhor […]. [p. 82]

Como é evidente, essa política não programática evita as purezas identitárias para insistir nas ligações. Toda a cristalização conceptual, todo o fetichismo das categorias são assim afastados. Trata-se de uma luta contra a arché, uma an-archeo-política, a qual depende de uma «imagem» essencial, a do «mito do ciborgue». Para isso, é preciso inverter o que é dominante, apropriando-se dos instrumentos que produzem as estabilizações do viver, como as do género, da raça e muitas outras. É certo que, n’Um Manifesto Ciborgue, paradoxalmente, havia uma certa tendência para «ontologizar» palavras como informática, capitalismo, feminismo, ou mesmo ciborgue, para seguidamente as cindir de forma a poder sustentar uma política oposta à da «informática da dominação». Divergia-se a partir de uma linha divisória, em boa medida utópica.

N’O Manifesto das Espécies de Companhia, a situação torna-se mais plástica; tudo depende de inúmeras composições livres, embora seja certo que existem linhas entrelaçadas rígidas e persistentes:

O meu intuito é simples: conhecer e viver com estes cães significa herdar todas as condições que os tornaram possíveis, tudo o que torna real a relação com estes seres, todas as preensões que constituem as espécies de companhia. Amar significa estar aberto ao mundo, estar, a muitos níveis, em ligação com a alteridade e com outras realidades igualmente significativas em estratos locais e globais, e em redes de ramificações. [p. 208]

Progressivamente, Haraway foi construindo uma estratégia que evita as armadilhas das teorias e a prisão no contexto local. Mesmo um ser aparentemente simples como um cão é atravessado pela biologia e pela biotecnologia, pelas linhas globais do lucro, mas também pelo amor e pelo cuidar, tudo vindo juntamente. Por este cão passam demasiadas coisas. É preciso saber contá-las, e a arte de contar estórias é vital para a escrita magnífica de Haraway.

A nova frase estratégia «Composting is so hot!» (Haraway, 2016) corresponde a uma intensificação da potência relacional a que Um Manifesto Ciborgue já apelava. Trata-se de uma mudança sensível que, sem alterar a política do ciborgue, lhe acrescenta algo de novo, a singularidade implicada em todo o acto de reunir e de juntar; na verdade, como disse Stéphane Mallarmé, fim do sujeito e dos seus programas, aparecimento da simples «aptidão que tem o Universo Espiritual de se ver e se desenvolver», iluminando a vida. As composições de Haraway centram-se no género, na raça ou, hoje, na extinção. É essa a sua matéria. Mas o decisivo é o método, e não a matéria. A sua tese, levada ao extremo, quase impediria um critério de exclusão de outras composições. É do seu efeito que provém a diferença e a possibilidade de anular ou deixar de lado, ou de não fazer. Não se pode compor com parte da matéria, ou da vida, e abolir apenas teoricamente as outras partes, ou então excluí-las simplesmente por nojo. As composições ocorrem com tudo e sobre tudo o que está presente. Toda a matéria lhes serve. A leveza das composições feitas daquilo e daqueles com que vivemos e habitamos não superam por si a rigidez da lei, da propriedade, do construído, da «Natureza», que não são o contrário da composição, mas o seu limite. Isso expressa-se politicamente na relação com o Estado e com a democracia, não os deixando intocados pela mera mudança de perspectiva. O anarquismo bem temperado usa como matéria tudo o que está materialmente plasmado e que afecta a vida. O que conta é a potência dos actos, das ligações, a maneira como se agregam e ganham corpo, bifurcando a vida. Elas não estão decididas à partida, decidem-se à chegada.

2. [A]ceitar a responsabilidade das relações sociais da ciência e da tecnologia significa recusar uma metafísica anticiência, uma demonologia da tecnologia, o que significa abraçar a minuciosa tarefa de reconstruir os limites da vida quotidiana em relação parcial com outras e em comunicação com todas as nossas partes. Não se trata apenas de reconhecer que a ciência e a tecnologia são vias possíveis para obter grande satisfação humana e também matriz de complexas dominações. [p. 93]

Impressionou a maneira decidida como o ciborgue e a técnica eram afirmados, atacando o «determinismo tecnológico» e a recusa da ciência, o grande óbice de todo o romantismo. Embora este elemento não tenha desaparecido, é certo que a técnica foi perdendo algum fulgor, foi-se apagando em proveito do «animal» e do «ctónico», de outras afinidades e parentescos – o que faz do ciborgue uma composição entre outras, e já não a composição principal, ou decisiva.

Esta deslocação de ênfase, pois é disso que se trata, parece resultar do reconhecimento de duas limitações. A primeira é a ideia de que a informática da dominação culmina o momento pós-moderno, superando assim a representação e o racionalismo modernos. O acto político por excelência implicava uma apropriação ou suspensão dos efeitos destruidores de tal dominação, sendo esse o efeito do novo «mito» do ciborgue. A estratégia baseava-se na declinação do modo dominante da informação. A segunda dificuldade está em que essa apropriação ainda mantinha um estranho dualismo, bem presente na famosa tabela d’Um Manifesto Ciborgue, a da hierarquia e das suas propriedades contra a informática da dominação e seus atributos. Trata-se de explorar outras possibilidades suspendendo as combinações mais perigosas, ligadas ao automatismo, ao capital, à guerra, etc. Ou seja, das «[t]ransições das velhas dominações hierárquicas confortáveis para as novas e assustadoras redes da informática da dominação» (p. 52). Na verdade, o ciborgue já era sinal dessa opção binária, que devia superar por um novo acoplamento. Estaria em confronto o ciborgue industrial-militar versus o feminista e socialista.

A posição da autora n’O Manifesto das Espécies de Companhia é mais pluralista e aberta, mas a questão da técnica e das máquinas é inscrita na coreografia das espécies de companhia. Assume particular importância a quase categoria de «naturoculturas»: «Carne e significante, corpos e palavras, narrativas e mundos: todos estão unidos nas naturoculturas» (p. 141). Haraway afasta-se assim da metafísica do «ser», que é incapaz de ver a relação entre physis e nomos, entre Natureza e história. As naturoculturas são esse entretecer das materialidades com as formas, ou do signo com a carne, criando concreções singulares.

É certo que as máquinas merecem o mesmo respeito que os animais ou os humanos. Elas constituem também uma «naturocultura». Mas tudo indica que as máquinas revelam que a técnica é algo da ordem do entre-dois – algo entre a physis e o nomos, a «história». Era essa já a tese de Walter Benjamin e de Gilbert Simondon, e é bem importante, sob pena de uma ilusão de domínio da «Natureza», essa vaga imagem, que nos deixa sempre impreparados para aquilo que domina. O que tudo excede é a «técnica da Natureza», a sua produtividade geral, que se expressa em produtos de todo o género sem a conseguirem esgotar. De entre estes, são essenciais as máquinas de todo o tipo que foram extraídas da physis e que sustentam a produtividade geral da história, constituindo uma espécie de «segunda natureza», para usarmos uma formulação de Hegel.

Foi essencial a maneira como Um Manifesto Ciborgue acolheu as máquinas que entraram no mundo em catadupa, embora privilegiando a crescente autonomia das máquinas informáticas e inteligentes.

No entanto, além dessas máquinas existem inúmeras outras, bem mais simples, mas disseminantes, e é com elas que temos de nos compor. Como afirma Haraway:

Contudo, as refigurações de ciborgues dificilmente esgotam o trabalho apaixonado que é necessário para criar uma coreografia ontológica na tecnociência. Acabei por ver os ciborgues como irmãos mais novos na família muito maior e mais estranha das espécies de companhia, na qual a tecnobiopolítica reprodutiva é geralmente uma surpresa, por vezes até uma agradável surpresa. [p. 130]

Viver com os animais, os vizinhos, procurar as melhores formas de habitar, não obsta à necessidade de acolher as máquinas, sempre objecto de abuso e de um atávico menosprezo. A lição do ciborgue é que precisamos de uma imagem para as novas composições com as máquinas; só assim são possíveis as «aptidões» cósmicas onde algo de singular vem à vida. A lição dos animais de companhia é que os processos de entrelaçamento são infinitamente mais subtis e complexos. De qualquer modo, o processo é indecidido, depende das composições de composições, e essas dependem de arranjos sempre em aberto…

3. As velhas dominações do patriarcado capitalista branco parecem agora nostalgicamente inocentes, tendo normalizado, por exemplo, a heterogeneidade em homem e mulher, branco e negro. O «Capitalismo Avançado» e o pós-modernismo libertam a heterogeneidade sem norma, e nós somos niveladas, sem subjectividade, o que requer profundidade, mesmo que essa profundidade seja adversa e nela nos possamos afogar. [p. 96]

Sobre o tempo, ocorre outra deslocação sensível. De facto, n’Um Manifesto Ciborgue a «história» é recusada por constituir um «cosmo» produzido pelo ocidente e o seu produto supremo – o Homem (sic). Esse outro que deixou para trás, ou de lado, a antiga hierarquia é definido como «pós-moderno», ao estilo de um Fredric Jameson. Sendo heterogéneo, fragmentário, textual, esta «época» equivaleria a uma dissolução da história anterior e dos seus períodos.

Haraway vai progressivamente radicalizando esta tese, até suceder uma verdadeira transformação. De maneira sintomática, o pós-modernismo desvaneceu-se nestes últimos vinte anos, vítima das suas ambiguidades. Por um lado, por constituir uma época que abolia todas as épocas, e que por consequência teria de se abolir a si própria, sendo incapaz de o fazer por ser um espelho da história. Por outro, pelo facto de ser o resultado imediato de desconstruções da razão, e das suas denúncias do cálculo e da instrumentalidade, nas quais se verifica a afinidade das estratégias de Martin Heidegger e Theodor W. Adorno. Neste aspecto, confundindo modernidade e racionalismo, o pós-modernismo era uma forma sublimada do romantismo, repetindo todos os tiques, caso da ironia, do Witz, do fragmento, da sensibilidade, em suma, do simpoético, etc. As máquinas do século xix, como a fotografia, o gramofone e o cinema, tenderam a abolir essas diferenças, criando novas formas de associar máquinas e afecção, e abrindo um espaço de luta. Ora, como refere Benjamin, isso implica o «fim da história», que recede agora perante o Jetztzeit. Este termo pode ser traduzido como a «época» ou «tempo» do Agora, o momento em que o agora conta absolutamente, ganhando nova dignidade ontológica.

Deste ponto de vista, a modernidade é justamente o fim das épocas e da epocalidade, as quais caem todas no arquivo geral das matérias desorganizadas ou organizadas pelas suas monótonas histórias. Pela primeira vez, o olhar ganha uma nova limpidez, efeito dessa prioridade do presente, do instante, do actual. Apesar de sublinhar a dualidade existente entre moderno e pós-moderno, ao propor o seu mito do ciborgue Haraway tinha necessariamente de insistir no «agora». Trata-se de uma fórmula bem preferível às das banais teses do contemporâneo, e mesmo às variações que dele propõe Giorgio Agamben. Estamos diante de um elemento marcante do seu pensamento, bem atento às dificuldades desta viragem. No presente, trata-se de atingir a «ferocidade e a especificidade do agora», não como uma forma de tempo, sempre evanescente, mas de «espesso e fibroso agora» (thick and fibrous now) (Haraway, 2016), visando dar conta de uma certa densidade do instante, para o qual convergem e divergem os actos compositivos. Trata-se, mais do que densidade, de densificação.

No entanto, de um ponto de vista crítico, o seu espesso agora descreve bem a maneira pastosa e enleada do agora quando apanhado nos comandos do tempo. Uma aula, um agora pastoso, uma fábrica: oito horas tão enleadas no instante capturado que as deveria justificar ou romper. Contra esse enleamento, porém, o agora na sua espontaneidade absoluta, no irromper, que impede o pastoso de entrar num slow motion infindável, numa repetição incessante. O entrelaçamento que se confunde com o agora é onde tudo se joga coreograficamente «[n]uma dança interminável entre agências distribuídas e heterogéneas» (p. 149).

4. Numa determinada perspectiva, um mundo ciborgue tem que ver com a imposição final de uma grelha de controlo no planeta, com a abstracção final implícita numa Guerra das Estrelas apocalíptica travada em nome da defesa, a apropriação final dos corpos das mulheres numa orgia bélica masculinista (Sofia, 1984). Numa perspectiva diferente, um mundo ciborgue poderia ter que ver com as realidades sociais e corporais realmente vividas, um mundo onde as pessoas não tivessem medo da sua afinidade conjunta com animais e máquinas, nem da sua identidade permanentemente parcial ou de pontos de vista contraditórios. [p. 36]

A lógica das ligações e das composições e o «mito» que as funde parece implicar uma política das singularidades, a insistência em actos que obedecem à exigência de Arthur Rimbaud de uma «liberdade livre», expressando-se através de toda a matéria e de toda a semiótica, para usarmos a fórmula de Haraway. Esta tese tem algumas afinidades com as teses da assemblage, do agenciamento, propostas por Bruno Latour ou Deleuze, mas não depende de uma clivagem tão marcada como a pressuposta na tabela em que se fundam as duas perspectivas do ciborgue – até porque este se foi perdendo no meio de muitas outras associações, de outras distribuições e afinidades, como a dos animais, dos amigos, das forças ctónicas da terra, ou ainda dos fungos e dos vegetais, etc. Havia ainda um resquício de dualismo no ciborgue, que se foi esbatendo.

Se tudo se joga nas composições, nas junções, pois é impossível não compor embora se possa compor mal, isso sucede porque tudo assenta num fundo relacional, na infinidade das ligações, embora para ligar seja preciso desligar. Ora, estas não têm uma linha divisória bem estabelecida ou preestabelecida, anulando os dualismos «sistémicos na lógica e nas práticas de dominação de mulheres, pessoas racializadas, Natureza, trabalhadoras/es, animais» (p. 84). Mas escapar à lógica dos binarismos implica uma espécie de ecologia das práticas, que, por sua vez, implica uma certa desagregação de modo a combater o mais urgente, em vez de se perder o essencial na idealização política. É o caso da água, problema que tem de ser afrontado sem esperar pela resolução da crise climática, ou da adopção de cães, por exemplo, já que:

Adoptar um cão de abrigo requer muito trabalho, uma quantia razoável de dinheiro (embora não tanto quanto custa preparar os cães) e uma vontade de submissão a um aparelho governamental suficientemente forte para desencadear as alergias de qualquer foucauldiano ou libertário de base. Eu defendo esse aparelho – e muitos outros tipos de poder institucionalizado – para proteger classes de seres, incluido os cães. Também defendo com veemência a adopção de animais resgatados e provenientes de abrigos. [pp. 224-25]

Trata-se de separar, dividir, atacar os problemas partindo da sua urgência num espesso agora, coreograficamente envolvente.

Para os que encaram a luta como mera acumulação de poder ou energia, esta posição parece dificilmente sustentável. No entanto, conhece-se o desastre leninista de edificar uma linha de clivagem rígida e imutável, a das «classes», estabelecida de uma vez para todas, implicando tomar partido, ficar num lado ou no outro, tudo assombrado pela tragédia da traição, do mudar de lado. Trata-se de um jogo de tudo ou nada, que leva ao desastre. A aceitação do parcial, do efémero, acarreta que as clivagens são construídas pelo mero acto de produzir ou de compor; a composição da composição é aberta, tudo dependendo da qualidade das ligações, da força que possam adquirir, da densidade que constroem sobre a terra. Não há garantia absoluta para os actos livres. É o dividir, declinar, clivar que cria comunidades instáveis e efémeras que se amalgamam por afinidade. Não ecoa aqui o antigo polemos que Heráclito dizia governar sem violência todas as divisões, que as tornava visíveis e que tudo distribuía, partindo e repartindo? Não implica isso uma enorme confiança e afirmatividade, a base de toda a política pensável?

Lisboa, março de 2022

Bibliografia

Gane, Nicholas. 2006. «When We Have Never Been Human, What Is to Be Done? Interview with Donna Haraway». Theory Culture Society 23.

—. 2016. Manifestly Haraway. Mineápolis: University of Minnesota Press.

 

  • TÍTULO ORIGINAL A Cyborg Manifesto | The Companion Species Manifesto
  • TRADUÇÃO Ana Maria Chaves
  • PREFÁCIO José Bragança de Miranda
  • ILUSTRAÇÃO Dr. Urânio
  • ED ORFEU NEGRO 2022

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  • 1. Professora emérita de História da Consciência na Universidade de Santa Cruz, na Califórnia, e uma das mais reconhecidas investigadoras no cruzamento de ciência e tecnologia, zoologia e antropologia, estudos ambientais, estudos feministas, meios digitais e audiovisuais. Teórica proeminente, a sua produção académica é marcada pela diversidade e inovação, com incursões nas áreas da teoria política, da literatura, da filosofia e dos estudos de género. É autora de numerosas obras e ensaios pioneiros, dos quais se destacam Um Manifesto Ciborgue (1985), O Manifesto das Espécies de Companhia (2003) e Staying with the Trouble – Making Kin in the Chthulucene (2016).

por José A. Bragança de Miranda
A ler | 11 Abril 2022 | Donna Haraway, manifesto ciborgue, manifesto haraway, política