Lunda-norte, no reino do Muatyânvua

Quando Kundi, o sucessor de Iala Maku, envelheceu, a harmonia entre os povos lundas estremeceu. Quem seria o sucessor do velho Kundi? Um dos rapazes? – O Tchinguri ou o Tchinhama? - Ou a menina, Lweji, a mais jovem filha da segunda esposa? Dizem que os irmãos não se entendiam. Tchinguri era o mais afoito e Tchinhama o mais ponderado. Porém, numa tarde, os dois irmãos irromperam embriagados de vinho de palma pela tchota (palácio) do pai e maltrataram-no, ambos querendo sucedê-lo.  O velho, meio cego, no seu leito de morte, amaldiçoou-os e logo ali avisou que nenhum deles seria o seu sucessor. Chamou os macotas (anciãos) e informou da sua decisão de entregar o poder a Lweji, meia-irmã de Tchinguri e Tchinhama. Iria agora começar na Mussumba (povoação) o império Muatyânvua, constituído que foi o casamento de Lweji, a nova rainha lunda, com o caçador baluba Tchibinga Ilunga.

Várias são as versões contadas sobre este império. Embora todas elas interessantes, optamos pela versão do engenheiro Sá Vicente, no livro A Lunda, os diamantes e a Endiama. Das várias conversas que tivemos com alguns mais-velhos da Lunda-Norte, sem querer meter a foice em seara alheia, apelamos aos historiadores que nos deixem romancear mais uma vez esta maravilhosa epopeia.

Assim que o velho Kundi morreu, Lweji recebeu o lukano (pulseira feita com tendões humanos que simboliza o poder) e de imediato é conduzida à chefia dos Lundas. Lweji, digo a bela Lweji (Lua em português), já que se diz que era uma jovem de extraordinária beleza, mas também munida de muita inteligência, foi governando os Lundas com a prestimosa ajuda dos mais velhos, os macotas, até que…
Um belo dia, vindo do Leste, apareceu Tchibinda Ilunga, um caçador da etnia luba, também de sangue nobre, neto do fundador do segundo império luba, Mutondo Mukulo (árvore velha) que com as suas gentes desafiou os lundas caçando nos seus domínios. Tchibinda Ilunga (tchibinda significa caçador) não trazia mulheres no seu séquito. Somente o acompanhavam homens, caçadores e guerreiros, e ele era, para além de destemido, conhecedor da pólvora e da arma de fogo da altura – o canhangulo (arma de carregar pelo cano), que iria revolucionar para sempre aqueles povos, ao contrário dos lundas que ainda estavam no tempo da zagaia (arco e flecha), que embora conhecedores do ferro, ainda desconheciam a pólvora.

Lweji apaixonou-se de imediato pelo corajoso caçador com quem se casou, contra o que lhe era permitido, já que o seu povo praticava a endogamia, que a obrigava a contrair matrimónio unicamente dentro da sua tribo. Para agravar ainda mais a situação, entregou-lhe o lukano, a pulseira dos antepassados que representa o poder.
Tchinguri, o primogénito, e Tchinhama, já de si agastados com o casamento com o estrangeiro Ilunga, com a entrega do lukano viraram-se contra a irmã. Nada conseguiram, porém, já que o poder dos guerreiros lubas e dos canhangulos de Tchibinda suplantavam o arco e a flecha usados pelos lundas.

É Lweji, mais uma vez, quem sai a ganhar e expulsa os dois irmãos da tribo, embora se diga também que os próprios a terão abandonado de sua própria iniciativa, depois desta ter pedido a Tchibinda que lhes ensinasse os seus conhecimentos sobre a arma e a pólvora.

 Tchinguri, o mais agressivo, rumou para ocidente e estabelece-se às portas de Luanda, tendo sido recebido pelo governador português D. Manuel Pereira Forjaz, com quem fez aliança ajudando-o a combater os povos do interior, e de quem recebeu em troca o título de Jaga (Grande chefe) e também a oferta de terras na região de Ambaka e do Golungo Alto. Acabou, finalmente, por se estabelecer na Baixa do Cassanje, fundando o jagado dos bangalas.

Tchinhama, por sua vez, acompanhado da sua tia Anguina Cambamba e pelo chefe guerreiro Andumba Uá Tembué, subiram o rio Cuango até às suas cabeceiras onde se fixaram, formando as tribos kiokas ou tchokwes, que são os povos que, descontentes com o casamento de Lwéji com o caçador Luba Tchibinda Ilunga, se separaram dos lundas, seguindo o caminho dos desavindos irmãos. Entretanto, os vários Muatas que acompanharam Tchinhama e Andumba Uá Tembué foram-se separando para formarem estados independentes. Esta é uma versão contada na Lunda-Norte, que não obtém consenso naquelas paragens, já que os lubas, partidários de Tchibinda Ilunga, defendem o seu herói. Os lundas, que ficaram com Lweji e Tchibinda, defenderam a sua rainha, e os partidários de Tchinguri e Tchinhama terão certamente a sua versão sobre este caso, que remonta ao início do século XVII.

Entretanto, a Lunda não é só história, é detentora de colossais reservas de diamantes, descobertos em 1912 pelos prospectores da Forminiére, que encontraram sete diamantes no rio Musalala, um afluente do rio Chiumbue, próximo do que é hoje a cidade do Dundo. Em 1917, sob domínio português, criou-se a companhia Diamang, detentora do monopólio da extracção de diamantes e do comércio naquela região. Finalmente, em 1984, criou-se a Endiama, a companhia angolana que controla até agora a exploração dos diamantes angolanos.  

Com uma colossal superfície de 103.760 Km2, a Lunda-Norte possui apenas, segundo estimativas, 800 mil habitantes, que se dividem em vários grupos étnicos, como os cokwe, lunda, kakhongo ou bandinga, baluba, musuku, bondo bangala, khoji, khari, xinje matapa, bena may, kakhete e songo. Os lundas são exímios escultores e é da sua autoria a famosa estatueta do Samanyonga (pensador) e a de Tchibinda Ilunga, o famoso guerreiro-caçador que se casou com a Lwéji. Tchibinda é sempre representado com uma arma na mão, enquanto que Samanyonga se apresenta sentado de cócoras, agarrado à cabeça no acto de pensar.

A mulher não deixa de ser lembrada em escultura, sendo a máscara Mwana Pó uma peça de grande beleza e muito destacada pelos artistas tchokwé. A máscara é exibida normalmente por um bailarino vestido de mulher, para entretimento da sociedade, que imita as virtudes da mulher e os seus devaneios. 

Caçadores por natureza, os homens lunda-tchokwés não se dedicam à agricultura, que é uma tarefa somente atribuída às mulheres, enquanto os homens se dedicam, além da caça, ao artesanato, à arte ferreira e mesmo à pesca, abundante nos inúmeros rios que sulcam esta província.

A dança e a música são também muito comuns e fazem parte do dia-a-dia das festividades lunda-tchokwé. As danças mais vulgares, dançadas ao som de diversos batuques, xilofones e idiofones, são Akixi Cianda, Ulengo, Makopo, Cisela, Diximbi Kundula-Ve, Canga, etc. Como entretenimento, os mascarados actuam nas cerimónias de entronamento dos grandes chefes. Os Akixi e Cikuza dançam principalmente na cerimónia da Mukanda, referente à circuncisão masculina. Já a dança Cikungu é usada no acto de investidura dos grandes chefes tradicionais.

Hoje a Lunda-Norte tem a sua capital no Dundo, antiga sede da companhia de diamantes Diamang, e está prevista a construção de uma nova cidade, já que a estrutura colonial, que se situa no município do Chitato, compõe-se apenas de uma rua onde está situado o palácio, um hospital e algumas casas de comércio.

O Museu do Dundo

O emblemático Museu do Dundo foi criado em 1936, com a finalidade de estudar a área cultural, as populações lunda-tchokwe e os povos circunvizinhos, potenciais trabalhadores da antiga Diamang, a poderosa empresa de diamantes.
Com os trabalhos da sua implantação conduzidos pelo etnólogo José Redinha, a construção do edifício central do museu foi iniciada em 1942, tendo sido somente finalizada em 1948. Congrega áreas de etnografia, história natural, arqueologia e paleontologia. Possui 14 salas de exposição, sendo 12 permanentes, uma de folclore e outra de exposições temporárias. Com uma colecção etnográfica de cerca de 10 mil peças, já foi considerado um dos maiores a sul do Saara.

Estão publicados diversos trabalhos de pesquisa da região lunda-tchokwe, realizados por diversos investigadores de renome, como Luoise Bastin, Manuel Laranjeira, Henri Breuil e José Redinha.

Hoje o edifício do museu está completamente reabilitado, estando em curso a preparação das salas de exposição permanente, no sentido da sua breve reabertura ao público. A Lunda-Norte brilha novamente, como os diamantes que são extraídos das suas entranhas.

 

fotografias de Carlos Lousada

 

in AUSTRAL nº 69, artigo gentilmente cedido pela TAAG - Linhas Aéreas de Angola

por Carlos Lousada
A ler | 31 Outubro 2010 | diamang, Lunda-norte, Museu do Dundo