Epidemias em Moçambique durante os tempos coloniais

O colonialismo português no continente africano, ao longo do século XX, não foi uniforme. Tem sido costumeiro dividi-lo em dois grandes momentos, um primeiro com início na segunda metade do século XIX e vai até meados da década de 1940. Outro que começa nos anos 1940 e segue às independências africanas, em 1975. Uma diferença marcante entre o “colonialismo vespertino” e o “colonialismo tardio” pode ser percebida no modo como o Estado português lidou com o espaço africano e, consequentemente, com as populações que ocupavam esses territórios. Durante a primeira metade do século XX foi comum o loteamento de vastos territórios das ex-colônias para capitais privados. Esse é o exemplo das “companhias majestáticas” que existiram em Moçambique. Compostas por grandes conglomerados empresariais, com capitais mistos internacionais, foram-lhes concedidos poderes de Estado, como a possibilidade de cobrar impostos e explorar a mão-de-obra local. A Companhia de Moçambique, hoje nos atuais territórios de Maniça e Sofala, por exemplo, existiu entre 1891 e 1942. 

Esse é um caso interessante para pensarmos a relação do Estado Moçambicano atual com as grandes concessões de exploração das riquezas do solo existentes hoje em dia no país. Porém, o que quero chamar a atenção, para não fugir do tema principal desse texto, é de que os marcos cronológicos são ferramentas historiográficas usadas para delimitar processos, características específicas de fenômenos sociais, políticos, econômicos, culturais. Isso não quer dizer que os processos históricos sejam lineares. Desarrumar essas arrumações, examiná-las criticamente, é uma prática recorrente da disciplina História. Ou seja, é importante estarmos atentos para as continuidades, descontinuidades, semelhanças e diferenças, e como elas ajudam-nos a tratar o tempo não como um progresso marcado por etapas distintas. Para além das diferentes formas de resistência das populações africanas ao longo da história do colonialismo no século XX, podemos apontar para algumas características em comum que permearam a dominação colonial e, consequentemente, os variados mecanismos e braços do exercício desse poder. 

O que existe em comum entre esses tempos do colonialismo são, justamente, algumas das justificativas que permeiam o poder, assim como a sua própria existência, na forma do Estado colonial português sobre as sociedades africanas. Permeando esses tempos encontramos uma racialização das diferenças, o racismo como padrão de análise e prática, uma crença cega na ideia de progresso científico e econômico e uma presença epistêmica da violência. Como exemplo possível para enxergamos o que tenho anunciado, chamo a atenção para um evento específico ocorrido em Moçambique. Refiro-me a uma pandemia, na então Lourenço Marques,em 1907.

“Hospital Militar e Civil de Loureço Marques”, 27 de maio de 1895. Direção das Obras Públicas da Província de Moçambique. In: IICT – AHU/ACT-DR: https://actd.iict.pt/view/actd:AHUD6797, consultado em 15/06/2020

Entre 1890 e 1910, Maputo passou por uma série de epidemias. Em 1902, ocorreram surtos de “peste”, varíola, dengue, beri-beri e piora significativa no número de casos de tuberculose. Outro ano marcado pela explosão de virulências foi o de 1907. Nesse ano, ocorreram epidemias de peste bovina, varíola, “peste” e malária1. Desde a última década do século XIX, a cidade tinha assumido o posto de capital do Moçambique colonial. Seu crescimento era acelerado. Encontrava-se em pleno vapor a construção de espaços segregados racialmente que vieram a delimitar os perímetros urbanos da capital, ao longo do século XX, as chamadas “cidade de cimento” e “cidade de caniço”. No esteio das medidas de controle sobre os espaços urbanos, como resultado da doença que assolava a cidade, o Estado Colonial português criou um órgão que deveria zelar pela salubridade da cidade: o Serviço de Saúde. Seu braço de aplicação das medidas de saneamento também foi fundado nessa época: a Polícia Sanitária. Ambos tinham amplos poderes para agir como reguladores dos espaços públicos e privados. No regulamento de profilaxia contra o paludismo, publicado em fevereiro de 1907, foi estipulado que as “autoridades administrativas ou sanitárias” tinham o “direito de entrar em todas as propriedades e nas dependências de todos os estabelecimentos ou habitações”2

 

“Instruções sobre a varíola e meios de a combater e evitar”. Lourenço Marques, 1902. Apud: Ana Cristina Roque. “Doenças endémicas e epidémicas em Lourenço Marques no início do século XX”, 172. 

Porém, não foram efetivamente todos fiscalizados de maneira igual. A criação desses corpos burocrático-interventores coloniais, e de seus regulamentos, seguia a ideia de provir Maputo com posturas semelhantes as existentes em outros lugares do mundo, como no Rio de Janeiro, ou adotadas em cidades próximas, como Cape Town, Port Elizabeth, East London e Durban. As sucessivas crises causadas por surtos de doenças eram enfrentadas globalmente com medidas cada vez mais autoritárias e repressivas sobre as chamadas “classes populares”, sobretudo não-brancas, culpabilizadas pelos males trazidos ao corpo individual e da sociedade. Para o caso específico de Maputo, a autoridade colonial encontrou seu responsável pela peste, principalmente, nos chamados na época pela alcunha de “indígena”. O médico chefe do Serviço de Saúde propôs aplicar algumas medidas, que, de forma resumida, expulsavam essas pessoas da cidade, destruindo suas casas e os impedindo de circularem pela cidade3. Conseguia-se, assim, a desejável “desafricanização” da capital da colônia portuguesa, “desinfetando” a cidade branca da presença de uma população negra/africana classificada como “não-civilizada”. Como aponta o historiador Valdemir Zamparoni: “As medidas profiláticas não se restringiram, contudo, ao espaço da moradia; também os espaços circundantes e os espaços do prazer mais tipicamente africanos, eram visados, tais como as cantinas, bares e principalmente os batuques4.

Os possíveis descontroles no exercício do poder do Estado – do período colonial, ou mesmo contemporâneo - não são necessariamente uma falta de preocupação ou de estrutura do Estado, mas uma característica sistemática que possibilita a ação de determinados agentes e a perpetuação de determinadas formas de dominação (muitas vezes por meio da corrupção). O caso do combate da pandemia de 1907, em Maputo,  apresenta um exemplo de como a resposta a uma crise sanitária se transmuta – ou é usada como desculpa – para a consolidação de medidas de segregação e exclusão racial. A vulnerabilidade das populações atingidas por essas posturas fica evidente em outros casos ao longo da história colonial de Moçambique, como foi o caso da construção da barragem de Cahora Bassa, realizada entre 1969 e 1974. Sua excepcionalidade foi promovida enquanto a vitória do Homem, do Progresso e da Ciência sobre a natureza. Construída de maneira apressada e descuidada por conta do seus objetivos políticos estratégicos de tentar conter o avançar do movimento de independência moçambicano,  trouxe, consigo, gastos financeiros exorbitantes para o Estado português, custou a vida de muitos trabalhadores africanos e destruiu modos de vida de várias populações camponesas ribeirinhas que sobreviviam a séculos adaptadas aos ecossistemas do Vale do Rio Zambeze, alterados drasticamente com a barragem. Curiosamente, o fim do Estado colonial, a independência nacional e a ascensão da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), em 1975, não trouxeram consigo o fim dessas perspectivas5

As chamadas “medidas excepcionais” adotadas pelo poder colonial português nas ações e contratações públicas não eram tão “excepcionais” assim, no sentido de serem únicas, específicas ou pontuais. Muitas vezes corresponderam aos modos pelos quais o colonialismo construiu, implementou e consolidou sua perspectiva de dominação racial e racista sobre corpos e espaços africanos. 

Retomo a reflexão sobre o tempo presente que apresentei no início. Afinal, o tempo não é uma linha reta. O exercício histórico de delimitação de “épocas” ajuda-nos a compreender processos, mas não pode ser entendido como um caminhar rumo ao progresso ou aos destino-manifesto das independências nacionais. Como aponta o historiador Ricardo Roque, o cronótopo colonial “contamina” com sua epistemologia racista e violenta os espaço-tempos no qual estabeleceu contatos6. O combate contemporâneo ao Covid-19 expõe questões que foram se perpetuando ao longo dos processos de construção das lógicas da administração do Estado sob os espaços e corpos, tanto no período, como no pós-colonial. Os Estados coloniais e pós-coloniais, como o moçambicano, com a perpetuação de um problema crônico de corrupções, que resultam em explorações, desastres e mortes, agiram de diferentes maneiras ao longo da História, mas, de certa maneira, perpetuaram variadas formas de exclusão. Nesse sentido, a continuidade da ideia de “excepcionalidade” como escamoteadora para preconceitos, desvios, corrupções e controles sociais precisa estar na pauta das observações que tivermos sobre as ações adotadas pelos países de língua portuguesa oficial no nosso tempo presente, o tempo da Covid-19. 

 

Nota: 

Este texto foi originalmente escrito para o evento “Riscos de corrupção e COVID-19 nos países de língua portuguesa. O impacto de medidas excepcionais na contratação pública e nos sistemas de controlo”, ocorrido online no dia 28 de maio de 2020, organizado por SPARC & Projecto EPOCA (ICS-Ulisboa). Agradeço ao Filippe Clemente pelo convite para participar da mesa redonda. Agradeço também a Priscila Dorella pela leitura preliminar do texto.

  • 1. Ana Cristina Roque. “Doenças endémicas e epidémicas em Lourenço Marques no início do século XX: processos de controlo versus desenvolvimento urbano”. In: Anais do Instituto de Higiene e Medicina Tropical. Lisboa, 2016, 167-174.
  • 2. Secretaria Geral do Governo de Moçambique. Regulamento de Prophylaxia Anti-Palustre da Cidade de Lourenço Marques (Aprovado por Portaria Provincial n.º 86 de 4 de fevereiro de 1907) e Instruções para a Defesa contra os Mosquitos (Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1907), 7.
  • 3. “Medidas propostas de forma urgente: a) Destruição pelo fogo de todas as palhotas onde se derem casos suspeitos. Se as casas de indígenas forem de zinco, serão desinfetadas, levantando-se-lhes o telhado para não poderem ser habitadas durante longo prazo de tempo; b) Destruição nas mesmas condições de todas as palhotas circunvizinhas das primeiras num raio de maior ou menor extensão, conforme parecer aos médicos sanitários; c) Proibir temporariamente a passagem de indígenas e asiáticos de Lourenço Marques para o Maputo; d) Construir palhotas para os indígenas que ficarem sem habitação por esta ter sido destruída”. Apud, Valdemir Zamparoni. “Entre “Narros” e “Mulungos”: colonialismo e paisagem social em Lourenço Marques, c.1890- c.1940”. Tese de doutorado em História Social, Universidade de São Paulo, 1998, 324). Essas posturas continuaram mesmo após o fim do combate a peste de 1907. Em 1910, por exemplo, foi sugerido como orientação para evitar outros surtos na cidade que “os pretos devem dormir afastados das residências dos brancos.” In: Era Nova, 15 de dezembro de 1910. Apud, Zamparoni, “Entre ‘Narros’ e ‘Mulungos’”, 327.
  • 4. Zamparoni, “Entre ‘Narros’ e ‘Mulungos’”, 329.
  • 5. Allen F. Issacman e Barbara S. Issacman. A ilusão do desenvolvimento. Cahora Bassa e a História de Moçambique. Lisboa: Outro Modo, Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, 2019.
  • 6. Ricardo Roque, “Viver com o sangue que fica: ‘The Blood That Remains’, pesquisa sobre uma coleção colonial”, In: https://gi-imperios.org/blog/pt/the-blood-that-remains/, consultado em 08 de junho de 2020.

por Matheus Pereira
A ler | 17 Junho 2020 | colonialismo, epidemias, Lourenço Marques, moçambique