Entre dois comboios, 1969

I 

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Sempre adorei viagens de comboio, longas e monótonas, de noite, quando a caravana de carruagens coladas parece pretender desvirginar a noite. A escuridão discorre a meu lado, fora do vidro da janela, ponteada, desafiadora… Principalmente no outono da geada, quando as hastes fazem brotar nos cabos elétricos os clarões luminosos, intermitentes, azulados; e aquela paisagem submersa no escuro aparece nervosamente por baixo da luz projetada dos relâmpagos provocados pelo contacto das hastes com os cabos molhadas. 

Desde menino me atraíram os emaranhados de carris de metal paralelos, aquelas agulhas móveis, a apontar a mão escurecida do agulheiro; os depósitos empoleirados com o nome das localidades; as casinholas das estações de província e aqueles chefes engraçados de bandeira e apito. Havia, na minha infância, o prazer da acrobacia num só carril! Mas o mais prezado era aquele pequeno monstro de simpatia, negro e sujo e a atirar para o céu a coluna cónica, a apitar na Mourisca e a ouvir-se ainda em Oronhe. A paisagem ferroviária atraía-me como o mar atrai os marinheiros, ou o ar os pilotos-aviadores ou os astros os astronautas. Aquela confusão de linhas, aquele pessoal de fardas desbotadas, numa movimentação lenta e constante, nas estações de Águeda e de Aveiro, Eirol, Sernada, Eixo! Apeadeiros com grupinhos de pessoas à espera do molengão de fumo e carvão, no seu andar de gato sob o sol, a pisar com as rodas de ferro, como que a medo, aqueles dois longos e uniformes carris cravados nas travessas de madeira chamuscada. Barracões, apitos, relógios, montes de carvão de pedra; intermitências de vagas humanas subindo e descendo rapidamente, os ponteiros a calcar a partida isócrona para mais uma entre tantas viagens, dia-a-dia, minuto-a-minuto! Um mundo de tudo, elementos profusos para quem o descobriu e amou…

Depois vieram os comboios elétricos, a transportarem aquela rede aérea de fios esticados, presos a estacas férreas de cimento e isolantes de alta tensão… e a grande estação da cidade de Aveiro perdeu aquela atração que me prendia horas seguidas a contemplar as centopeias de rodas movidas a vapor. E era por eles, os comboios, que me integrava todo no seu complexo, no seu mundo ferroviário. Desapareciam os primeiros, perdia interesse o segundo.

Foi na nostalgia do meu desgosto que um dia, ao deambular pela nova estação da cidade de Aveiro, percebi que era possível amar os novos comboios! E que até estes não eram os intrusos, antes pelo contrário, iam apenas complementar o mesmo mundo que me atraía. Sentado num banco do cais, absorto por mil pensamentos, contemplava sem perceber a fusão dos cabos azulados com o anil do horizonte aéreo. Como se eles o amachucassem, o comprimissem contra a sua cor distante de céu azul crepuscular. Naquela como que ondulação transportada, que por qualquer motivo da minha vida de estudante, com o pensamento acelerado e confuso à volta dos temas que a minha mente nessa altura preferia, eu via numa qualquer tarde de primavera dos anos adolescentes, à minha volta, em mim, a fantasia daquele complexo de realidade, espelhado em todos os meus sentidos, nesse dia e hora, talvez momento propenso mais à apreensão sensível e poética do que à compreensão objetiva, racional e terrivelmente banal da realidade concreta que me envolvia. 

Foi então que vi: a poesia. Sim, a poesia como que perdida e num momento reencontrada do mundo que tanto admirava. Talvez me julguem um pouco esquisito por me entregar a esses exercícios, de perder e reencontrar coisa como a poesia, e dizê-la dos comboios que foram eletrificados. Por vezes é como apaixonar-me por coisas que até aí me foram banais e despercebidas. Um jardim que há muito conheço e num momento, quase instantâneo, se transforma perante a minha visão; ou uma rua, uma casa, uma cidade; ou qualquer outro objeto. Por vezes até com algumas pessoas. A partir daí, tudo isso começa a viver num círculo - o meu círculo - de fases e transições, com mais ou menos intensidade, cheio de dependências dos meus estados de espírito. Com os comboios não é bem assim, pois para esses há uma certa reserva da minha parte, daquilo a que poderia chamar a capacidade de dedicação poética. Pois, como ia dizendo, os comboios e o seu complexo ferroviário adquiriram, de há longo tempo, um lugar especial na minha maneira de examinar e de interpretar os objetos. Para eles há um lugar isolado, quente como uma forja, nas interpretações poéticas que dou às coisas. 

O sinuoso Vale do Vouga, nas manhãs de geadas verdes e acastanhadas, encosta acima, rio e pontes, balanceio de passo curto e nuvens negras, o apito entre pinheiros e vinhedos! Chegados a Paradela há uma serra para vencer. O carvoeiro do Douro direito ao Minho, em tudo semelhante a uma larva medrosa que pede às passagens de nível autorização para passar. A automotora do Alto Alentejo, amarela-avermelhada, é um pequeno projétil enviado não se sabe de onde, passando por qualquer parte em direção incerta, horizontal. E aquele marginal, lento e monótono algarvio à procura da areia que o mar deixa molhada. Quando passa, para onde irá, terras de Espanha, outro lado de Vila Real de Santo António?

Linha do Norte! Da capital à cidade das escuras recordações. Linha mais feia, lembrá-la como? Um desdobrar de imagens passadas, características de quase uma vida feita sobre essa época. É projetar na tela retrospectiva o desencadear veloz de acontecimentos amontoados, de visões de uma época que teima em permanecer, hostil e terrífica. O medo e a angústia nos rostos dos passageiros amontoados, dos episódios com um epílogo continuado dia-a-dia em cada comboio da noite que passa, em cada carruagem de luz frouxa que de Santa Apolónia nos traz sempre cheia a presença do terror de se saber que há mar e porto de mar, que há terra e soldados que voltam ou não voltam. Nos corredores amontoados é a linha do Norte que não esquece as noites longas do vinho da viagem da volta, dos episódios contados, da assistência dormente e das crónicas do tempo. Deste tempo em que no comboio da linha do Norte há anos que presencio toda a vida, chame-se assim, do povo que rodopia comandado. Pois é deste que eu tanto tenho a contar e vou escolher um dos seus episódios para escrever este conto por algum tempo esquecido.

Um episódio! Dentre tantos, qual? Olho para trás e procuro o mais recente, o mais tangível, o mais brutal, o mais poético… e é bom que una a poesia à brutalidade, que recorde sobretudo o que a mim mesmo mais impressionou. Entre o brutal e o espetacular, uma centelha de apenas meia hora de palavras ouvidas não será talvez o que mais convida à memorização para toda a vida? Sim, se eu ouvi, ouvir com estes ouvidos que querem e que retêm do muito a poesia das palavras pronunciadas por alguém. Um episódio! Entre tantos…

Veridicamente há fantasia nos relatos de conversas ouvidas há algum tempo, quando se pretende transcrever para o papel o que marca um homem a ferro em brasa. Uma história de um soldado vindo da guerra, entre as armas e a casa de família, como este que ouvi há algum tempo entre duas deslocações de comboio. Com ferro e fogo dos homens de olhos vermelhos (a ignorância ao serviço da suprema ambição), marcados não apenas um poeta, no suor do miserável sangue de um povo de poetas.

II

O comboio chega a Aveiro cerca das seis horas, madrugada de outono invernoso, no dia 30 de Novembro de 1969. Antes, pouco depois das zero horas, tinha partido da estação grande, Santa Apolónia. Uma viagem com carimbo de rotina, sempre as mesmas conversas: os funcionários públicos foram aumentados, uma miséria de aumento, para os chefes mais cinco contos e para os subalternos menos de duzentos escudos; a vida está má, péssima, tudo caro; se não fosse a idade, a família, os negócios, a vida, lá fora é que se leva uma boa vida; e também naquilo que eles chamam Ultramar: come-se bem, carne barata todos os dias, fruta, sopeira preta a servir o colono, emprego para gente branca; a vida está má, uma miséria. O comboio vai comendo paragens, a conversa é sempre esta, interrompida aqui e além pelas manifestações exuberantes de marinheiros embriagados que passaram à peluda, ou soldados que vão de licença ou ainda os que regressaram do além-mar. Um estendeu-se sobre os bancos e tentou enganar o sono, outros fazem o possível por esquecer que lá atrás as carruagens-cama nunca se lhes abrirão. Ouve-se o ressonar de uns, o mastigar de outros, a respiração funda dos semi-acordados, o solilóquio de uns poucos, a súbita melodia atrofiada dum transístor incómodo. Passos vagos misturam ao som das engrenagens espessas e metálicas o afundar de todos as vozes. Conversas numa mesma atmosfera sonolentamente ruidosa, aquela que caracteriza a Linha do Norte nas longas viagens noturnas.

Santarém, Entroncamento, Pampilhosa, Coimbra, Alfarelos. Curia, Mogofores, Quintãs. Finalmente Aveiro!

  Descem cerca de centena e meia de passageiros. Junto à máquina, sai o correio, tirado por quem recebe uma miséria para ficar toda a noite acordado à espera do comboio que o transporta. Uns dos passageiros encaminham-se imediatamente para suas casas, outros procuram carros de praça, alguns vão continuar o sono para as carruagens do Vale do Vouga, que espera pela sua hora de partida. Há quem vá ao bar da estação tomar café, e quem fique à conversa esperando na sala principal, junto às bilheteiras. Quando me junto a estes já a maioria desapareceu, restando uma dezena de pessoas, encostadas às paredes da sala (não há bancos). Tento compreender tão bem quanto possível a situação: uma sala normal, de estação ferroviária, as bilheteiras e o quiosque fechados, as portas duplamente abertas. Temperatura nada amigável. As pessoas são o que mais me convém observar. 

Junto à porta que dá para a gare o bagageiro. Meia-idade, rosto marcado, rugoso; a seu lado um homem absolutamente normal, incaracterístico. Mais algumas pessoas de aspeto rural fechando a entrada do círculo que todos nós formamos. Encostado à parede do fundo, com as mãos nos bolsos, há um homem ainda novo, vestido de escuro e de olhar afilado sob uma boina espetada para a frente. A seu lado um soldado: forte, de rosto imberbe, avermelhado pelo frio. Está sentado no chão. Fazendo o centro a este círculo está a figura mais destacada, a que pela sua conversa atraiu e fez formar o tal círculo. Também sou atraído por um relato como aquele, de forma que fecho o círculo, de pé, encostado ao bordo do quiosque fechado. 

Trata-se de um militar, acabado de chegar do norte de Angola, zona fronteiriça de Sá da Bandeira. Pertencia aos comandos.

Enverga blusão verde-escuro, sobre a farda pintalgada de combate. O seu aspeto é o de pugilista pesos-médios, muito baixo, de gestos subtis e suspeitos, como que camuflados. Tem cabelo muito ruivo e rosto cor de palha, em acordo. Noto imediatamente que apesar da sua baixa estatura deve possuir uma força e agilidade fora do normal, essas mesmas que se encontram muitas vezes em indivíduos de arcaboiço largo e pequena estatura, que à primeira vista parecem nada valer. O seu nervosismo eletricizante em todo o corpo, aliado à entoação da voz (partida, um pouco dramatizada mas não intencional), confere veracidade ao meu prognóstico sobre a sua força e agilidade física. O que ele conta a seguir acaba por confirmar as minhas suposições.

O que mais faz com que esse soldado (do seu nome apenas sei, por ele o dizer, Martins), recém-vindo da guerra, atraia particularmente a minha atenção, não é o facto daquilo que eu dele espero, que são os relatos da guerra que os jornais não contam. O que mais me seduz nesse soldado que veio das terras ardentes é o seu olhar. Uns olhos escuros, profundos, extraordinariamente contrastantes com as cores do rosto ou do cabelo e que parecem possuir qualquer coisa de sobrenatural, ou transportado do enigma africano das terras donde ele acaba de chegar (foi na véspera que ele chegou ao porto de Lisboa). Esse seu olhar descreve-me antecipadamente tudo aquilo que a seguir lhe vou ouvir: ódio do mais puro, racismo que não se contenta em assassinar, que exige que a carne do negro morto seja esquartejada, retalhada até ao mais pequeno fragmento. Tortura antes da morte, estraçalhar depois dela. E no entanto é uma criança, um garoto que transformaram em assassino. O seu corpo, cara, mãos, são expressões ingénuas, esbeltas, de um jovem que aparenta dezoito anos. Antes era pedreiro na sua terra, para os lados das Gafanhas. Agora vai voltar para o mesmo ofício, com as mesmas mãos. No peito, do lado esquerdo, vai mostrar a toda a aldeia os dois símbolos do que foi durante dezoito meses: duas medalhas. A Cruz de Guerra e a Condecoração da Combatividade. No entanto, os seus olhos escuros (um jovem tão jovem!), aquele olhar…

III

Já ele falava quando me juntei ao grupo. Contava algumas sequências da sua campanha no norte de Angola e pareceu não notar a minha chegada. Não me lembro ao certo das primeiras palavras que lhe ouvi; parece que narrava um episódio sobre colocação de explosivos. Não me devo enganar muito se o reproduzir da maneira, embora pessoal, que vou seguir, pondo-o a ele próprio a falar, não apenas com os que lá estavam mas também convosco, leitores.

— Não sei se estão a ver como é que eu fiz. Matamos oito turras mas sabíamos que os outros que tinham fugido para o Congo ou para as matas (eles escondem-se sei lá aonde, aqueles turras!), tinham que voltar em busca dos mortos. Os turras veem sempre buscar os mortos, é preciso saber esperá-los. Vai eu pus o trotil conforme tinha mandado o capitão. Aquilo é fácil, estão a ver?, amarram-se os fios aos turras de maneira que não se veja e os fios estão ligados ao trotil que eu enterrei por baixo. Quinze quilos de trotil davam para fazer ir pelos ares o acampamento inteiro! Quando eles voltam e vão para levantar os mortos… Buum! É um estoiro que se ouve no acampamento, lá em baixo.

— Mas, pergunta o homem da boina, isso estoira assim sem mais? Mata tanta gente?

— Não! Estão ligados ao trotil. Eu pus fios escondidos. Aquilo foi assim: eles atacaram de manhã o acampamento com tiros e morteiros. Era cada um que até metia impressão! Aquilo é sempre assim, volta e meia atiram para cima de nós com morteiros, às vezes horas seguidas. Mas a gente depois de responder vamos atrás deles de maneira que fomos até aí uns quatro quilómetros para cima do acampamento, onde matámos esses tais oito turras. Os outros fugiram mas como a gente sabia que eles haviam de voltar para levar os mortos, o capitão disse-me para enterrar o trotil e fazer a armadilha. Eram quinze quilos, aquilo tem que ser com muito cuidado, mas de explosivos percebo eu, sou sapador e em Lamego até brincava com eles. Os outros foram embora e eu lá fiquei a tratar daquilo. Depois voltei ao acampamento mas nem sabia o que fazer, estava nervoso, apetecia-me ir matar os pretos da aldeia lá próxima. Andei pelo acampamento a tarde toda sem fazer nada, ainda estive a ajudar os outros a fazer uns canteiros com as pedras. Olhe, foi nessa altura que ouvi lá para cima um estrondo. Buum! Pronto, já houve barulho. Já caíram, os turras. Fui logo ao capitão pedir para me deixar lá ir, ele não queria que eu fosse sozinho e levei uns colegas que estavam por ali. «Eh pá, venham lá acima comigo», disse o capitão. Lá fomos e encontramos vinte e seis turras mortos todos ali, ao pé dos outros. Aquilo é que foi!

Mas… isso é assim?… vinte e seis? - voltou a interromper o da boina, ao mesmo tempo que, entre breves comentários, os outros mostravam uma atenção expectante. Pela minha parte, assistia à cena, no mesmo lugar, calma e objetivamente, procurando registar mnemonicamente o mais possível.

— Qual o quê, diz o cabo Martins, você sabe lá o que é o trotil? Aquilo é lixado, o que é que pensam, dá cabo de tudo. Foram vinte e seis e foram todos, se mais viessem mais lá caíam. Então se a quatro quilómetros se ouviu o estoiro! Aquilo é assim, só quem lida com o trotil, como eu lidei durante estes malditos dois anos, é que sabe. Ficaram ali todos. Quando lá chegamos estavam todos despedaçados, os malditos.

— Pus muitas emboscadas. Nessa foram vinte e seis que lá ficaram. Deviam ser mais. Todos! São todos uns assassinos esses pretos, não os posso ver. Só saber que ainda lá ficam tantos… mas aqui também os há. Quando vinha no comboio vinha lá um, um preto. Eu ainda me quis atirar a ele…

Enquanto falava, o Martins olhava para vários locais e para as pessoas, muito fixamente. Os olhos penetrantes faziam as suas palavras furarem os nossos olhos. Os seus gestos acompanhavam vagamente as descrições, enquanto as frases eram interrompidas e intercaladas com outras frases de significado diferente mas relacionadas com o que disse anteriormente. A certas palavras dava um tom mais particular, consoante o que elas significavam para si. Especialmente às expressões «turras», «terrorista», «preto». Como que malditas, as três eram sinónimas e pouco importava qual dizer. «Turra», «terrorista», «preto», tudo queria dizer «assassino». Não se lembrava o Martins aquilo que ele próprio era. Ou talvez não o soubesse.

Entretanto chega outro soldado, de gabardine militar, que se encostou à porta de gare. O seu aspecto era mais franzino do que qualquer das pessoas e o seu rosto evidenciava a sua origem: classe baixa, campestre, dos campos de entre a Ria e as planícies marítimas da Gafanha. Esta nova presença só mais tarde iria influenciar a narrativa do Martins, que entretanto comentava com os presentes vários aspectos da guerra colonial, em discurso entrecortado pelo medo da própria conversa.

— Vejam como eles são, os terroristas. Isto só para saber o que eles são, que eles sabem o que fazem. Aquilo está muito mau. Muito mau. Pois até num dia de juramento, ou qualquer coisa do género. O que é certo é que estava tudo na parada em sentido. Em Sá da Bandeira. Até ai! Estão a ver, até em Sá da Bandeira eles atacam. E a gente não se podia mexer da formatura. Era em sentido e o comandante tinha dito que ninguém se mexia nem que todos morrêssemos. Não podíamos, pronto! Era assim e assim mesmo, ordens. Nem que morrêssemos todos.

— Estava eu a içar a bandeira à frente do pelotão e ainda mais tropa que por lá andava. Até ao içar da bandeira eles atacam! Ainda ouvi os morteiros a assobiar: fiiiiiiiiiiiiii …bum! Foram logo doze feridos. Felizmente ninguém morreu, mas está a ver, se era em cima de uma coluna nem um se aproveitava. Dois morteiros que os terroristas nos mandaram para cima ali mesmo em Sá da Bandeira. Até parece impossível mas estão a ver como aquilo está. A guerra… é lixada. Mau, muito mau. E eu ali em sentido a içar a bandeira e aqueles dois morteiros a rebentar mesmo ali. Está muito mau aquilo e o que eu digo a todos é que para lá não vão. Safe-se quem puder, para passar o que eu lá passei…

  O Martins era interrompido de vez em quando com perguntas, comentários ou exclamações, mas é muito mais interessante ouvi-lo, tanto quanto possível apenas a ele. A sua narrativa ignora ou pouco se importa com as interrupções, responde-lhes com o próprio continuar descritivo, entrecortado por pausas breves, gestos com as mãos a imitar o que a sua imaginação lhe recorda, movimentos de cabeça para trás, parecendo desconfiado dos que lhe estão à retaguarda. Talvez reminiscências dos combates, mas o que é certo é que apesar de todos estes movimentos, o Martins não faz o mínimo esforço por ocultar seja o que for. Conta tudo o que lhe vem à cabeça desprezando as possíveis reações, ou o impacto que as suas palavras possam provocar nas pessoas. Com um sangue-frio que fere mais que tudo o que ele diga.

Nem todos os ex-combatentes procedem assim. A maioria faz o possível por ocultar as cenas de combate em que tomam parte e além dessas todas as facetas da guerra de onde vieram. Nunca se inibem de contar pormenores acessórios, tais como as viagens, o clima, a vida nas cidades coloniais, o que se faz à noite, como vivem os colonos, como se divertem; as praias, os batuques. Para ocultar os aspetos bélicos, porventura os crimes que praticaram, preferem contar as suas experiências sexuais com as negras e as mulatas, pois para este género de conversa sobre as colónias os curiosos não se cansam de ouvir, preferindo-as às cenas de guerra e devastação. Por vezes acedem a insistências dos amigos e contam, com um certo ar de simultânea inocência e irresponsabilidade militar, um ou outro episódio. Mas furtivamente, procurando logo de seguida mudar o rumo da conversa, falando sobre outro qualquer acessório, de preferência que chame mais a atenção pela sua originalidade, sempre bem recebida, de coisa africana e portanto ignorada.

Os recém-combatentes fazem, ao chegar, aquilo que é costume dizer: deitar contas à vida. Vêm com intenção de se casarem o mais breve possível, terem uma família, tratar da carreira profissional e do futuro económico do seu lar. Talvez em grande parte por isso, mais até que pelas imposições de silêncio acompanhadas de ameaças de perseguições políticas, que lhes fazem os superiores pouco antes de regressarem, preferem calar os assassinatos e atrocidades que cometeram, não vá a opinião geral da sua terra fazer-lhes juízos e condenações morais que lhes fiquem para toda a vida. Pois que até é para essa vida que eles vêm ansiosos por obter o que ela mais lhes possa dar. São homens formados os que voltam das colónias. Formados pela guerra.

O Martins também se formou pela guerra. Mas o seu comportamento, logo à chegada, era um pouco estranho para um recém-combatente. Ele dizia tudo o que tinha feito, os assassinatos, torturas, violações, atrocidades. Dizia-o abertamente, de livre vontade e com a maior objetividade e ausência de escrúpulos que se possa imaginar. O Martins vinha, conforme verifiquei depois, semi-enlouquecido, com os bolsos cheios de comprimidos especiais para recompor o seu sistema nervoso.

IV

Foi então que ele pareceu notar a presença de dois soldados. Olhou-os detidamente, um a um.

— Tu tem cuidado, disse para o que estava sentado, vê como te portas, que aquilo está mau…

— Já cá estou há mais de dois anos, já não vou parar lá fora, retorquiu o soldado.

— Mesmo assim, pá! Olha que muitos estiveram cá até ao fim e acabaram por ainda ir lá parar. Ainda há tempos um rapaz conhecido meu, faltavam-lhe dois meses. Fez por lá qualquer coisa e mandaram-no para a Guiné. Lá está a gramar a guerra. E é atirador.

— E tu? Perguntou voltando-se para trás e olhando fixamente o outro soldado.

— Não sei ainda, estou há pouco tempo, ainda não sei para onde vou. Juro bandeira para o mês que vem.

— Cuidadinho, estás a ouvir? Livra-te daquilo, que nem sabes o que aquilo é! Só quem lá foi é que sabe. Muito juizinho, hem!

Dizendo isto, o Martins, com as mãos nos bolsos das calças, movia-se para ambos os lados, em gestos balanceados, mais o tronco que as pernas. O frio parecia mais intenso, o que de certa maneira me confundia, pois ficava sem saber se os seus gestos e passos eram provocados pelo frio ou pela reação interior que a recordação contada lhe provocava.

— Muito juizinho, hem! Vê se te metes numa especialidade que não dê barulho. Mas se lá não fores ainda é o melhor. É como eu digo, quem lá esteve é que sabe o que aquilo é. Para sofrer o que eu sofri… e para mais nos Comandos! Já em Lamego… «Comando, Comando… és o melhor, matas o preto…» Aquilo é mau; dão cabo de um homem. Como eu venho aqui… antes de ir pesava setenta e cinco quilos e agora venho com sessenta e quatro. Aquela vida! Só de pensar o que passei… Ter que andar no mato dias seguidos, noite e dia, a dormir num pano que a gente levava, com água por baixo de nós a correr. E as febres e doenças… aquilo era de tudo, os paludismos, as febres. E depois enchiam a gente com remédios e injeções. «Comandos»… E andar um dia inteiro só com uma ração de combate, ali a passar fome como um cão.

— Não dava para comer, não era?

— A ração de combate?! Qual comer! Aquilo é um pacotezinho que a gente leva para um dia inteiro. Não tem nada: um frasquinho de vinho, um chocolate, umas conservas e pouco mais. No acampamento ainda a gente come carne que vai caçar, mas ali, no mato, não podemos matar caça, por causa do barulho.

— É para não atrair os gajos, não é?

— Pois, que aquilo é tudo de emboscadas. Andamos nós à procura deles e os turras à nossa procura. Eles também nos deitam emboscadas. Uma vez… isso é que me custou, era um rapaz meu amigo. Nunca hei-de esquecer isso. Os gajos tinham uma granada de carro enterrada numa picada e nós íamos a pé. Aqueles assassinos!… vai o meu colega meteu um pé em cima dela, e por azar a tampa estava mesmo em cima, de modo que com o peso dele cedeu. Pronto, disse ele, já estou morto. Ficou ali quieto, muito parado sem mexer o pé. É que aquelas granadas rebentam com uma alavanca pequena que com o peso do carro vai abaixo. O carro passa e a alavanca volta para cima, por causa de uma mola. Quando vem para cima, «buum», vai tudo pelos ares. E ali fica ele, com o pé em cima dela e sem se mexer. Quando aquilo estoirou, ficou todo em pedacinhos.

— Eh - exclamou um assistente – mas ficou mesmo assim?

— Pois o que é que pensa, com uma granada de oito quilos de trotil, que dá para estoirar um carro, fica todo despedaçado. É bocados de carne e ossos por todo o lado. Coitado do rapaz. Esteve assim mais de uma hora, e a gente ali ao lado dele. A despedirmo-nos. Despediu-se de todos nós pelo nosso nome, os que estávamos ali à volta dele. Depois começou a chorar. Mas nós não podíamos fazer nada; até o alferes chorou a despedir-se dele. Ao fim de uma hora atirou-me a espingarda e disse-me para eu ficar com ela. Disse que não queria morrer com a farda e começou a despi-la e atirou-a para nós. Ficou ali todo nu e disse para a gente se retirar. Fomos para aí uns cento e cinquenta metros à volta, e ficamos à espera. Até que aquilo estoirou.

Mas vocês não podiam salvá-lo, tirá-lo dali sem aquilo estoirar?

Qual quê! Uma granada daquele tipo, não há nada a fazer. O desgraçado que ali puser o pé já dali não sai. Tive pena daquele rapaz, eramos muito amigos. Ali, nu, à minha frente, a chorar e a dizer-nos adeus. Depois disso ainda fiquei com mais ódio aos pretos. A todos os pretos, esses turras!

— Mas, diz um dos presentes, nem todos eles são terroristas.

— Olhe, todos eles são. Aquilo é uma raça danada. Só matá-los todos! Eu bem queria, mas o capitão não me deixava, ir à aldeia lá perto e pôr lá uma bomba que desse cabo deles todos. Mas o capitão chamava-me lá para o gabinete dele e não me deixava sair dali. Dava-me qualquer coisa para eu fazer, ou para eu ler, e tinha-me ao pé dele o dia inteiro. Porque eles não querem que a gente mate os turras das aldeias, para eles trabalharem, mas cá por mim iam todos, não ficava um. Eu bem lhe pedia, mas ele acalmava-me, mandava darem-me injeções e pastilhas para acalmar os nervos. Não era só eu que as tomava, mas também poucos eram. O que davam a todos era das de dar coragem.

— Também quando era para combater chamava-me e mandava-me ir à frente: «Cabo Martins! És o mais corajoso, vais à frente, não vais?». Também era só para combater que eu era o mais corajoso do acampamento. Quando não saíamos também não me deixava ir dar cabo dos turras.

— Mas eu dizia-lhes como era. Havia um preto, velho, que andava por lá a vender bugigangas, pentes e essas coisas, e ia lá ao acampamento. Quando eu o via queria-me logo atirar a ele mas os outros seguravam-me. Também levou poucas… Uma vez encontrei-o a chorar, lá com aquela voz: «nhã, nhã». «Que é que foi?». «Hã, hã», disse ele, «roubaram-me as coisas, agora não sei o que hei-de fazer». Levei-o ao acampamento a falar com o capitão. Com certeza ele também era dos outros, dava-lhes informações. Depois ele lá disse qualquer coisa ao capitão e no mesmo dia, não sei lá porquê, fomos dar uma batida à zona. A dada altura começaram a disparar para cima de nós e atiramo-nos para o chão. Eram eles, aqueles assassinos! Vocês não sabem como eles fazem, eles quando veem que estão a perder retiram mas deixam sempre alguns atrás a responder ao fogo, de maneira que quando nós chegámos só lá estavam dois. Os outros já tinham desaparecido. Apanhamos esses dois vivos e perguntamos-lhes onde é que eles se escondiam. Eles sabem muito bem, mas dizer é que está quieto. Como eles não diziam nada, a gente fez uma roda à volta dos dois turras e começamos a perguntar: «Onde é que estão os outros?» Eles só diziam: «mata, mata». Começamos aos murros, assim - e o Martins imitava o gesto, dobrando um joelho, a outra perna para trás e o punho estendido, com os dedos semi-dobrados, espetados para a frente, o braço todo estendido para cima. 

É curioso notar como o sapador Martins imita todos os gestos, com uma perfeição e rigor que denotam o estado de espírito que ainda o possuí. Imita todos os sons, quer o estoirar de explosivos quer o disparar de metralhadoras, exemplifica os gestos de combate, quer o modo de andar pelo mato, quer a maneira de torturar os prisioneiros.

— Cada um de nós dava um murro ou um pontapé e perguntávamos-lhes: «onde estão os outros?». Eles só diziam, com aquelas vozes, «mata, mata». Ai sim, então toma, pimba, pimba, murros nas cabeças, na cara, pontapés nas pernas, na barriga, nos tomates. Mas eles aguentavam tudo e só diziam «mata, mata». E a gente a dar-lhes, todos juntos e de todos os lados; na cabeça parece que nem sentiam, têm aquela cabeça dura como uma pedra, aqueles patifes. A cara começava a inchar e a ficar roxa e cheia de sangue. Ficou tão inchada que nem se viam os olhos. Até que caíram no chão, mas a gente continuou a dar-lhes mesmo assim, até nos cansarmos. O alferes disse-me para abrir uma cova que iam assim, quer estivessem vivos ou mortos. Pusemos os turras lá dentro e fomos buscar pedras para lhes pôr em cima. Então o alferes viu uma pedra muito grande e como sabia que eu é que tinha mais força, disse-me: «Ó Martins, pega nessa pedra e atira-a para cima deles». C’os diabos, a pedra tinha aí uns cem quilos. Peguei nela, assim, por cima da cabeça – e o Martins exemplificava com as mãos estendidas para cima, e completava o gesto, como se tudo se estivesse a passar ali – e vai ao cair-lhe em cima saltam as tripas e aquela porcaria toda! Espirrou-me todo! A farda toda suja e até a cara e o cabelo. Foi dessa vez que eu tive nojo daquilo tudo, até fiquei agoniado por alguns dias, mas depois habituei-me. No acampamento lavei-me todo, lavei a farda, desinfetei aquilo tudo e a mim também. É que eles são assim, andam cheios de doenças no corpo, com aqueles bichos todos agarrados ao corpo, como as carraças aos cães.

V

No meio dos constantes comentários e exclamações, o comando continuava a sua narrativa, como que ignorando a nossa presença, como que ausente. Ou antes, presente, mas nos locais e nas cenas que recordava.

— Aquilo é uma raça danada, os pretos! Como eles se aguentam! - disse um dos assistentes.

— Os turras! Ó homem, aquilo… eu nem sei, mas eu vi lá alguns, que até parece mentira. Uma vez andámos atrás de um mais de um quilómetro e ele com as tripas na mão, a correr. Olhe, foi assim dessa vez: íamos numa coluna, numa daquelas camionetas altas, com os lados de chapa de ferro, muito alta para nos cobrir. A dada altura, «fiiium, fiiium, puum», eram eles a atirar. Uma emboscada. Àh rapaz, dei um salto, a camioneta a andar aí a sessenta, pendurei-me lá em cima com a arma numa das mãos e atirei-me em andamento para a estrada.

O Martins exemplifica todos aqueles gestos, perante nós. Atira-se para o chão da sala, como se estivesse em combate.

— É assim, a gente atira-se logo para o chão e começa a disparar. Os outros só saltaram depois, quando eu já estava a responder ao fogo. Durante aí meia hora era só tiros e granadas, que atá dava cabo dos ouvidos. «fiiium, bum, bum, bum, fiiiium», até que eles começaram a retirar; ainda lá deixaram alguns estendidos, mas não me lembro quantos foram. Os que fugiram nunca mais os vimos, eles são assim, desaparecem no mato num instante. Fomos atrás deles, a correr, e ainda acertamos num. Os outros sempre a correr e a disparar para trás, os patifes, com a arma por cima do ombro, sem olharem – o cabo sapador volta a exemplificar, enquanto o soldado mais velho interrompe: 

— É com umas armas pequenas que eles têm, não é?

— Pois, umas metralhadoras muito pequenas. Não atiram muito longe, mas são muito boas, leves e muito fáceis de manejar. É no Congo que lhas dão.

— É a Rússia que lhas manda. É a Rússia, vem sempre nos jornais.

— Isso não sei, eles lá as arranjam. O que é certo é que os gajos mesmo a correr disparam sempre. Nós acertámos num, que era um chefe deles. Uma rajada que lhe furou a barriga toda, por aqui, estão a ver?, as tripas saltaram-lhe fora e ele a correr e a segurá-las. Deitou a arma fora e sempre a correr à nossa frente, a gente via-o lá adiante, a gritar: «não me matem, não me matem, que eu sou o chefe». Ainda andou um quilómetro assim. Sempre a correr e a gritar: «eu sou o chefe, eu sou o chefe, não me matem». Estão a ver a resistência deles?! Ao fim de um quilómetro, pumba, caiu para o lado, morto. Chegámos ao pé dele, vi aqueles olhos abertos, aquela cor preta; meteu-me cá um ódio que só queria cortá-lo todo. Tirei a faca e era para me atirar a ele, mesmo morto. O alferes não queria: «vamos embora, ò Martins, deixa lá o gajo!». Tanto lhe pedi que acabou por deixar. Abaixei-me ao lado dele, despedacei-o todo. Com aquela faca, vocês sabem como elas são?, muito afiadas, aquilo corta tudo, com serra por cima para cortar os ossos. A minha estava tão afiada que com um golpe só cortava uma cabeça fora. A primeira coisa que lhe fiz foi meter-lha no estômago, andei à roda, cortei a espinha. Ficou partido em dois. A seguir comecei a retalhá-lo todo, deixei-o em pedacinhos. Só fiquei satisfeito quando não havia mais nada para cortar.

— Safa!, disse o bagageiro, é preciso ter coragem.

— Coragem?! Então eu que era o comando com mais coragem no acampamento! Pelo menos era o que dizia o capitão. E era por isso que me mandavam sempre à frente, ali à frente da morte, pronto para ser o primeiro a cair. «Comando! Comando! És o melhor, matas todos os pretos!». E vão dar-me a Medalha de Combatividade mais a da Cruz de Guerra. Há-de ser em Lisboa, para o ano. Aquilo, depois de se lá estar algum tempo, há coragem para tudo. Depois que me habituei, e com o ódio que tinha aos pretos… sabem lá o que eu fiz! Cortava-lhes os lábios, arrancava-lhes os olhos, retalhava-os todos. Com aquelas facas tão afilhadinhas… Quando não tinha nada que fazer, entretinha-me a cortá-los aos pedacinhos, de ponta a ponta, até ficarem em bocados de carne muito pequeninos. Como iscos para a pesca.

— Eu não tinha coragem para isso – disse o bagageiro.

Aquilo é mesmo assim – retorquiu o homem da boina, com um sorriso de justificação, como que a dizer que também seria capaz de fazer o mesmo, que tais atrocidades se justificavam e desculpavam com indulgência desde que cometidas por compatriotas seus. Que até se deveriam fazer. O seu sorriso dizia isso mesmo: dizia que se o trucidado é um negro, o Martins é um herói. E continuou, numa ilusória justificação de ignorante: 

— Eu conheci um rapaz que andou no seminário, saiu e foi lá parar. Ia cheio de medo, ao princípio nem podia ver sangue e depois… olhe, cortava-lhes as orelhas e guardava-as enfiadas numa corda. Andava assim com elas, a fazer coleção.

— Ora - volta a falar o Martins – isso fiz eu muitas vezes e muito mais. Cortava-lhes os lábios e guardava-os. Metia-lhes a faca pelos olhos e começava a andar com ela à roda, até ao osso. Cortava-lhes a pele, os dedos… Mas vivos!

— Coragem!… então eles até nos dão remédios para dar coragem! E depois, quando algum de nós, a tomar aquilo todos os dias, fica como eu fiquei, dão-lhe outros remédios para tirar a coragem e acalmar os nervos. A gente farta-se de tomar remédios. Só para dar coragem eram quatro diferentes, nunca mais me esqueço os nomes – e o Martins diz os nomes dos tais comprimidos.

Depois de mais umas considerações, começa a falar do seu estado de saúde: - Com aquilo tudo, aqueles dois anos, venho aqui num estado em que eu nem sei! Com uma carga de nervos que nem me deixa pensar. Só penso no que lá passei, não me sai da cabeça aquilo tudo. Tratamento, tratamento. Eu preciso agora é de tratamento dos nervos, muito repouso durante algum tempo. Ainda volto a Lisboa para tratar de uns papéis e receber o dinheiro e depois muito descanso, que estou completamente desnorteado. Depois, é só para o ano, vou lá receber as medalhas e acabou-se. Agora o que eu preciso é de me tratar. Venho aqui de tal maneira que em Lisboa, andei lá a dar umas voltas e fomos parar a uma feirazita, onde havia uma coisa daquelas que se atira, para ver a força, e faz um estoiro. Eu estava distraído, ouvi aquilo, «buum», atirei-me logo para o chão, ali na feira. As pessoas até ficaram a olhar para mim espantadas. É para verem como eu venho dos nervos.

— No comboio vinha lá um turra, eu já o tinha visto em Santa Apolónia. Quando ele passou na carruagem em que eu vinha, foi preciso os outros agarrarem-me para não me atirar a ele. Como eu venho!

Nesta altura os comentários multiplicavam-se, a conversa generalizava-se. O Martins, alheio, continuava a falar, sozinho, voltando-se para vários lados, a olhar para o chão. De novo começou a manifestar o seu ódio aos negros:

— Aqueles turras, deviam morrer todos. Nem um ficar vivo. Os assassinos! Só queria apanhá-los aqui; aqui é que eu os queria apanhar. Não me aparecer aí uma dúzia deles que eu dizia-lhes como era…

Mas ouça – disse-lhe um passageiro – deixe-se disso agora, já cá está, para que é estar agora a pensar mais nisso? Você precisa é de se tratar, repouso.

— Tem razão, o que é preciso é tratar dos nervos. Os pretos que vão para a merda. Eu ainda estive para lá ficar, para os continuar a matar, a esses malditos. Era para ir para os guerrilheiros, para o Congo. Mas comecei a pensar nos que cá tenho e acabei por vir embora. Se não ficava lá a matar pretos. 

— Mas ouça lá – interrompe o homem da boina – nem todos são turras. Há por lá muitos que até combatem ao lado dos portugueses.

— Olhe, está a ouvir, são todos! Todos eles são turras, todos esses pretos. Isso deles estarem nas aldeias, ou nos quarteis a combater connosco… ao pé de mim não havia nenhum, senão também ia.

— Olhe, eu uma vez fui lá a uma aldeia, uma aldeia pequena, de poucas cubatas. Porque eu sabia que eles lá também estavam unidos aos turras, a dar-lhes informações. Andei lá a ver e fui ter a uma cubata afastada. Eu já desconfiava… estava lá uma preta sozinha, mais três turrazinhos pendurados nas costas. Nem sei o que aquilo parece, são bichos, morcegos, ali amarrados às costas da preta. Então eu fui para ela e perguntei-lhe: «Onde é que está o teu homem?», «anda, responde». E ela, a tremer, encostada a um canto com os três turrazitos às costas, cheia de medo, com aquela voz, que até me metia nojo, «mata, mata». «Onde é que está o teu homem, preta dum raio, ou dizes ou vês o que te acontece». E ela, a tremer: «mata, mata». Tirei da faca, pus-lhe as mãos no pescoço, encostei-lhe a ponta à garganta, «falas ou não falas?». E ela: «mata, mata».

— Meti-lhe aquela faca, tão afiadinha, pelo pescoço dentro. Começou logo a jorrar sangue, aos esguichos. Parecia uma franga a espernear, «glu, glu». Ainda não morres? Meto-lhe a faca por baixo da garganta, aquela faca tão afiada com aquela serra, puxo para baixo até ao fundo da barriga. Lá vai ela para o chão com as tripas de fora – o comando Martins exemplificava o acto com gestos meticulosos, o braço estendido, a mão a empunhar a faca invisível.

— Olhei para ela, os turrazitos ao lado, a chorar com aquelas caras de morcegos. Aquilo foi uma limpeza! Um por um! Peguei num pela asa, levantei-o com uma mão e com a faca, zumba no pescoço, para baixo, num instante. Ficou cortado em dois. Aos outros a mesma coisa. Um por um, pelas asitas, espeta-se no pescoço e puxa-se a faca para baixo, pronto. Ficam em dois – mais uma vez o Martins exemplificava, com a mão esquerda no ar como que a segurar o negrinho por um braço. A mão direita atira-a para a frente, quase junta à esquerda, com um gesto muito firme, denotando a perícia com que utilizava a faca. Logo a seguir, noutro golpe, puxa o braço para baixo, supondo-se a abrir o ventre da criança.

  — E aquilo foi só uma, entre tantas que eu fiz por lá. Era assim e assim mesmo, haviam de ser todos como eu que não ficava um preto vivo. Eu queria era ficar lá, mas não era só em Sá da Bandeira, era correr aquilo tudo à bomba. Bem, agora cá estou, acabou-se. Mas eu não imaginava que voltava, nunca pensei, nem na viagem. Quando me disseram que era para vir embora… só acreditei quando desembarquei em Lisboa. E mesmo assim… quando vi sair do barco cento e cinquenta caixões… aqueles assassinos!

VI

O Martins refugiava-se naquela ilusão de considerar assassinos os negros que deixou em Angola. Por qualquer motivo convencia-se e convencia os outros que quem tinha morto os seus colegas foram os turras, os pretos. Talvez ele não soubesse que os que mataram e continuam a matar os seus colegas, e também aqueles a quem ele chama assassinos, não estiveram nas matas de Sá da Bandeira  mas estão cá, no nosso país, são nossos compatriotas. A ignorância faz confundir, ou antes, inverter totalmente, a noção que temos de assassino. Talvez não cheguemos nunca a saber quem são os verdadeiros assassinos, onde quer que eles existam, em tempo de paz ou em tempo de guerra. Mas uma coisa podemos saber desde já: aquele garoto ruivo, das bandas da Gafanha, aquele cabo-comando-sapador que nos conta com uma voz cheia de pausas, um olhar inquieto e ansioso, como esteve em Angola, e que entremeia frequentemente no relato a frase: «tive pena foi do outro rapaz, éramos tão amigos!», esse garoto ruivo de olhar nervoso e profundo não foi nunca um assassino. Ele foi, sim, uma arma humana nas mãos dos assassinos que para Angola o enviaram.

— Ó Martins, olha a camioneta! – grita alguém atrás de mim.

— Já?! Ainda não está na hora.

— Está, pá! Anda embora, olha que perdes a camioneta. Vai partir!

O Martins pega então no seu saco militar e numa mala pequena e sem dizer mais nada desaparece repentinamente. Há outros que o seguem, vão apanhar a camioneta que lá fora espera por eles. Levá-los-á à terra, àquela terra onde nasceram e trabalharam, para onde vão de novo trabalhar e provavelmente onde morrerão. Àquela terra que os guardará no seu seio. Que é a deles. A terra deles! Que a fizeram com o suor das gerações de tantos como eles, esquecida, ignorada… nunca souberam que essa é que valia bem o seu sangue e os seus dedos crispados nos gatilhos e nos punhos das baionetas, que essa é que é a sua verdadeira terra. 

O Martins esfuma-se tão repentinamente como tinha aparecido meia hora antes. A mim parece-me sintomática essa maneira de ser tão característica no Martins: como muda de tema durante a conversa, como ignora as perguntas que lhe fazem, como lhes responde noutra fase do diálogo, como aparece inesperadamente e como inesperadamente mobiliza a atenção de todos os presentes; e como agora, depois da sua súbita desaparição, se quebra o laço que une num círculo todas aquelas pessoas. Sintomática de algo é essa maneira característica de fazer por si só saltitar, como numa peça demasiado dramatizada, as situações e a consciência que as situações provocam nos que ali, na estação ferroviária de Aveiro, acompanham imóveis as várias fases do combatente. Da sua chegada, do seu relato, das quebras e mudanças do diálogo, da sua partida.

A estação fica como que deserta. Ao meu lado não fica ninguém, todos dispersam. A maior parte retirou, uns para o centro da cidade, outros para a camioneta e alguns para o interior do comboio da linha do Vouga. Fica o bagageiro encostado à porta da gare, o empregado da bilheteira que entretanto abriu e duas pessoas encostadas, em silêncio, à parede lateral à mesma bilheteira. Ainda é noite e o frio não abrandou… afinal é essa temperatura tão baixa aquilo que parece falar mais de realidades, por contraste: o contraste entre as temperaturas altas das terras longínquas e as das Gafanhas e da Ria de Aveiro. 

Como se tudo fosse solidão, permaneço ali quieto, no mesmo sítio. Não por estar a pensar em alguma coisa, mas sim a saborear ignorantemente o vazio da sala, o ambiente agressivo que essa sala parece possuir. Ou antes, a sala parece possuir, de uma maneira violenta, uma consciência própria, de falta, de ausência. De vácuo.

Foi-se o Martins, o cabo sapador, o comando, o garoto ruivo. Na sala profunda cheia de consciência, ficam como que a pairar, superior a mim, entre a solidão, aqueles olhos escuros, aquele olhar.

VII

A cidade de Aveiro quando percorridas as suas ruas numa manhã ainda noturna de outono ligeiramente chuvoso, quando aquela profusão de vielas, ruas e uma larga avenida discordante e separadora como um cutelo, desloca-se sob os meus pés, numa caminhada rápida e labiríntica. A cidade é um reservatório de formas que escondem, contém em si, mostram em pequenos, fugazes momentos, como flashes de câmara fotográfica. Formas estranhas dos pensamentos recordados. Vão-se encontrar, ali ao fundo da avenida, de encontro àquele mastro artificial colado ao breu. Há pontes espalhadas sobre troços de águas escuras e é nelas que instantaneamente parecem flutuar cadáveres muito quietos, logo a seguir submersos. Há uma praça enorme onde as sombras das árvores parecem homens muito magros, escuros, guerreando-se sem se mover. Ruas que sobem, edifícios que crescem, figuras humanas recortadas nas paredes de pedra esperam a todo o dobrar de uma esquina. Vozes. Cânticos. Dizem, falam, murmuram. Palavras, sons metálicos, aços e ferros, um dobrar de finados na abóbada imaginária da cidade fechada. O céu cai-nos em cima e ainda recordamos a estação ferroviária. Lá ao longe ouvem-se os silvos… mais perto de nós caminham levitando inúmeras presenças, rodopiando, até ser dia.

Uma pequena cidade na província esconde também muito em si. Como todas as cidades, todas as vilas e aldeias. A caminhada não pode parar enquanto houver noite sobre as ruas. Impossível abandonar a cidade enquanto a sensação da cela gigante envolver connosco todo um povo. Já se ouve a partida anunciada ao longe do primeiro comboio para o Vouga. Esperemos por outro, um qualquer que parta mais tarde.

Acabo por perder também o segundo comboio da manhã e só partirei no seguinte, o da uma da tarde, aquele em que vão os estudantes. Entretanto fui recordando os locais que mais me interessavam, aqueles que eu frequentava mais assiduamente quando estudava em Aveiro. Percorri ruas, bairros, fui às escolas, aos cafés, às livrarias. Evitei procurar os antigos colegas, parecia-me que naquele momento nada me tinham a dizer. A cidade, assim que lá cheguei, já me tinha dito tento nesse dia!

Finalmente dirijo-me de novo à estação, compro bilhete para aquela terrinha onde alguém me devia esperar. No comboio encontro pessoas conhecidas, algumas que não via há anos. E também soldados que iam de licença e foi com estes que conversei durante a viagem. Sobre o que faziam, como eram tratados, o que os aguardava. Sobre a guerra e sobre a paz.

Esta segunda viagem de comboio, bastante mais curta do que a primeira, para quê falar dela? Para quê voltar a falar do meu amor pelos comboios, se eu sei que nunca viajarei neles com uma farda pintalgada de combate como a que usava o Martins! Sim, os comboios, estes do nosso tempo, estes que trazem de Santa Apolónia mensagens de poesia e as espalham por todo o país, como poemas que se atiram das alturas para que caiam sobre as cabeças de cada um, de todos que são este pequeno povo. Mensagens de poesia, poemas… também os há nestes destroços que regressam. Muito diferentes daqueles que eu cantava quando, anos atrás, ia passear para as gares das estações ferroviárias.

Na segunda viagem de comboio sabia que me esperavam numa estação perdida. Sabia, sei agora, que em todas as viagens de comboio está sempre alguém à espera, aguardando impacientemente que eu chegue. Talvez um dia chegue a todas essas estações perdidas na terra, a quem tiraram o seu sangue para com ele ir regar outras terras que não o querem nem nunca o pediram.

por Rui Lourenço
A ler | 8 Junho 2020 | comboios, guerra colonial, regresso