Entre as palavras e memória: o grito silenciado da Guiné Equatorial

Livro: Landry-Wilfrid Miampika [editor], La palabra y la memoria: Guinea Ecuatorial 25 años después, Madrid, Editorial Verbum, 2010

A Guiné Equatorial continua a ser uma realidade improvável no imaginário lusófono; improvável porque desconhecida ou apenas lembrada pela posse de jazidas de petróleo, por um regime ditatorial, caracterizado pela violência, e por uma tentativa de adesão à CPLP conturbada. Para os meios de comunicação social e para os leitores lusófonos pouco mais existe, apesar da ligação histórica de Ano Bom a Portugal e de São Tomé e Príncipe partilhar um arquipélago em que se inserem as ilhas sob soberania da Guiné Equatorial, a saber a referida ilha de Ano Bom e a antiga ilha de Fernando Pó, hoje Bioko. Ano Bom possui mesmo um crioulo derivado do português, hoje em decadência, e na sua música tradicional ainda é visível essa influência, pois a missionação começa com a presença portuguesa e com a disseminação da tradição oral de origem portuguesa que se vai fundindo com as tradições locais. Contudo e apesar de todas as vicissitudes, de dois regimes ditatoriais duros que silenciaram e, depois, controlaram, com recurso a meios mais ou menos violentos, a expressão intelectual, existe criação artística neste país. No seu interior ou no exílio, existe um grupo de intelectuais que elevam a voz da Guiné Equatorial. Expressando-se em espanhol, língua oficial do país e herdada da colonização, apresentam-se já com a sua singularidade de serem dos poucos a usarem esta língua como meio de expressão em África, fazendo-se acompanhar do caso de alguns escritores marroquinos, alguns (poucos) dos Camarões, o que os introduz directamente no meio das letras castelhanas cuja projecção internacional é notória e que podemos comprovar pelo número de prémios Nobel da Literatura que usam esta como a sua língua de criação artística. Infelizmente, em Portugal não existem traduções de livros destes autores, tampouco há conhecimento sobre a sua produção literária e a sua divulgação concentra-se em poucos estudos ao nível académico. Embora seja esta a situação no âmbito da lusofonia, a verdade é que, neste momento, a literatura produzida por autores equatoriano-guineenses já é estudada em alguns países como o Gabão, a Costa do Marfim, o Senegal, o Gana, a Nigéria, a África do Sul, Madagáscar, França, Reino Unido, Suíça, Áustria, Alemanha, Itália, Chile, Colômbia e Estados Unidos da América. 

Num país sem imprensa, sem editoras, sem livrarias, em que as bibliotecas existentes são coordenadas pelas cooperações estrangeiras, em que o analfabetismo atinge valores altíssimos, em que os intelectuais sofrem acções persecutórias não é de estranhar esta situação e ainda se estranha menos que acabem escrevendo e publicando no estrangeiro, mesmo quando não abdicam de viver em solo pátrio. Se bem que recente, a sua produção literária já apresenta diversidade tanto em termos de géneros, como de estilos, de conteúdos e de gerações em escrita. Se entre os autores mais consagrados e representando a geração da independência, existe uma fusão entre o sentido estético e a função social da literatura, virada para os dramas individuais e colectivos que regimes cruéis têm imposto, uma geração mais nova tem tentado ancorar-se nos elementos estéticos, recriando alternativas a uma literatura mais agarrada ao realismo e à violência sofrida, por leituras mais amenas, por vezes, até repletas de sentido de humor, mas que não negam o seu papel social na denúncia de situações abusivas que se sucedem. É nesta geração mais nova que vemos surgir temas como o amor, o relacionamento passional, a saudade, a perda no seu sentido intimista, o ciúme que poderão ser o motor da acção narrada. De todas as formas, prepondera, ainda, um conteúdo condicionado pelos desafios que o quotidiano impõe e pela voz de Donato Ndongo, um dos nomes maiores da literatura da Guiné Equatorial, aparece sintetizada na frase: La utopía no ha muerto, tenemos que conseguir lo que ahora parece imposible. Aunque como escritores no estaremos obligados a llevar a la práctica nuestras ensoñaciones, al carecer de todo poder tangible, sí tenemos el poder de anticipación, el poder de proponer, el poder de transformar, el poder de la palabra, vehículo de toda acción.

Entremos, agora, no livro, depois desta muito breve e sucinta apresentação do panorama da projecção literária equatoriana-guinnense (ou falta desta) entre os países lusófonos. Dividido em quatro partes, uma dedicada ao ensaio, uma à poesia, uma aos relatos/contos e outra ao teatro, este livro junta um conjunto de nomes representativos do panorama literário da Guiné Equatorial, presentes no primeiro congresso dedicado às literaturas hispanoafricanas e subordinado ao tema “De Guinea Ecuatorial a las literaturas hispanoafricanas”, (http://www.hispanoafricarte-literaturas.com/congreso_2008/2008.html). Landry-Wilfred Miampika, editor desta obra, apresenta um trabalho intitulado “La palabra y la meoria en Guinea Ecutorial: un cuarto de siglo de travesía”, em que explica o porquê destes 25 anos depois. Tinham passado 25 anos sobre a publicação da Antología de la Literatura Guineana, da autoria do já citado Donato Ndongo, que, apesar de ter passado quase despercebida no país em que foi publicada – Espanha – é, actual e quase unanimemente, aceite como o acto, senão fundador, revelador da existência de uma literatura equatoriano-guineense. Estava-se no rescaldo da dura ditadura de Francisco Macías e toda uma geração de intelectuais tinha sido forçada ao silêncio. As vozes dispersas levantavam-se no exílio, mas sem poder elevar-se ao ponto de serem escutadas por quem de direito. Landry-Wilfred Miampika reflecte sobre os obstáculos ao desenvolvimento desta literatura, revelada tardiamente, pois eram passados 16 anos sob a independência quando aparece esta publicação. Silenciando a letra e a expressão da memória e não sendo hábil na construção de uma nova memória colectiva, com fundas raízes identitárias, o regime de Macías limitou-se a silenciar, a perseguir e a destruir e é no meio de toda essa destruição que surge a palavra sobrevivente, a palavra resistente, a palavra bela, a palavra veículo de construção de uma história própria enquanto sujeito, abandonando de vez a posição passiva de alvo da construção história alheia, da história objecto.  

Landry-Wilfred MiampikaLandry-Wilfred Miampika

Comecemos a ler o livro, através dos criadores que aqui se apresentam. Primeiro, vejamos a capa, no fundo, o rosto do livro. Com uma ilustração de Ramón Esono que faz contrastar o cinzento de uma sala pequena, mais parecendo uma cela, com os símbolos do poder, da censura e da persecução, representados em tons vivos, numa clara expressão da violência do poder face à livre expressão que, impondo o silêncio no país, não tem conseguido calar a afirmação intelectual e artística dentro e fora das suas fronteiras. A contribuição deste artista plástico equatoriano-guineense, que também se dedica à banda desenhada com uma série denominada Ramón y Queso (http://jamonyqueso.info) ganha expressão porque, através desta, é perceptível que não só a palavra como o traço são denunciadores de algo que atormenta todos os que pretendem produzir arte e visões alternativas à realidade confrangedora. Aliás, o tom de crítica social e política, o sofrimento e a dor acompanham várias das expressões que encontramos nesta obra, contudo de forma criativa e tão diversa que nos poderá parecer que, em alguns casos, se dissipou.

A parte I, dedicada aos ensaios, é aberta por Donato Ndongo que apresenta a sua experiência e refere as suas influências e propósitos. Considerando-se um modesto seguidor de nomes como os de Kwame Nkrumah, Amílcar Cabral ou Agostinho Neto, pela sua luta contra todas as formas de colonialismo e opressão, também partilha com eles a noção de que é necessário manter alguns dos elementos culturais deixados pelo colonizador, entre estes a língua, propondo que o africano deve viver no tempo presente as estruturas da sua tradição e assumir as vantagens da modernidade, fundindo conceitos da tradição e da modernidade, ultrapassando uma dialéctica de oposição que tem caracterizado as discussões em torno deste tema. Aborda temas como o sentido estético da literatura, a construção identitária e cultural dos países mais jovens e o papel social da arte.

Segue-se Justo Bolekia Boleká que reflecte sobre o papel dos produtores culturais na construção identitária de uma comunidade que tem tido pouco investimento em termos educacionais ou culturais por parte do seu próprio governo. Fala das línguas mais usadas (entre estas, o francês, pois a Guiné Equatorial faz parte da Comunidade Económica e Monetária da África Central e, portanto, teve de torná-lo língua oficial) e na quase universal expressão em espanhol para a arte da escrita e dos perigos que esta enfrenta se não conseguir uma afirmação original, como o facto de poder ser ignorada, invisível, coisificada, folclorizada ou menorizada dentro de um âmbito muito vasto que é o da hispanidade.

Sucede-se César A. Mba Abogo que considera como elemento diferenciador a solidão que seria a grande tragédia a ser tratada no seio da identidade da Guiné Equatorial. Solidão devida ao isolamento externo? Solidão por não poder comunicar e mostrar-se? O autor deixa-lo em aberto, contudo é por essa solidão que homenageia os escritores que lhe deram voz mesmo quando a solidão se fechava no silêncio imposto, e fá-lo para os escritores exilados que, assim escrevendo, não abandonaram o país, para os que escrevem lá dentro e para os que voltaram. E quase termina, perguntando, porque seria que, apenas e ao final de 40 anos de independência, o mundo estaria voltado para a Guiné Equatorial. Será pelo petróleo ou porque essa solidão está a ser interrompida por vozes que se elevam para denunciá-la?

Chegamos à vez de Juan Tomás Ávila Laurel que, começando pela sua história pessoal, recria as continuidades e descontinuidades trazidas pela transição do regime colonial para a independência, denunciando, também, a insularidade acentuada por que passa a sua ilha natal, Ano Bom, completamente isolada do exterior e abandonada à sua sorte. Termina referindo o essencial, pois apesar de tudo decidiu escrever a partir daquela ínsula, sabendo das dificuldades, dos obstáculos e dos riscos… Não sabemos a que ilha de refere, pois não vive em Ano Bom, mas em Bioko, mas será que é toda a Guiné Equatorial que assume o papel de ínsula, abandonada à sua sorte ou apenas a ilha donde nos escreve?

Por seu turno, Joaquin Mbonio Bacheng, centra-se na originalidade da produção literária equatoriano-guineense, fruto de um ambiente multicultural e variado e de experiências que vão desde o exílio espacial ao exílio temporal que, devido aos condicionamentos políticos, silencia mesmo aqueles que têm uma mensagem a deixar. Finaliza definindo a literatura produzida por autores da Guiné Equatorial como afro-ibero-americana, pois se a expressão é em espanhol, toda a formação estética e de conteúdo do texto literário obedece a uma lógica local, africana, portanto, que vai desde o recurso aos termos próprios do espanhol falado na Guiné Equatorial até ao delinear da narrativa, passando pela própria construção do herói; aqui um heróis que encarna a linhagem, o clã e a etnia. Ousa ir mais longe e revelar que esta literatura representaria uma latinidade africana, baseada numa originalidade cultural de encontro entre diferentes tipos de cultura.

A parte II é dedicada à poesia e apresenta três poetas, Ciriaco Bokesa, Juan Balboa e Recaredo Silebo Boturo. Ciriaco Bokesa toma duas referências geográficas e culturais, Europa e África, para compor o seu poema “Año de nieves, año de bienes”, apropriando-se de um provérbio europeu para construir uma imagem poética de alternância entre uma realidade e outra. Em permeio surge Obama, o lírio negro, que parece simbolizar o encontro destes dois mundos. Juan Balboa apresenta dois poemas: “La rueda del tiempo” e “Añoranza”, dedicando-se o primeiro à reflexão sobre passado, presente e futuro e a como interagem, e construindo o segundo em torno do exílio, da orfandade sentida, da nostalgia que se impõe. Recaredo Silebo Boturu apresenta-nos “Canto a África” e “A Boitta, mi angelito”, se o primeiro fala-nos de um percurso colectivo de uma África que apesar de independente não se concretizou, porque ainda sofre de males antigos e oprime os seus filhos, o segundo, de carácter mais intimista, é dedicado ao filho do autor, tornado no receptor de toda a mensagem que o eu poético transmite, é também o símbolo da esperança, da força da vida e da procura da harmonia e da paz, ou seja, símbolo da crença na mudança e de uma vida que já não teria de ser a mesma…

A parte III tem por título “Relatos” e engloba pequenas estórias contadas a diversas vozes. Alguns nomes dos capítulos precedentes repetem-se como Ciriaco Bokesa e César A. Mba Abogo. Ciriaco Bokesa apresenta uma estória em torno de três sacerdotes, perseguidos pelo poder da jovem nação que, no final, se vêm obrigados a aclamar o novo regime, contra o imperialismo, contra o colonialismo e a fome e pela autenticidade africana, o que passaria por alterar os próprios nomes que cada um tinha ganho, por imposição de uma cultura alienígena. César A. Mba Abogo conta-nos duas estórias, uma partindo de uma história de amor, repleta de vicissitudes em que a literatura aparece como terapia, a única possível e benéfica no momento, e uma outra construída a partir de uma suposta troca de correspondência por mail, em que no final Europa e África se encontram. Guillermina Mekuy, a única mulher que apresenta um trabalho nesta colectânea, dedica o texto a seu pai, numa vertente intimista, tomando, de novo e no seguimento do que faz César Mba Abogo, o individuo como o centro da narrativa. José Fernando Siale Djangany, com recurso à metáfora e à construção de um imaginário alternativo à realidade, traz à superfície a dualidade entre realidade e ficção, como se se tratasse de um jogo de sombras complementares entre o que é e o que poderia ser. Maximiliano Nkongo Esono, partindo de um ambiente festivo em Malabo, denuncia uma série de situações que aparecem como que esfumadas no centro da narrativa, como a bruxaria, a corrupção, a violência repressiva, a falta de condições, os dramas sentimentais, o medo da traição, o ciúme, ou seja, combinando dramas sociais e individuais e colocando no centro a ida de uma casal a uma festa, constrói toda uma narrativa reveladora da sociedade local. Mithoa Ondo’o Ayekaba apresenta, também, duas estórias. Em ambas a partida do elemento masculino da família ensombra a narrativa que vai abordando se bem pelos olhos, num caso de uma criança e de outro de um jovem, todas as problemáticas inerentes à sobrevivência hoje num ambiente dominado pela pobreza e pela carência de desenvolvimento, incluindo o papel da religião e das ONG.

Por fim, a parte IV dedicada ao teatro que nos traz uma peça de teatro de Juan Tomás Avila Laurel, autor, também, incluso na parte I. Dois cenários constroem a peça, um, o bar, o outro, o barco. Como personagens apresentam-se o padre, o médico, o empregado do bar, o comandante e os passageiros do barco. Em torno de uma descoberta científica são abordados temas como a independência, o isolamento das ilhas, os preconceitos e favorecimentos éticos, sempre num tom jocoso elevado até ao satírico, servindo a viagem no tempo e no espaço para demonstrar como poucas coisas teriam mudado desde a independência num exercício de criatividade interessado, apesar de fortemente localizado, tanto em termos temporais como espaciais.

Terminando o trajecto por este conjunto de textos, parece-nos a obra bastante interessante por nos fazer percorrer alguns dos principais nomes da literatura da Guiné Equatorial e ponderar a relação entre estética e temática proposta por uma literatura ainda muito pouco divulgada entre nós. Se, na verdade, todos estes autores aceitam a forte influência das letras hispânicas na sua produção literária, também é verdade que se sentem pertença de um continente outro, daí a insistência na procura de um termo conceptual que os localize e na imagem poética daquele que está entre duas margens, mestiçado por vontade ou imposição, mas consciente da conciliação de várias heranças culturais. Agora não fundando ou revelando, antes reafirmando a existência de uma expressão literária, estes autores revelam estilos de escrita e temáticas variadas que atestam uma variedade expressiva relativamente recente. 

por Cátia Miriam Costa
A ler | 22 Outubro 2010 | Guiné Equatorial, Landry-Wilfred Miampika, Literatura