"Decolonizar o Museu" is beautiful,

Às voltas com o privilégio de poder ler o livro da francesa Françoise Vergès, Decolonizar o Museu, para dar aula como professor temporário e precarizado na UERJ. Instituição que tem uma bela nova escultura entitulada “A Negra”, de Angelo Venosa, mas que teve nessa semana uma greve de servidores técnicos, uma instituição que volta e meia suspende as aulas por conflitos no Morro do Macaco, logo ao lado. Mas você não acredita no simbólico e na arte, Leonardo, porque se meteu com as humanidades e a docência? Por ingenuamente acreditar, desde os tempos de moleque, em alguma transformação real de mundo e não uma mera representação simbólica, apenas. Pois é disso que se trata “Decolonizar o Museu”. A francesa chuta o pau da barraca, de forma bastante militante e arrogante, propõe um novo museu sem os objetos troféus da branquitude, um museu que protagonize os” space invaders”, um pós-museu fórum de projetos sociais comunitários, um museu que produza uma desordem absoluta, uma revolução anti-capitalista. Ou melhor, como a autora propõe, uma luta abolicionista. Palavras lindas e emolduradas. Boas para o ego (da autora). Pena que não chegam nos quartos de empregada cujo curador é o pastor, é o traficante, é o miliciano. Como a francesa fala de pós-museu sem falar de acessibilidade? Sem falar de financiamento público e privado para subsidiar as políticas dessas instituições? É lindo ler a sugestão de uma instituição que pague uma faxineira igual a um curador, um estagiário do educativo igual a um artista. Mas como ela propõe efetivamente tal decolonização? Nas frestas moleculares das “coreografias do impossível”? Ora, faça-me o favor. Não adianta estampar a liberdade e pendurar os sonhos na varanda. Isso alivia o ego repleto da culpa branca de quem sempre esteve no lugar do poder e das elites, essas elites à esquerda, que são tão cínicas e violentas quanto as elites de direita.

Vergès critica o “mudar para que nada mude de lugar” nos museus, bem aos moldes da captura multicultural neoliberal. Cale a boca, agora você está dentro. Quando os sujeitos e artistas negros entram no museu, ele enegrecem o museu ou são embranquecidos? São domesticados? Faxineiros, estagiários e substitutos estagiários ganhando migalhas; contrastando com as cifras das feiras, galerias e do curadores/diretores artísticos dos equipamentos culturais brasileiros que chegam a ganhar de sessenta a oitenta mil reais. E ainda tem o Luciano Huck como associado/amigo do museu vetando determinadas obras. É possível decolonizar o museu, Sra. Vergès? E o que pensar quando o batom da representação é usado pelos museus comunitários, indígenas, quilombolas e pretos das ocupações mundo afora? Que museu se quer demolir? E quando o colonizado usa as armas do colonizador? Aliás, a autora parece estar inventando a roda, mas ela é muito bem intencionada, é claro. Deve dormir prazeirosamente num quarto com uma cama enorme. Decolonizar o museu é escrito com muita fúria, dá para sentir nas entrelinhas. A capa da edição brasileira tem uma mulher segurando uma fálica metralhadora. Curiosamente, o velho lema de “pegar em armas” hoje anda à direita. Assim como o antigo lema da esquerda da liberdade de expressão. É “proibido proibir”, já cantou Caetano Veloso.

Hoje a esquerda é moralista, censora, lacradora, uma “esquerda lugar de fala”, Alexandre de Moraes. Françoise Vergès propõe ainda no livro, que tem um capítulo intitulado “Negro é o modelo, branca é a moldura”, não se acomodar com o “melhor que nada” e substituí-lo pelo “porque não?”.

Ora, Sra. Vergès, é fácil falar isso do seu lugar de “escritora revolucionária” sem ficar estigmatizado, sem tomar uma justa causa, sem passar de maluco, sem sofrer um assédio por uma psicologia moral que te põe no seu devido lugar de empregado. De fato, o museu colonial que ela pretende combater e revolucionar é um belo passeio pela Casa Grande, esse lugar da representação. Bem distante dos quartos de empregada do mundo real. Aquele das contas a pagar, do SPC e do Serasa, das dívidas retroativas, dos diplomas inúteis, da uberização, dos karmas históricos. Só sendo terrano mesmo, cosmopolítico interespécies, que Gaia nos salve dessa merda toda! De todo modo “Decolonizar o Museu” is beautiful, vale a leitura. 

por Leonardo Bertolossi
A ler | 29 Maio 2025 | descolonizar o museu, Françoise Vergès