A Urgência do Crioulo Guineense

fotografias de Catarina Laranjeiro

Acreditando numa história colonial fantasiada, afirma-se habitualmente que 200 milhões de pessoas em todo o mundo falam português. Na Guiné-Bissau, a mais mal amada de todas as ex-colónias portuguesas, que serviu, essencialmente, a metrópole como interposto comercial, estima-se que a língua portuguesa seja apenas falada, e pelo que me foi dado a conhecer, com muitas dificuldades, por apenas 10 por cento da população. 

Nem mesmo a elite mais instruída fala português espontaneamente, sendo o crioulo a língua ouvida nos cafés, nos mercados, nos transportes, e até na qual decorrem os debates na Assembleia Nacional. Tendo surgido da necessidade de comunicação de uma sociedade multilingue com o regime colonizador, é a língua veicular entre os diferentes grupos étnicos num país em que se somam cerca de vinte e cinco, constituindo por isso a língua de unidade nacional. Falada actualmente por 90 por cento da população tem vindo a ser reconhecida por um pequeno grupo como guineense ou Crioulo da Guiné. Autónomo do ponto de vista gramatical e lexical (Augel, 2006) tem sido uma tarefa árdua e inglória as várias tentativas do seu reconhecimento como idioma escrito (Scantamburlo, 1994). 

Segundo Carlos Lopes, “o crioulo durante a longa noite colonial foi sistematicamente desprezado, considerado um dialecto redutível ao português, falado por africanos, proibido no ensino” (1988: 227). Assim, reprimido durante o regime colonial, veio a ter a sua forte expansão com o movimento de libertação que deste se serviu para passar a sua mensagem a todo o país. Durante este período, toda a alfabetização foi feita em crioulo, tendo, inclusive, após a independência, tido o apoio 

de Paulo Freire na sua execução pedagógica. Contudo, todo este movimento pelo ensino do crioulo guineense acabou por quase desaparecer devido ao intuito do governo da Guiné-Bissau de provar ao mundo a sua modernização ou europeização, anulando para isso, a sua língua, parte importante da sua cultura popular e tradicional (Augel, 2006). 

E foi assim que nas escolas se passou a ensinar em língua portuguesa. Professores que não falam português ensinam português, originando o maior desastre pedagógico a que tive oportunidade de assistir. 

A convicção de que a língua oficial portuguesa é uma forma de afirmação da Guiné-Bissau na comunidade internacional junta-se actualmente à ameaça vigente de uma possível invasão francófona dos países vizinhos, como o Senegal, Mali e Conacry, que levaria Portugal a perder um dos seus territórios lusófonos. Cientes deste facto, um dos objectivos principais da Cooperação Portuguesa na Guiné-Bissau tem sido o forte investimento em programas de ensino da língua portuguesa. 

Mas esses projectos distorcem a realidade ao pressupor que a Guiné-Bissau é um país de língua portuguesa, negligenciando que a transmissão desta língua foi sempre feita através da imposição, que é falada por uma extrema minoria e que o português escrito (slogans, produtos comerciais, jornais, etc.) não está acessível à grande maioria da população. Recordo uma aldeia Mandinga, na zona de Bafatá, em que as crianças falavam fluentemente Mandinga (a sua língua materna), Fula (língua étnica das aldeias vizinhas) e Crioulo. Mas na escola confrontam-se com enormes dificuldades de aprendizagem em língua portuguesa. Neste contexto, as implicações que o termo “lusófono” adquire são bastante perversas. De facto, é infrutífero ler e repetir textos em português quando, na vida quotidiana, a cultura é veiculada por meio de outras línguas (Scantamburlo, 1994). A alfabetização na língua materna, é algo já defendido pela UNESCO desde 1953, e inúmeras pesquisas e experiências têm vindo a confirmar (Augel, 1997). Segundo a mesma autora, o crioulo como língua de alfabetização não vai resolver todos os problemas do sistema escolar da Guiné-Bissau, mas continuar a ensinar em português é perpetuar o insucesso escolar generalizado. 

Paradoxalmente ao facto do crioulo não ser reconhecido como língua de ensino e ao impasse que persiste relativo à consolidação da sua codificação escrita, este é sistematicamente utilizado pelo Governo, Igreja Católica, ONGD e empresas privadas sempre que pretendem alcançar o grosso da população. Todos as mensagens, seja em campanhas eleitorais, operadoras de redes móveis, mensagens de prevenção do HIV/SIDA, cólera entre outros, até às publicações da Igreja Católica, são redigidas em crioulo. A rádio e a televisão também reconhecem a eficácia desta língua para a difusão nacional, uma vez que é nesta que a grande maioria dos programas (não importados) são transmitidos. Na literatura na Guiné-Bissau, os termos em crioulo são cada vez mais utilizados, existindo já obras de poesia exclusivas nesta língua. Alguns intelectuais guineenses têm vindo a assumir cada vez mais uma postura de contestação à nacionalização da língua portuguesa. A música popular desde cedo se manifestou em crioulo. Dinamizada primeiramente por José Carlos Schwarz, que teve a ousadia de cantar nesta língua durante a guerra de libertação, este movimento continuou a ter força com bandas como os Super Mamajombo ou Tabanca Jazz. Actualmente, assiste-se ao surgimento de bandas e cantautores que produzem música nas suas línguas étnicas e crioulo, como os Super Camarimba e Kimi Djabaté. Ainda, é em crioulo que todo o movimento  Rap/Nova Geração que tem vindo a surgir na última década em Bissau, se exprime. 

Se a Guiné-Bissau escolheu politicamente a Língua Portuguesa como língua oficial e de ensino, escolheu espontaneamente o crioulo como língua de cultura e comunicação. Amílcar Cabral defendia que “a língua portuguesa era uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram”, pelo facto de permitir aos guineenses comunicarem-se com o mundo (Embaló, 2008). E de facto, é inegável a necessidade da população guineense falar outras línguas. Mas é imprescindível que a sua língua, o guineense, seja reconhecido uma vez que a sua expansão se deve ao facto de constituir o transmissor de cultura por excelência. 

O conflito que tem existido face à primazia do crioulo ou do português, revela que essas são duas línguas com estatutos e funções diferentes. Mas que se complementam. Se o Português é a língua oficial na qual a Guiné-Bissau se pode afirmar na comunidade internacional, o Crioulo é a língua transmissora de cultura, veicular, materna ou segunda para a maioria da população (Scantamburlo, 1994). É preciso então, que cada língua encontre a sua função, e que a língua portuguesa deixe de tentar desempenhar as funções do crioulo. Torna-se assim imprescindível criar condições para que haja espaço para as duas línguas. Consequentemente, o bilinguismo surge como o único percurso possível para o reconhecimento das funções complementares que a Língua Portuguesa e a Língua Guineense desempenham no processo de desenvolvimento da Guiné-Bissau. 

Bibliografia 

Augel, Johannes (1997). O crioulo na Guiné-Bissau. Afro-Ásia, 19/20,p.251-254. 

Augel, Moema Parente (2006). O crioulo guineense e a oratura. Scripta. Belo Horizonte,v.10 nº19, p.69-91. 

Embaló, Filomena (2008). O crioulo da Guiné-Bissau. Língua Nacional e Factor de Identidade Nacional. Papia 18, p.101-107. 

Lopes, Carlos (1988). Para uma leitura sociológica da Guiné-Bissau. Bissau: Inep. 

Scantamburlo, Luigi (1997). Introdução ao dicionário guineense português. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. 

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A ler | 13 Fevereiro 2011 | crioulo, Guiné Bissau, língua portuguesa