A Roupa Nova de Luanda

Em Luanda, as viagens aéreas mudam. O declínio de um aeroporto internacional é a aurora de outro. Uma passagem do velho para o novo, do centro degradado para a periferia impecável. Uma reescrita de narrativas, usando paisagens urbanas como lápis. Em outubro e novembro de 2025, caminhei pelos dois polos internacionais de transporte de Luanda — entrando adentro as duas imagens distintas do passado e do futuro. Dentro do Dr. Agostinho Neto: modernidade, frescor e uma vasta desolação dominaram corredores extensos, porém vazios. Enquanto isso, o interior do Quatro de Fevereiro era degradado, cansado e vibrante. Em dezembro de 2025, a maioria das chegadas e partidas internacionais terá sido transferida para o Aeroporto Internacional Dr. Agostinho Neto.

Em tempos de »mega-projetos« de infraestrutura em grande escala, a relocalização do aeroporto de Luanda revela um fenômeno global e o papel da infraestrutura urbana como ferramenta poderosa e meio de escrever e reescrever a história. Transferir um aeroporto para beneficiar outro reflete a realidade enfrentada pela maioria dos residentes de Luanda desde a urbanização e os tumultos decorrentes da guerra civil nas décadas de 1980 e 1990. Nos bairros informais de Luanda (musseques), migrantes e refugiados (deslocados) provenientes de áreas rurais, muitas vezes carecem de documentos legais e de reivindicações escritas sobre as suas casas e terras, tornando-os vulneráveis à apropriação fundiária durante projetos de requalificação urbana.

«Luanda está mais do que nunca polarizada entre a cidade do ‘alcatrão’, cedida pelos portugueses aos novos-ricos, e a vasta periferia poeirenta de bairros pobres e musseques«, escreveu o jornalista e escritor Mike Davis.

Teresa Caldeira, antropóloga brasileira, observa que reformas urbanas impulsionadas pela separação de classes — moldadas por especulação imobiliária, ideologia e lucros imediatos — existem tanto em megacidades reacionárias quanto democráticas. Observando São Paulo, nas décadas pós-ditadura brasileira, a «arquitetura de fortaleza» moldada por economistas e arquitetos políticos ocidentais não apenas transformou a aparência e o sentido das áreas urbanas, mas também removeu o acesso à esfera pública de grandes parcelas da população. Quando muros — físicos e mentais — são erguidos para separar pessoas por cor de pele, classe, sexo ou religião, a infraestrutura urbana torna-se uma ferramenta de supressão, não de conexão. A necessidade de reconhecer «aqueles de diferentes grupos sociais como co-cidadãos», com direitos iguais, é minada por muros que “não fortalecem a cidadania, mas contribuem para a sua corrosão». Caldeira conclui que «a construção de símbolos de status é um processo que elabora a distância social e cria meios para a afirmação da diferença social e da desigualdade».

Assim, a relocalização do tráfego aéreo de Luanda significa um projeto de modernização que quer assinalar uma ruptura com um passado estagnado (e colonial) e simboliza um salto em direção a um futuro vibrante (e independente).

O antigo aeroporto foi construído em 1951, quando Angola era uma «província ultramarina» mantida pelo Império Português. Primeiro nomeado em homenagem ao então presidente de Portugal, Francisco Craveiro Lopes, o aeroporto central tornou-se um cenário histórico durante as últimas horas do colonialismo português em 1975, quando Angola estava à beira da independência após 500 anos como mercadoria europeia. Antes da libertação nacional, meio milhão de colonos portugueses brancos acamparam no aeroporto — nos terminais, na pista, nos estacionamentos e áreas ao redor — exigindo um «retorno» a uma «pátria» europeia que a maioria jamais havia visitado. Uma «ponte aérea» entre Lisboa e Luanda foi estabelecida, e os colonos foram evacuados para a Europa. O aeroporto foi deixado abandonado e silencioso, “monstruosamente sujo e cheio de lixo porque ninguém o tinha limpado depois do meio milhão de refugiados».

Após a limpeza, o aeroporto foi renomeado. Qualquer homenagem ao empreendimento colonial português foi removida, e o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) — que assumia a liderança do governo histórico e independente — batizou o principal aeroporto de Luanda com uma data: 4 de fevereiro de 1961. Neste sábado, a resistência armada de libertação angolana irrompeu por meio de revoltas urbanas, greves e fugas de prisão no centro de Luanda. Esta data e seus eventos — imortalizados pelo MPLA — foram integrados na paisagem urbana, na infraestrutura histórica e na narrativa geográfica. Ao nomear a mais importante avenida e o principal polo internacional de transporte de Luanda como «o dia em que o povo angolano, sob a liderança do MPLA, tomou a iniciativa de se levantar contra o domínio português», o 4 de Fevereiro é eternizado como um acontecimento histórico e incorporado fisicamente na infraestrutura da capital.

O novo aeroporto, por outro lado, fez parte de uma vasta e ambiciosa «estratégia de longo prazo para Angola», na qual Luanda seria «reclassificada». O projeto foi lançado em 2004, após a guerra civil e durante a bonança do petróleo, financiado principalmente pelo Fundo Internacional Chinês. Inaugurado em 2024, o aeroporto foi nomeado em homenagem ao primeiro presidente de Angola, Agostinho Neto — poeta, médico e cofundador do MPLA. Neto liderou o MPLA antes e depois da independência, e estava no epicentro de 1975, um «ano zero para Angola» no que diz respeito «à questão do urbanismo e aos processos de urbanização», segundo o antropólogo António Tomas. A independência, afirma Tomas, «trouxe consigo a possibilidade de uma nova reconfiguração do espaço, e, mais importante, uma que pudesse permitir justiça nas formas pelas quais os corpos eram atribuídos ao espaço.»

Quando Neto morreu de cancro em 1979, o primeiro presidente de Angola — seu corpo, nome, espírito e legado — foi incorporado à infraestrutura urbana de Luanda.

O desmantelamento do aeroporto Quatro de Fevereiro, localizado no centro da cidade, abrirá «novas» terras em áreas valorizadas e luxuosas, habitadas desde a década de 1980 por deslocados. A partir do Aeroporto Internacional Dr. Agostinho Neto, visitantes chegam também por vias bem planeadas, estradas pavimentadas, outdoors modernos e parques industriais impecáveis.

Então, a reforma urbana de Luanda pode ser vista como uma tentativa direta de afirmar autoridade sobre narrativas históricas e determinar inclusão ou exclusão. Uma infraestrutura que também combina diversos fenômenos de poder: política, economia, cultura e tecnologia. «A poética da infraestrutura» que «permite compreender como o político pode ser constituído por diferentes meios», explica o antropólogo Brian Larkin. Essas palavras ecoam no saguão de chegadas do Dr. Agostinho Neto, poucas semanas antes de todos os voos internacionais para Luanda passarem a aterrar ali, abandonando o Quatro de Fevereiro.

No interior o projeto está a apresentação de poder político, económico e cultural. Dentro da infraestrutura, e embutidos nas paisagens urbanas, encontram-se o conhecimento, a ideologia, a teocratização, o sangue, o suor e as lágrimas que nos ligam aos primeiros estágios da industrialização. A infraestrutura — ressoa Larkin — existe para além de seu funcionamento puramente técnico. Mais do que isso, questiona se as infraestruturas são enxertadas sobre um mundo já existente, forçando-nos a refletir sobre nossa própria responsabilidade diante das injustiças embutidas na separação geográfica, na desigualdade social, nos programas de desenvolvimento e no conceito de modernidade.

Durante minha visita a Luanda, visitantes estavam proibidos de entrar no sítio memorial de Agostinho Neto, pois as autoridades preparavam o mausoléu, o museu e outros locais-chave para o próximo 50º aniversário da Independência. As portas fechadas materializam o que os especialistas em memória Vasco Martins e Miguel Cardina concluem ser uma «posição política» na Angola contemporânea: nem o memorial de Agostinho Neto nem qualquer dos novos hotéis cinco estrelas de Luanda, clubes noturnos elegantes ou estâncias balneares sofisticadas se destinam a servir o povo, cujo lugar permanece »à margem do Estado angolano«.

A visão do governo do MPLA pós-Neto é de criar uma capital à la Dubai, capaz de atrair turismo, negócios e «massas de estrangeiros para a cidade, transformando-a num lócus onde a mão invisível do capitalismo consequentemente elevaria os angolanos da pobreza», enquadra-se nesse contexto. Nessa visão, o moderno, fresco e recém-inaugurado aeroporto Dr. Agostinho Neto funciona como os braços abertos e o sorriso acolhedor de Luanda. Consequentemente, o aeroporto permite que políticos e cidadãos considerem essa peça moderna de infraestrutura como sua própria, não vinculada ao colonialismo português, à arquitetura colonial ou às cicatrizes físicas dos colonos-ocupantes portugueses, nem ao cemitério não oficial de um império moribundo.

No fim, seu contexto histórico confere-lhe uma agência e um propósito nacional, independentemente das opiniões sobre o seu design interior, financiamento chinês ou homenagem explícita ao capitalismo.

Brian Larkin mostra a infraestrutura como um ser político permanente, lembrando-nos continuamente, através da forma, do desenho e dos nomes, da nossa posição subjetiva nos esquemas urbanos e no curso da história. Como projeto político, cultural e económico, a infraestrutura — ele acrescenta — «tem suas raízes conceptuais na ideia iluminista de um mundo em movimento e aberto à mudança, onde a livre circulação de bens, ideias e pessoas criaria a possibilidade de progresso». Em Luanda, isso é especialmente verdadeiro, dado que o 4 de Fevereiro foi construído num período em que o império português remodelava a infraestrutura urbana da cidade, construindo um porto, avenidas largas e um aeroporto para criar uma ponte aérea com a «Metrópole», com a Europa.

A infraestrutura como objeto, como emoção, como algo que podemos sentir, tocar, cheirar e experienciar, oferece-nos um conjunto complexo e em constante mudança de ferramentas para compreender melhor o nosso próprio lugar num mundo onde as selvas urbanas não param de crescer. A infraestrutura urbana — física ou digital — é o espaço onde buscamos conexão, propósito e realização. Luanda mostra como a infraestrutura urbana continua a ser uma ferramenta de poder e de historicidade política.

O antropólogo Michel-Rolph Trouillot escreveu: «Cada narrativa histórica renova uma reivindicação de verdade». Angola não é exceção. Mas o contexto do «facelift» angolano e sua troca da infraestrutura urbana devem ser observado como um processo pós-colonial. Remover 500 anos de colonialismo, substituindo-o por uma narrativa que busca unir Angola, uma sociedade que, durante seus 50 anos de independência, viveu mais dias em guerra civil sangrenta do que momentos de paz e estabilidade, não só é político ou económico — é sobrevivência.

A historicidade entrelaçada no aeroporto Dr. Agostinho Neto transforma cidadãos locais, ao menos teoricamente, em atores e narradores de uma transformação urbana que reivindica controlo sobre o passado e o futuro. Fundada em 1575 por conquistadores portugueses e lembrada como um grande porto do tráfico negreiro que enviou 1,2 milhões de pessoas através do Atlântico para o Novo Mundo, essa virada narrativa consciente afirma autodeterminação histórica e agência política em Luanda, interna e externamente.

Brian Larkin mostra a infraestrutura como um ser político permanente, lembrando-nos continuamente, através da forma, do desenho e dos nomes, da nossa posição subjetiva nos esquemas urbanos e no curso da história. Como projeto político, cultural e económico, a infraestrutura —ele acrescenta— «tem suas raízes conceptuais na ideia iluminista de um mundo em movimento e aberto à mudança, onde a livre circulação de bens, ideias e pessoas criaria a possibilidade de progresso». Em Luanda, isso é especialmente verdadeiro, dado que o 4 de Fevereiro foi construído num período em que o império português remodelava a infraestrutura urbana da cidade, construindo um porto, avenidas largas e um aeroporto para criar uma ponte aérea com a «Metrópole», com a Europa.

A infraestrutura como objeto, como emoção, como algo que podemos sentir, tocar, cheirar e experienciar, oferece-nos um conjunto complexo e em constante mudança de ferramentas para compreender melhor o nosso próprio lugar num mundo onde as selvas urbanas não param de crescer. A infraestrutura urbana —física ou digital— é o espaço onde buscamos conexão, propósito e realização. Luanda mostra como a infraestrutura urbana continua a ser uma ferramenta de poder e de historicidade política.

O antropólogo Michel-Rolph Trouillot escreveu: «Cada narrativa histórica renova uma reivindicação de verdade». Angola não é exceção. Mas o contexto do «facelift» angolano e sua troca da infraestrutura urbana devem ser observado como um processo pós-colonial. Remover 500 anos de colonialismo, substituindo-o por uma narrativa que busca unir Angola, uma sociedade que, durante seus 50 anos de independência, viveu mais dias em guerra civil sangrenta do que momentos de paz e estabilidade, não só é político ou económico —é sobrevivência.  

A historicidade entrelaçada no aeroporto Dr. Agostinho Neto transforma cidadãos locais, ao menos teoricamente, em atores e narradores de uma transformação urbana que reivindica controlo sobre o passado e o futuro. Fundada em 1575 por conquistadores portugueses e lembrada como um grande porto do tráfico negreiro que enviou 1,2 milhões de pessoas através do Atlântico para o Novo Mundo, essa virada narrativa consciente afirma autodeterminação histórica e agência política em Luanda, interna e externamente.

 

Literatura e referências:

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por Klas Lundström
A ler | 15 Dezembro 2025 | Infraestrutura urbana, luanda, pos-colonialismo, Reconfiguração espacial