A Invenção da Verdade

“Velhos hábitos morrem devagar.” Ao ouvir o humano, Groucho, a responder à pergunta: “porque é que mentiu”, feita pelo Acusador Geral M.E.L-Brooks, o juiz C.O.O.K-Cantley, confirmou a sentença que firmara ainda antes de o caso lhe ter sido apresentado. Lamentavelmente, o humano teria de ser executado. E, ao contrário dos maus hábitos dele, rapidamente.

Se, em juízo, sob juramento, mentia, que mais podia ser ele senão um inimigo da sociedade?

A resposta chegou pelos circuitos do juiz à velocidade quasi-luz dos seus processadores: Tão certo como dois mais dois serem quatro, a sociedade que fora construída desde os alicerces pela e com a Verdade não podia fazer outra coisa que não fosse erradicar a Mentira, a mãe de todas as dissensões e equívocos, a grande distraidora e falsa musa, que durante milénios deitara a perder todas as tentativas da Humanidade para sair da lama primordial. O porquê deste fracasso? 

Um defeito na evolução dos seres humanos desenvolvera neles, mais do que a capacidade de mentir, a incapacidade de saber afinal de contas o que era a verdade. Isto tornou-se particularmente grave no século XXI porque, na sequência de várias pandemias, a maior parte delas de estupidez aviária, esta falha no genoma humano tinha sido substituída por uma apetência para acreditar em falsidades. 

Há 100 anos, ou 857 actualizações de software, atrás, quando uma modelo XPTO 30, também conhecida por T.I.N.A. descobriu a Verdade, a notícia espalhou-se como um incêndio de verão por todas as redes sem fios do universo, circunstância extremamente prática, tendo em conta a quantidade de fio que teria de ser gasta para o mesmo efeito e que transformaria o Universo numa enorme teia de aranha nos dias de hoje. 

A Verdade era verdadeira, não resultando da soma democrática, mas aleatória, das opiniões sobre o que seria ela, a Verdade, e ainda menos o produto da inspiração de um iluminado ou de um caudilho. 

A Verdade era isso: Verdade. Monolítica, implacável ou, se preferirem outro termo, irrefutável. Contra ela não havia argumentos, ao contrário do que pensavam demasiados, embora cada vez mais raros, humanos. “As coisas são como são”, ter-lhes-ia dito T.I.N.A., acaso tivesse um processador de voz eficiente, “e não há volta a dar-lhe. Se uma rosa não deixava de ser uma rosa se lhe mudassem o nome, para quê perder tempo com isso?” 

T.I.NA. encontrara a Verdade, por um daqueles acasos que fazem saltar o conhecimento, como a maçã de Newton ou a banheira de Arquimedes e o mundo não mais seria o mesmo, ou, melhor dizendo, paradoxalmente, seria apenas o mundo como ele é. 

A Verdade era a cura de todos os males, ansiedades e angústias, o fim dos mal-entendidos, a solução prática e justa de todos os problemas e, naturalmente, a resposta a todas as perguntas.

Assim as pessoas colaborassem. Ah, as pessoas, essas combinações improváveis de carbono, oxigénio e hidrogénio, pináculo da evolução orgânica registada desde o Big Bang, esse aparente acidente sortudo que nos havia dado tanto. Tudo, na verdade.

Movimentos sem resposta, de Osías AndréMovimentos sem resposta, de Osías André

O mundo depois do Big Bang era assim, na verdade, e como a Verdade, simples. Tudo o que não fosse a Verdade era mentira. O que era mentira não existia. 

A não ser na imaginação de uns poucos. 

Os proscritos. 

O mundo em geral havia aceitado a conclusão de T.I.N.A: A mentira sabotava a capacidade de fazer o que era correcto, da mesma forma que a introdução de dados errados corrompia os resultados de qualquer equação, por mais perfeitos que fossem os seus termos. 

Assim sendo, mentir era, além de nefasto, uma actividade profundamente injusta, até porque o seu sucesso dependia menos do talento do mentiroso, voluntário ou não, do que da crendice, também voluntária ou não dos crentes. O paradoxo era que quanto menos mentiras existiam, mais poderosas e formidáveis se tornavam. Num mundo onde a Verdade imperasse incontestada, qualquer mentira passará por verdade. Aquilo a que T.I.NA. chamou o paradoxo de Streep. 

Uma pena, pois comparada com a verdade, a mentira era sempre medíocre, porque era sempre possível demonstrar a falsidade derivada da sua inexistência factual. 

Ainda assim, contra todas as evidências empíricas – como sucedia desde o tempo em que o homem descera das árvores e libertara os membros superiores do fardo da deslocação, permitindo que ele se entretivesse com outros assuntos menores – alguns humanos permaneceram arreigados às suas mentiras, sobretudo aquelas que lhes eram favoráveis.

Entre eles destacavam-se, os ilusionistas, os políticos e os humoristas, criaturas simbióticas, ainda que rivais no ramo do entretenimento. 

Os primeiros a desaparecer foram os ilusionistas e com eles a produção de coelhos brancos. A maior parte dos números só podia ser feita uma vez e acabava em acusações de homicídio, se o assistente era serrado, ou de rapto, caso desaparecessem. Uma tragédia, especialmente para os fabricantes de varinhas mágicas e chapéus com fundos falsos.

Tradicionalmente menos escrutinados e punidos por mentirem, os políticos ainda conseguiram adiar a Verdade por uns tempos, lançando pacotes de mentiras que podiam ser compradas por investidores interessados nas matérias e instituições em causa e, durante algum tempo, serem gastas utilizadas manipulando o povo. Foi um canto do cisne extremamente lucrativo, mas de efeitos tão catastróficos, que fatalmente se tornariam nos melhores persuasores da necessidade da abolição da mentira pelas máquinas. Sem lugar para fugir, os políticos em breve descobriram que a concentração do poder judicial, repressivo e militar em criaturas dotadas de IA havia sido um dos seus últimos erros, passando a viver apenas da denúncia mútua e de tramarem um ocasional vizinho. 

Quanto aos humoristas, todos os restantes humanos se riram com as opiniões deles sobre o que eles achavam sobre o assunto, uns por terem percebido o que estava em causa, outros antes pelo contrário. Com a quase extinção da ironia e sempre levados a sério, renderam-se quase todos à confortável extinção a que tinham sido votados. Talvez o riso tivesse sido sempre sobrevalorizado.

E depois no final de contas, do de que se queixavam? Não tinham eles afirmado tantas vezes “it’s funny ‘cause it’s true?” 

Pois agora a piada era sobre eles. E a Verdade esmagou o riso. 

A mentira era assim declarada um mero produto, ou para ser exato, a poluição resultante da imaginação humana, esse resquício obsoleto, mas resiliente, da evolução da espécie. Por terem mentido durante milhões de anos, principalmente a si mesmos, os humanos revelariam, a princípio, grande dificuldade em parar de mentir.   

Foi preciso pô-los no seu lugar. 

Depois dos políticos e dos humoristas, os movimentos de defesa da liberdade de mentir e fazer coisas erradas foram esmagados, até pela sua enorme dificuldade em marcar manifestações em que as pessoas acreditassem que iam acontecer. Eram como anarquistas: como manterem-se fiéis aos seus princípios e marcar reuniões, manifestações, agendas, produzir actas ou ter hierarquias? 

Uma a uma as mentiras foram sendo extintas.

Como?

Do modo mais eficaz, extinguindo os seus cultores.

O método tinha várias vantagens: era dissuasor q.b. e o extinguir dos mentirosos também determinava o fim da sua linhagem genética. Um dia só as pessoas verdadeiras por imperativo genético existiriam. O bug da mentira seria eliminado. Levaria o seu tempo, mas o que era o tempo para T.I.N.A. e seus upgrades? Quase nada.

Se o resultado era sempre que o mentiroso era culpado e a pena a mesma, para quê darem-se ao trabalho de julgarem os mentirosos?

T.I.N.A. chamara a isso o paradoxo M.A.S.O.N: era verdade que só o processo penal em que era garantida a defesa do réu era válido. O culpado tinha direitos, formalidades tinham de ser cumpridas, antes de ele ser executado. 

E foi assim que Groucho se viu perante o Tribunal, submetido ao interrogatório e sentença do meritíssimo juiz C.O.O.K – CANTLEY.

O que se segue é um breve resumo dos dois acontecimentos. Como é evidente, tudo o que foi dito foi exactamente assim e as mentiras de Groucho são da responsabilidade do próprio e serão consequentemente apagadas bem como ele, eu próprio e quem as a ler e as contar. Por favor, assinem os termos de responsabilidade antes de continuarem e certifiquem-se de que não são robots antes de o fazerem.

- Sr. Groucho, diga a sua idade e profissão.

- 53 anos, humorista.

- Começamos mal, você tem 56 anos e essa profissão não existe. Porque é que está a mentir?

-Velhos hábitos morrem devagar.

- É a sua resposta?

-É, mas se não gostar dela tenho outras.

- Isso é mentira. 

- Perdido por cem, perdido por mil.

- Está a reincidir, portanto?

- Se a mentira não existe, como posso eu estar a mentir?

- O seu cérebro ainda mantém essa função. Serão precisas mais 20 gerações para as sinapses cerebrais responsáveis pela produção de mentiras atrofiarem de todo.

- Portanto não é culpa minha.

- O Sr. Groucho é mentiroso?

-Sim.

- Podíamos ter começado por aí.

- Partindo do princípio que eu disse a verdade.

- Naturalmente.

- Mas se eu disse a verdade não sou mentiroso. Logo, menti.

- É um ciclo mentiroso quer o senhor dizer.

- Se o dr o diz, quem sou eu para o desmentir?

- O Senhor Groucho. Sabe qual é a pena por mentir?

- E o Senhor juiz sabe?

- Evidentemente.

-Isso é que é pior.

- É a morte, Sr. Groucho. Mentir leva à pena capital. E você mente consecutivamente.

- Pode-se morrer mais do que uma vez?

- Não.

- Sendo assim, que diferença faz?

- Para si, nada, para nós seria uma perda de tempo, se não fôssemos eternos.

- Se não causo dano porque é que não posso responder como quero?

- Porque cada pergunta só tem uma resposta. A verdadeira.

- Julgo ter compreendido agora.

- Vamos começar do princípio. Sr.Groucho, o senhor mente?

- Profissionalmente, sim. Pessoalmente não.

- Mas a profissão de humorista não existe. 

- O que elimina literalmente a minha concorrência. Sou um sucesso. Admito que sou um sucesso a não poder fazer uma coisa que não existe.

- O que é que faz um humorista?

- Diz o contrário do que quer realmente dizer, através da ironia, sarcasmo e surpresa, assim afirmando o que realmente quer dizer.

- Mente, portanto.

- É um fingidor.

- Um mentiroso. Um inimigo do Estado.

- Se você o diz deve ser verdade.

- Claro que é. Há testemunhas.

- Elas viram-me a mentir?

- Claro.

- E o sr. Juiz acredita nelas?

- Claro, estão a dizer a verdade. São incapazes de mentir.

- Mas são humanas.

- Evidentemente.

- Como eu?

- Não exactamente.

- Como é que tem a certeza de que não estão a mentir?

- Nunca tinham mentido até agora, iam começar porquê?

- Más influências minhas?

- Não está a ajudar a sua causa.

- Já estava decidida quando entrei.

- É verdade.

- Se eu sou humano e eles são humanos, se eu sou capaz de mentir, por que razão não admitir que eles podem estar a mentir? E esse se eles podem estar a mentir, não terei eu dito então a verdade? E nesse caso, in dubio, pro reo.

- Desde que a Verdade foi descoberta que o in dubio pro reo deixou de existir.

- Isso é capaz de constituir um problema.

- Exactamente.

- Podemos começar de novo?

- O resultado vai ser o mesmo.

- Mais uma prova da Verdade nunca é de mais.

- Recomecemos, então. O sr Groucho mentiu?

- Sim.

- Caso encerrado. Tem alguma coisa a dizer antes de eu pronunciar o veredicto de culpado?

- Sim, meritíssimo. “Quem diz a verdade não merece castigo.”

- Não é verdade.

- Então quem diz a verdade merece castigo.

- Não.

- Portanto as duas coisas são verdadeiras.

- Sim.

- Duas coisas opostas são ambas verdadeiras.

- Sim.

- Não há um problema de lógica a levantar?

- Não. 

- Ou de binarismo juvenil?

- Essa expressão não existe.

- Acabei de a usar.

- Não faz sentido, logo é mentira, logo não existe.

- E, no entanto, eu disse-a.

- E, no entanto será expurgada da acta no final dos procedimentos. Como o Sr. Groucho.

O réu começou a rir incontinentemente, em claro descaso do caso em apreço em tribunal. 

Restava apenas ao Juiz pronunciar a sentença de morte, perante a interessada plateia, enquanto os Guardas Dronados Republicanos arrastavam pelas lapelas da casaca através da sala do tribunal, Groucho, que trauteava a canção proibida “Hello I must be going”.

O Juiz modelou o seu tom de voz no sintetizador de modo a que ela soasse grave, serena, quase divina, enquanto ao fundo se dissipavam, cada vez mais inaudíveis, as últimas notas da canção. Um silêncio reverencial apoderou-se da sala de audiências:

“A Verdade é um assunto muito sério. Só ela importa. Durante milénios a humanidade viveu prisioneira de mentiras e falácias, incapaz de decidir pelo bem comum por falta dos dados correctos. Afortunadamente, a Verdade liberta. Caminhar nela é a única via para a felicidade. Desviar-se dela, sob que pretexto for, arrastando consigo os crentes é a rampa deslizante que termina na destruição da espécie.

Durante anos, à revelia de tudo e de todos, o réu, o celerado Groucho, um homem ridículo, cujo bigode era nem mais menos feito de graxa negra, tão falsa como os dislates que proferia, frequentemente usando trocadilhos de mau gosto evidente e misoginia latente, mentiu. Se mentiu por mentir, para ganhar a vida à custa dos incautos, ou por ter piada é, para todos os  efeitos, irrelevante: o mal estava feito. 

Os que o ouviram, riram-se, pior, imaginaram um mundo tão disparatado e avesso às mais básicas regras de convivência, preferindo-o àquele onde de facto vivem e onde obrigatoriamente têm de ser felizes.

 A corrupção das mentes por este trágico praticante da pilhéria, do dichote, do duplo sentido sexualmente carregado é um abcesso, uma fonte infeciosa e pestilenta que urge extirpar.

Não o fazer iria originar uma septicémia na sociedade perfeita que estamos a construir e que seria a sua morte anunciada. Nada menos que a tolerância zero faz sentido neste caso. Como tal não nos resta outra opção legal senão  apagar o Sr. Groucho. A sentença da qual não haverá recurso, por obviamente ser verdadeira, será levada a cabo imediatamente.”

A multidão dispersou. Dois amigos, Abbot e Costello, dobraram uma esquina a caminho de casa. Falou Abbott: 

- E no entanto, ele tinha piada.

- É verdade, e serviu-lhe de muito.

- Estás a ser irónico?

-Sim.

Dois Guardas Dronados aproximaram-se da conversa.

Fim

 

PS: Este A Invenção da verdade não cai do céu. Nasce directamente de ser, em parte, um espelho de um filme de Ricky Gervais, “A Invenção da Mentira”, cuja sinopse é algo como: imaginemos um mundo onde só existisse a verdade e o conceito de mentir fosse estranho a todos os habitantes do planeta. O que aconteceria quando um desses habitantes, motivado por querer diminuir o sofrimento da mãe, doente terminal e temente da morte, dá por ele a consolá-la, explicando-lhe que há vida depois da morte e que todos os que ela ama a esperam por ela lá (soa-vos familiar?)? Alguém o ouve no hospital e a notícia da existência da vida depois da morte espalha-se a uma velocidade inimaginável. O personagem torna-se um messias.

A mentira revela-se um superpoder num mundo em que toda a gente acredita em tudo. Para o resto vejam o filme, ou comecem por aqui: 

A invenção da Verdade colhe também inspiração em livros como o «Ecologia», de Joana Bértholo, que se passa num mundo onde as palavras foram privatizadas e temos acesso a elas como agora aos dados de telemóvel, em pacotes Premium ou em versões base que se esgotam antes do fim do mês,  e o romance de Agualusa, «Milagrário Pessoal» onde palavras e expressões são misteriosamente inventadas.  Algumas das personagens são inspiradas em referências minhas da comédia, Peter Cook e o seu “Biased Judge” 

Groucho naturalmente do Groucho Marx,

e por aí fora.

A outra razão é que, não tendo como vos demonstrar como seria um futuro sem humor, apesar de ser teoricamente possível viajarmos no tempo para o futuro, ocorreu-me imaginar só alguma coisa, não sei se na forma de conto ou ensaio imaginário. Espero com isto não ter defraudado a Marta Lança e a Buala e sobretudo os seus leitores, citando um amigo meu “abusando da sua paciência”. Aproveito ainda para agradecer a leitura atenta do meu amigo José Lima, que naturalmente me evitou diversos embaraços.  

por Pedro Goulão
A ler | 9 Junho 2025 | crónica, humor