Rendição do Celibatário II - Hotel Globo

 

(A) Resistência dos materiais

Demos agora a volta:… Paus, pedras, ramos, ossos, carvão, argila, pó.

Ruy Duarte de Carvalho, A Câmara, a escrita e a coisa dita… p. 293

Tem muita coisa de espelho, esta arte da água e sementes que aqui se pratica para fazer parar o tempo e encher a cidade de histórias na observação directa do quanto o mundo muda e com ele muda a rua, a casa velha, a luz, o sentido vertiginoso da buganvília. Espaços incorporados surgem aqui tratados da maneira certa seguindo o traçado das suas antiquíssimas formas subjugadas a novas perspectivas que obrigam o olhar a elevar-se do chão para seguir a dupla organização das espécies (muros, prédios, varandas, esquinas) enquanto espaço habitado e representado em sequência pois a sua mais primitiva materialidade muda. Era uma vez uma cidade, seus centros em movimento contínuo, suas três dimensões invertidas, seus habitantes e suas falas. O celibatário, aquele que desde sempre permanece “atento às falas do lugar” reconhece que o centro da cidade se reduz comprimido pelas margens maiores. Desloca, então, o seu lugar de ver e contar a partir do seu olhar. Escolhe a perspectiva porque há um espaço que invade o outro, o contamina e cria uma intima distância entre “local achado e local perdido” da qual se pode dar notícia de uma memória havida, guardada entre paredes, submetida ao pincel… estórias de vizinhança, quadrículas, convívios, interditos.
Aguarelas… já se vê.

Ana Paula Tavares, 2011.

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Conheci o Ruy Duarte de Carvalho no Lobito, nos anos setenta. Tinha lido o seu livro de estreia - “Chão de Oferta” - que trazia já inscrita uma trajectória fulgurante,  que haveria de marcar de forma inovadora a literatura produzida em Angola.
Sabia também da sua participação na década de setenta, em algumas das exposições de referência em Luanda e isso era revelador da sua inquietação criadora, digna de um artista completo, fino e perfeccionista.
Ao longo dos anos e no fortalecimento de uma amizade, tive o privilégio de ler/ver muita da sua produção.  Recordo-me agora dos seus “boizinhos” pintados com grande delicadeza, dos magníficos desenhos para o livro “Sinais misteriosos…já se vê, da sua paixão incomensurável pelo deserto e seu povo nómada.
Foi com surpresa agora que me dei conta da existência de um projecto seu - “Rendição do Celibatário II “ fruto de passagens esporádicas por Luanda, tendo o Hotel Globo ( e não só ) como “posto de observação”.  O seu olhar é testemunho de uma cidade em transição, com pequenos apontamentos do quotidiano e uma suavidade cromática notável, o que nos faz aguardar futuramente uma mostra mais abrangente do seu trabalho pictórico, com a sabedoria que imprimia em tudo o que fazia.

António Ole, 2011.

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Textos escritos para a exposição de aguarelas de Ruy Duarte de Carvalho realizada no âmbito da celebração do 22º aniversário da Associação Cultural e Recreativa Chá de Caxinde, entre os dias 15 e 17 de Fevereiro de 2011, em Luanda.

Fotografias de Susana Paiva.