“Era um movimento realmente espontâneo e essa foi a sua força”

fotografias de Miguel Manso

 

Antes, pai e filha não se entendiam. “Não comunicávamos. Ela comunica pelo computador e eu não percebia. Não conseguia compreender que viesse a casa e passasse 20 horas em frente ao computador e quatro a dormir. A ditadura também abriu um fosso entre gerações. Agora reencontrámo-nos.”

A filha tem nome de guerra: TunisianGirl, nome de blogue, de conta do Twitter, de página no Facebook. De tudo o que o pai, demorou a perceber. Lina Ben Mhenni, 27 anos, licenciada em Linguística e professora assistente na Universidade de Tunes, é uma blogger que a censura transformou em activista.

“Comecei a bloggar em 2006. Escrevia sobre poesia, sobre livros que lia, assuntos gerais. Mas em 2008 fui para os Estados Unidos, com uma bolsa Fulbright, e duas semanas depois de lá chegar vi que o meu blogue e a página do Facebook tinham sido censurados. Então comecei a discutir com outros bloggers. Percebi que os servidores de Internet estavam nas mãos da família no poder. Uma noite sentei-me indignada e escrevi um artigo. No dia seguinte recebi uma mensagem da Global Voices, uma comunidade mundial de bloggers, a pedirem-me para colaborar com eles.”

Assim nascia uma activista com códigos de jornalista. Ao contrário de outros bloggers tunisinos, Lina nunca foi presa. E ao contrário de quase todos os outros, assinou sempre com o seu nome. “É uma questão de credibilidade. Quando dás a cara, as pessoas acreditam, vêm que assumes o que dizes. E tantos bloggers com pseudónimos foram presos”, explica.

O preço a pagar foram as visitas da polícia à casa da família, em Tunes. “De cada vez levavam-me o computador, o disco externo, as máquinas fotográficas”, diz Lina. “Aproveitavam e levaram as minhas moedas de colecção e as jóias de família da minha mulher, algumas com 150 anos”, acrescenta o pai, Sadok, 58 anos, funcionário na administração pública. “Ela diz que é professora mas na verdade nunca teve um contrato oficial por causa dos boletins que a polícia enviava para a universidade. E o ordenado sou eu que pago, não o Ministério da Educação.”

Em Maio do ano passado, Lina assinou com outros bloggers o pedido para a realização de um protesto contra a censura. “Nós mobilizamos muita gente. O Governo mobilizou a polícia. Não conseguimos fazer uma concentração, como queríamos, mas as pessoas apareceram em pequenos grupos”, conta.

Os bloggers políticos não eram assim tantos, “mas a censura tornou-se arbitrária e apareceram pessoas a dizer-me que escreviam sobre flores e tinham as suas páginas bloqueadas”.

Sem ideologia

O pai também esteve nessa manifestação, curioso mas ainda sem perceber o impacto do que a filha fazia. “Eu vi jovens burgueses sem ideologia, jovens que comiam iogurtes. A minha geração não comia iogurtes. Nós vivemos o Maio de 68 e a revolução cultural chinesa. Eram essas as minhas referências”, diz Sadok, que na juventude foi activista político e passou oito anos preso por isso.

Lina continuou a escrever sobre direitos humanos e censura. A comunidade de internautas que a seguia era cada vez maior, mas nada que a preparasse para o que viveu no último mês.

fotografia de Miguel Manso

Atrás dos protestos

A 17 de Dezembro, via Internet, chegava-lhe a notícia da imolação pelo fogo do jovem Mohamed Bouazizi, em protesto contra a corrupção da polícia municipal que o subornava para o deixar trabalhar. “Logo nessa noite eu quis ir para Sidi Bouzid, os meus amigos é que me aconselharam a esperar.” Mas demorou pouco até Lina deixar Tunes. Primeiro parou em Sidi Bouzid, a pequena cidade do interior onde a contestação contra o regime do Presidente Ben Ali começou; depois seguiu os protestos, onde quer que eles estivessem a acontecer.

“Eu sabia que os jornalistas não iam cobrir o que estava a acontecer e que o regime ia tentar silenciar tudo. Por isso, fotografei, publiquei as fotos no Facebook, escrevi no Twitter”, diz. “Vi pessoas simples fartas da repressão. Uma mãe que tinha sido atingida por duas balas sem sequer estar a protestar. Vi tunisinos a morrer às mãos de tunisinos. Pessoas que se juntavam para fazer um minuto de silêncio, coisas simbólicas; e a polícia a responder com matracas, bombas de gás lacrimogéneo, às vezes balas.”

De regresso à capital, instalou-se no quarto de um hotel no centro, dividindo o tempo entre as manifestações e o computador. “Queria documentar tudo. As greves dos advogados, os protestos dos artistas. Vi que estava a acontecer algo de diferente, mas ainda não tinha percebido bem que resultado ia ter.”

Na noite de 13 de Janeiro, Ben Ali fez um discurso ao país e a seguir a polícia dispersou à força os manifestantes e começou a atirar a matar.

fotografia de Miguel Manso

A mesma energia

“Na manhã do dia 14 levantei-me triste. Tive medo por esta revolução, mas uns amigos vieram e convenceram-me a sair à rua”, diz Lina. “Vi uma manifestação, mas não era realmente grande. Depois, começámos a andar na direcção da Avenida Bourguiba e percebi que de todas as ruas vinham pessoas, cada vez mais. Não consigo descrever o que senti. Toda a gente com a mesma energia, toda a gente a gritar ‘Basta’. Em Sidi Bouzid tinha chorado de tristeza, mas nesse dia chorei de alegria”, recorda.

Sadok encontrou a filha a 50 metros da sede da UGTT, a União Geral dos Trabalhadores Tunisinos, o sindicato único de que ele já fez parte.

“Ela estava mesmo no início da manifestação. Fiquei muito comovido. Eu não pude participar em muitas manifestações na minha vida, a oposição que fiz foi como militante clandestino. E de repente, a minha cidade fazia-me lembrar as revoluções da Europa de Leste, Portugal. Vi pessoas com filhos e netos, sem uma garrafa de água ou um pacote de bolachas, mas dispostas a permanecer ali de pé o dia todo, pela noite dentro. Era um movimento verdadeiramente espontâneo e essa foi a sua força.”

Nesse dia, Ben Ali fugiu do país. E apesar do recolher obrigatório e do Estado de urgência decretados, ninguém arredou pé da rua. Lina e Sadok nunca mais se largaram.

A jovem recusa expressões como “revolução Facebook” ou “Twitter” e prefere dizer que esta “é uma revolução do povo”, apesar do papel fundamental dos internautas na divulgação do que se estava a passar. “Se fossemos só nós, esta teria sido uma revolução virtual”.

O pai agradece-lhe a coragem. “Eu fui ficando cansado. A Lina fala de 23 anos de repressão, mas para mim não foi só o Ben Ali, começou antes, eu vivi toda a minha vida sob ditadura. Aos poucos, convenci-me que recusar ser corrompido já era uma forma de resistência. A Lina e os jovens da idade dela deram-me uma lição de História. Perdemos o medo. Eu nunca tinha vivido História na minha vida.”

 

publicado originalmente no jornal Público 22/1/2011

 

por Sofia Lorena
Vou lá visitar | 26 Janeiro 2011 | norte de áfrica, resistência, revolução, Tunísia