O gabinete de Coimbra. sobreposições sobre um espaço comum

Este texto não se cruza diretamente com a obra do Ruy Duarte de Carvalho. Nem no título, nem, na verdade, na substância. O texto também não fala diretamente do Ruy. Deveria até falar de autoridades tradicionais angolanas, nomeadamente do município do Bailundo, em Angola. Mas, também não trata desse assunto. 

De início, relembremos um filme de 2007, The Lake House, com Keanu Reeves e Sandra Bullock, em que as personagens se cruzam a partir de uma casa em comum, que habitam em espaços temporais distintos. Nunca se cruzam ao vivo, no entanto, há uma comunicabilidade entre eles a partir da ocupação de um espaço em comum, em eixos temporais diferentes.

De certo modo, este enredo também se aplica à minha relação com o Ruy, em que partilhámos vários temas e espaços, mas só nos cruzámos duas vezes no mesmo eixo físico-temporal. Primeiro num congresso no ISCTE (Instituto Universitário de Lisboa), e posteriormente numa comunicação dele na Sociedade de Geografia de Lisboa. Essa interseccionalidade foi tão rápida que basicamente o que trocámos foram duas ideias. Da primeira vez, no ISCTE, fui apresentado ao Ruy e disse-lhe que trabalhava sobre as autoridades tradicionais em Moçambique, ainda nem pensava em trabalhar para Angola, e ele basicamente o que me respondeu foi, não sei se com ironia se simplesmente para dar um pontapé nas canelas a um ainda estudante de doutoramento, “O que é que há de interessante para dizer sobre autoridades tradicionais?”.  Na segunda, na Sociedade de Geografia, já eu tinha efetuado trabalho de campo no Bailundo, sobre a relação entre as autoridades tradicionais e o Estado e os partidos políticos, depois de o cumprimentar e felicitar pela conferência, disparou-me algo do estilo “Não concordo com nada daquilo que você diz!”. 

CoimbraCoimbra

De qualquer modo, há outras intersecções interessantíssimas. Desde logo, por exemplo, porque no final da década de 1990 o Ruy deu aulas em Coimbra, no antigo Departamento de Antropologia, como professor convidado, e pouco depois, em 2001, fui convidado para dar aulas no mesmo departamento. Quis o acaso que eu ocupasse o mesmo gabinete no qual o Ruy trabalhou, sendo a secretária ainda a mesma do seu tempo, aliás, tal como o restante mobiliário. A janela para o Mondego e a sua vista soberba permanecem. Segundo o Luís Quintais, também o Ruy passava imenso tempo, pensativo, à janela, enquanto ia fumando. Eu, até há bem pouco tempo, também passava imenso a essa mesma janela, lendo e fumando cigarros. Agora não porque proibiram fumar no espaço do edifício, e já só o faço em clandestinidade. 

Por conseguinte, temos em comum Angola, Coimbra, o gabinete, a vista para o Mondego, e o fumar. Mas há ainda outra matriz que nos é comum, mais importante que as questões anteriores, é a Antropologia e o facto de sermos antropólogos. Mas muito diferentes enquanto antropólogos, quer do ponto de vista teórico, quer se calhar do ponto de vista ideológico, metodológico, etc. Isso acho que nos liga, há uma episteme que nos é comum, a mim e ao Ruy. E apesar das dissemelhanças que elenquei, há antropólogos, ou certos antropólogos, que me marcaram e que é visível que tiveram influência no Ruy. Falo de Michel Leiris, Lévi-Strauss, Deleuze e, adiantaria, Pierre Clastres.

Aqui convém fazer um parêntesis para dizer que cheguei muito tarde e muito imperfeitamente à obra do Ruy, portanto uma parte do texto vai ser também como no aludido filme. Eu vou falar do meu trabalho e quem conhece o Ruy pode imaginar pontes, ou não, entre o meu trabalho e o do Ruy. Portanto, é um diálogo de ausências, e os leitores farão o favor de fazer essa conjugação espácio-temporal. Cheguei tarde exatamente porque também cheguei tarde a Angola. Podia ter chegado muito mais cedo, porque a minha vontade inicial de trabalhar sobre Angola surgiu em 1992.

A ideia inicial era a de estudar a tão propalada relação político-identitária entre os Ovimbundo e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), no âmbito do projeto de tese, no mestrado em Estudos Africanos, do ISCTE. Não deu. O trabalho de campo estava planeado para finais de 1992 início de 1993, mas o reatar da guerra civil após as primeiras eleições de 1992 impossibilitou tal intento. Fui então fazer trabalho de campo para a zona centro de Moçambique, trabalhar com populações Ndau, que constituíam uma espécie de base social de apoio da Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO). Era quase uma transferência de objeto de estudo para um contexto social pacificado, após a assinatura do Acordo de Paz de 1992. 

No início do meu percurso académico era muito evidente aquela ideia da sociedade contra o Estado, do Pierre Clastres. Eu procurava estudar grupos sociais dentro dos espaços nacionais que tinham uma perspetiva de resistência ao Estado, no processo do Estado-nação em África. A partir desta ideia base fui tentando perceber como é que determinados grupos sociais (não uso a questão étnica para não complicar), se emaranham nas relações com o Estado. É para mim, digamos assim, o aspeto que mais me tem interessado até hoje. Ou seja, tentar perceber, desde logo do ponto de vista histórico, como é que esses grupos sociais se foram constituindo e como é que construíram ao longo dos tempos uma identidade social, entre muitas aspas. E depois, sobretudo agora nos últimos 200 anos (primeiro com o Estado colonial, e depois com o dito Estado pós-colonial), como é que essas identidades – que são obviamente, mesmo dentro de cada um desses grupos altamente fragmentados, compósitas, complexas, etc. – se posicionam na atualidade com essa busca mais global, mais nacional, da construção duma identidade nacional ou de um espaço identitário dito nação. Daí o meu interesse pela questão das autoridades nacionais.

Procurava entender, em Moçambique e posteriormente em Angola, a questão da relação entre o colonialismo, ou o Estado colonial português, e as autoridades tradicionais, ditas gentílicas nessa época. Ao invés do que durante muito tempo vários investigadores defenderam, que o Estado colonial português tinha aplicado um sistema muito mais parecido com a direct rule francófona, defendo que, em grande medida, o Estado colonial português aplicou um sistema muito mais próximo da indirect rule britânica. Não porque, ao contrário de muita literatura e até alguma literatura pró-colonialista britânica nos tentou fazer acreditar, a indirect rule tenha sido implementada pelos ingleses por uma questão de respeito pelas culturas indígenas, por uma espécie de salvaguarda dessas culturas, e eu acho que isso, em bom português, é uma “treta mitológica colonial britânica”. Não foi por nada disso, foi por uma questão muito simples: incapacidade da administração colonial britânica em colonizar territórios tão vastos em África, ainda por cima já sendo obrigada a fazê-lo na Índia. Quando Lorde Lugard vai para o Uganda traz consigo a sua experiência anterior de governador da Índia e, não sei se é verdade ou não essa frase mítica da história colonial britânica, que quando lhe perguntaram como é que se fazia essa colonização de territórios selvagens como os africanos ele teria respondido “find the chiefs”. Se é mítico ou não, não sei, mas na verdade o que aconteceu então é que usaram as autoridades tradicionais, ou usaram os chefes locais, digamos assim, para esse efeito.

Não vou aqui entrar em todas as questões relacionadas com esta temática, porque há uma diversidade enorme da sua aplicabilidade. Não é isso que está em causa. Eu acho que o Estado colonial português intentou sempre aplicar esse sistema, não quer dizer que o tenha conseguido sempre e em toda a parte, mas vai tentá-lo, sobretudo, a partir do momento em que historicamente se institucionaliza em Portugal verdadeiramente um projeto colonial de Estado, com o advento do Estado Novo a partir dos anos 1930, nomeadamente através da criação de peças legislativas conhecidíssimas, tais como o Estatuto do Indigenato, a Reforma Administrativa Ultramarina (RAU) e o Ato Colonial. Portanto, é a partir desse momento que eu defendo que se institucionaliza no caso do colonialismo português a indirect rule.

Importa agora fazer aqui um outro pequeno parênteses. Como afirmava o Clifford Geertz, nos anos 1970 e, posteriormente, o James Clifford, a etnografia assume sempre um caráter ficcional. Os antropólogos, ao escreverem etnografia, em grande medida constroem uma ficção. Não no sentido que inventamos ou que mentimos, mas no sentido em que realmente construímos uma narrativa de uma cultura, de um grupo social, de um fenómeno social, que na verdade depois não existe na realidade tal e qual como nós a descrevemos analiticamente. Daí também o forte entrelaçar entre a antropologia e a literatura, que o Ruy tão bem soube tecer nas suas obras, das quais destaco, se me é permitido, esse exemplo paradigmático que é o Vou lá visitar pastores.

Retome-se o fio da meada. O que sucedeu à relação das autoridades tradicionais com a chegada das independências e do Estado pós-colonial? Ora aqui a provocação é muito simples. Na construção do Estado dito pós-colonial em Moçambique, em especial a partir de 1994, vamos encontrar dimensões muito pouco pós-coloniais. Vamos descortinar uma relação com tanto ou mais continuidades significativas com o Estado colonial do que aquilo que seria expectável. Em Moçambique existiu inicialmente um processo acentuado de rutura entre o Estado e as autoridades tradicionais, no período entre a independência e finais da década de 1980. Podemos falar de um período pós-colonial nessa relação. Em Angola não se pode falar tanto nesse sentido. Os fatores de continuidade são muito mais evidentes, até por uma relação pragmática entre o Estado angolano e as autoridades tradicionais, coisa que em Moçambique literalmente não existiu nos primeiros 15 anos, digamos assim, da independência, mormente de 1975 a 1992. Designei esses processos, de continuidades e ruturas na relação das autoridades tradicionais com os Estados pós-coloniais, de neo indirect rule.

Contudo, em ambos os casos, o Estado pós-colonial vai-se defrontar com os mesmos problemas de state building que teve o Estado Colonial. De encontro à questão inicial da Sociedade contra o Estado de Pierre Clastres que, apesar de não estar formulada nesse sentido, se deteta em certos aspetos da obra do Ruy Duarte de Carvalho, podemo-nos interrogar até que ponto estes processos de construção do Estado não constituem formas de colonialismo interno, mais ou menos legitimadas, mas sempre produtoras de violência e de aniquilamento, ou tentativa, de dinâmicas infra-nacionais, em prol de uma unidade e de identidade mais abrangente.

Foram estes processos de enquadramento das dinâmicas socioculturais locais nos quadros normativos do Estado que, a propósito do estudo das autoridades tradicionais, me conduziu ao interesse dos estudos sobre o pluralismo jurídico. Mais concretamente numa área que sempre me fascinou e ainda hoje me fascina, apesar do pouco que entendo e percebo sobre a mesma, que é a questão da feitiçaria, ou melhor, do oculto e do invisível. 

Vários autores falam da feitiçaria ou do oculto como uma linguagem de resistência ao Estado, como por exemplo os Comaroff ou o Peter Geshiere. A proposta foi-me muito apelativa, confesso, mas demasiado abusiva, porque se é assim em alguns casos etnográficos, noutros não o é. No entanto, não deixa de ser na atualidade uma questão central da construção do Estado em África – do Estado-Nação e, sobretudo, do Estado de Direito. Deixar aos direitos costumeiros ou consuetudinários a suposta legitimidade de regular um conjunto de conflitos de base da vida das populações, a partir da conceção excessiva de relativismo cultural, do respeito pela diversidade e pelas culturas locais, é pelo menos contraditório com a ideia de se construir um Estado-Nação, e muito mais de um Estado-Nação baseado no Direito: um Estado de Direito e de Direitos Humanos. Os direitos costumeiros, deixemos de ilusões românticas, são profundamente inconstitucionais em muitíssimas áreas à luz do que é hoje o Direito Internacional, a Carta dos Direitos Humanos ou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e o que é o Estado de Direito, nomeadamente nas questões dos direitos da mulher, da família, e das questões da feitiçaria. 

O uso dos oráculos de veneno, na determinação e acusação de supostos feiticeiros, nos tribunais das autoridades tradicionais ainda é uma constante. Os Ovimbundo no Bailundo ainda praticam o umbulungo, os Ndau ainda utilizam o mwavi. Mas o problema não reside apenas nos processos de acusação, apesar destes preconizarem em si situações de extrema violência. O problema transfere-se para as penalizações que se seguem à acusação e que podem ser: pena de morte; expulsão da sua região; ou maltratos físicos para que os espíritos malignos abandonem o corpo do acusado. Os Estados têm conhecimento desses processos. A partir do discurso do respeito pelas estruturas simbólicas significantes das populações os Estados não intervêm, a não ser em casos extremos, quando é impossível negar a situação. Mas, o que está mesmo por trás não é o respeito, porque senão não se respeitava as populações só na questão da feitiçaria, respeitava-se em quase tudo. E, no entanto, os Estados desrespeitam em quase tudo, menos naquilo com que não sabem lidar, que é precisamente o caso da feitiçaria. Mas, tal como no tempo do Estado colonial, não é uma questão de desrespeito, é uma questão de incapacidade de regular e de controlar.

É evidente que esta linguagem é significante para as populações e, no que respeita às questões sobre o oculto, muito mais do que os quadros normativos e jurídicos do Estado. Mas trata-se de uma questão muito ambígua, na medida em que as populações conhecem na perfeição os dois sistemas, e usam-nos como podem, na prossecução dos seus interesses, individuais ou de grupo, e na exata medida do consentimento, ou não, dos Estados, no que Rouveroy van Niewaal denominava de zero sum game.

É por isso que a ideia de resistência não pode ser generalizada. Lendo o Ruy Duarte, ficamos cientes que as populações com quem ele sempre trabalhou possuem significantes estruturas culturais muito mais marcadas, por exemplo do que no caso das populações ovimbundo. Na atualidade, falar-se numa cultura ovimbundo é uma espécie de manipulação política, porque nos últimos 200 ou 300 anos foi-se diluindo e mesclando com outras, nomeadamente com outros grupos étnicos angolanos, e até com a cultura colonial portuguesa. De outro modo, os Cubal, pelo que se depreende das leituras do Ruy, e não só, parecem portadores de uma história da resistência ao colonialismo português, talvez pelas características do nomadismo, e neles provavelmente há mais lastro para uma clivagem e para uma relação de resistência muito maior do que noutros povos angolanos, nomeadamente os Ovimbundo.

Pessoalmente não encontrei, entre as pessoas com quem convivi no município do Bailundo, qualquer resistência à construção do Estado-Nação, nem à ideia de angolanidade. Não sei se isto que estou a dizer não será também uma ficção antropológica. O que eu encontrei foram ideias muito diferentes do que é essa tal angolanidade, do que é que se espera da relação entre o Estado e as populações. Isso sim, posso afirmar que encontrei uma enorme pluralidade, não da população civil simplesmente, mas por exemplo de próprios ditos atores estatais, que têm também eles próprios diferentes interpretações. Encontrei ali diferentes clivagens, não as explorei, portanto, esse tipo de situações ficou mais ao nível impressionista, mereciam ser exploradas. Por exemplo se há uma clivagem entre indivíduos pertencentes ao Estado ou ao Partido-Estado, ao MPLA, uma vez que em grande medida ainda se pode falar de Partido-Estado. E se houver, se ela assenta numa base regional, no entendimento que esses indivíduos têm da relação Estado-sociedade naquele lugar preciso, o Huambo, e sendo ovimbundos, e se é da mesma natureza que têm por exemplo na cidade do Huambo indivíduos que não são Ovimbundo.

Não sei até se não é possível e legitima uma conclusão mais generalista, ou seja, a de que o Estado-Nação é também uma ficção. É sempre um processo ficcionado e, enfim, para acabar referindo de memória Pierre Clastres, a grande verdade é que qualquer Estado é sempre um processo histórico de imposição, de dominação, por conseguinte, de colonização interna sob uma vastidão ou pluralidade de outras construções políticas locais.

 

Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho  ISBN:  978-989-20-8194-6 Edição BUALA - Associação Cultural I Centro de Estudos Comparatistas (FL-UL) 2019
 
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por Fernando Florêncio
Ruy Duarte de Carvalho | 14 Junho 2019 | antropologia, Diálogos com Ruy Duarte de Carvalho